Rui Poças, o fantasma
Em Moçambique, com espelhos que reflectiam o sol inscreveu a luz na película de Tabu. Por Vasco Câmara
Há directores de fotografia "que fazem os filmes deles independentemente de quem são os filmes, é o caso de Vittorio Storaro". Rui Poças é "dos outros". "Quero ser o mr. Spock, não quero ser capitão Kirk; não quero ser o [Mick] Jagger, quero ser o [Keith] Richards. Não me incomoda ser ghost writer. O filme é soberano." Qual é, então, a sua assinatura? Eis a "receita" do cúmplice de Miguel Gomes (Tabu; Aquele Querido Mês de Agosto, 2007; A Cara Que Mereces, 2004) e João Pedro Rodrigues (O Fantasma, 2000; Odete, 2004; Morrer como Um Homem, 2009): "A nossa enciclopédia pessoal, os conhecimentos técnicos, aquilo que é a pessoa com quem se vai trabalhar e as circunstâncias."
Para os projectos de Gomes e João Pedro parte "quase às cegas". "É interessante evoluir com eles e perceber como evoluíram. O João Pedro e o Miguel têm uma vontade de estar abertos ao que aparece pelo caminho."
Há diferenças. No seu esboço, Rodrigues é "mais cerebral, mais preso às referências" - lembra-se de um plano de Odete em que lhe pediu "isto", uma imagem de Intolerância, de Griffith, uma mãe, um berço e um raio de luz.
"O Miguel encontrou vantagens em estar aberto ao que encontrava pelo caminho. Começou a trabalhar com a improvisação, depois do Querido Mês de Agosto, que é free jazz - mas é preciso ter banda de músicos para ir fazer música com as flores do campo."
A João Pedro deve o maior desafio, a noite de O Fantasma. "Não podia ter sido mais arrojado." (As ressonâncias ainda se ouvem: filme de culto até na Argentina.) "Sou treinado para exibir o visível e foi preciso trabalhar o invisível."
O desafio em Tabu foi a película, o preto e branco, Moçambique sem electricidade... "Não existia um argumento clássico. Dois anos e meio antes, em Cannes, eu e o Miguel fomos ver um filme a preto e branco e a ideia surgiu. O Tabu nessa altura era o Tarzan, pretos com ossos no nariz. Era uma África com retroprojecções, animais empalhados. Mas depois tornou-se um filme como se estivéssemos nos anos 60, nos anos 50, nos anos 40, mas sem apagar os sinais de hoje - putos com T-shirts do Obama." É a elasticidade de que falava: ter à mão uma "Wikipedia pessoal" para responder a desafios.
A película é um fetiche? "O lado da morte do cinema é exterior ao filme, mas impregna-o. Sabíamos que estávamos a filmar em película, a preto e branco, o que torna as coisas raras. Tentámos levar o lado técnico até ao fim. Fomos para a Alemanha fazer pós-produção, num laboratório a fechar. As pessoas iam para o desemprego. Tentámos dar-lhes motivação, uma despedida em beleza. Sempre soubemos que estávamos a fazer um filme que seria feito assim pela última vez."
"Estar em África, calor e poeira, termos de mandar os materiais para revelação para a Alemanha e só dois dias antes do fim da rodagem receber as primeiras imagens e perceber se havia problemas ou não... Não havia electricidade. Tive de montar um sistema com espelhos para reflectir o sol, a única fonte de luz. As limitações imprimem qualquer coisa na imagem. No fundo estava a trabalhar como os outros gajos" do passado.
Mas Poças, 45 anos, será um nostálgico renitente. A elasticidade para responder aos desafios é aplicada para superar nostalgias. "Não é o desaparecimento da película que lamento, é o desaparecimento da escolha. Secaram-se as alternativas - mesmo se as alterações tecnológicas democratizaram o processo. Se se olhar para trás, percebe-se que o advento do som fez a linguagem cinematográfica recuar - as câmaras ficaram imobilizadas dentro de caixas, deixaram de se movimentar, foi pago um preço. Ainda não se fez o balanço disso."
Vai preenchendo insatisfações - sublinha que nem tudo é um encontro desafiante com um grande cineasta - com a Pickpocket Gallery, espaço em Lisboa onde acolhe os que se queiram exprimir pela imagem. "Vou na 29.ª exposição. São coisas transgressivas que não são aceites em lado nenhum. Veio preencher um espaço de insatisfação. Deve ser a crise dos 40... Há quem compre um descapotável. A mim serve-me isto."