Pena máxima para o sucateiro de Carqueja que assassinou três jovens
Depois do caso Joana Cipriano, um tribunal volta a aplicar 25 anos de prisão por crimes em que os corpos das vítimas nunca foram encontrados. Só três centenas cumprem em Portugal uma pena superior a 20 anos
O sucateiro Francisco Leitão, que estava a ser julgado no Tribunal de Torres Vedras pela morte e ocultação dos cadáveres de quatro pessoas, foi ontem condenado a 25 anos de prisão, a pena máxima legalmente aplicável. Dos quatro homicídios que lhe eram imputados, o tribunal deu como provado que o arguido, 43 anos, vulgarmente conhecido por "Rei Ghob", terá sido responsável por três.
A pena aplicada pelo tribunal - o julgamento teve um júri constituído por quatro efectivos e outros tantos suplentes - deixou parcialmente satisfeitos os advogados que representam as famílias das vítimas. É que os 25 anos de prisão (resultado do cumulo jurídico, uma vez que a pena inicial era de 48 anos), conforme fez questão de salientar a advogada Cláudia Gomes, "não permitem às famílias fazer o luto, pois continuam por localizar os corpos".
A pena ontem aplicada é quase inédita em Portugal para crimes em que a polícia não conseguiu localizar nenhum dos corpos. Apenas no caso de Joana Cipriano, a criança que terá sido assassinada aos oito anos no Algarve por um tio e a própria mãe, em 2004, houve uma condenação sem ter sido localizado o corpo. Mas, nesse caso, os inspectores conseguiram recolher sangue, para além de também terem obtido, durante os interrogatórios, uma confissão que mais tarde seria desmentida. Em Portugal, de acordo com os dados da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, existiam, em 31 de Dezembro do ano passado, 316 pessoas condenadas a penas entre os 20 e os 25 anos de cadeia, num total de mais de 12 mil reclusos.
Uma testemunha-chave
Francisco Leitão, que após a leitura da sentença foi de imediato conduzido ao estabelecimento prisional anexo à Polícia Judiciária (PJ) de Lisboa, onde se encontra desde que foi detido, em 2010, deverá recorrer da pena aplicada, conforme disse após o final da audiência uma das suas advogadas, Sandra Bizarro e Cunha. O sucateiro terá também de indemnizar as famílias das vítimas em 350 mil euros.
A condenação à pena máxima era, de resto, um cenário que parecia afastado por parte da defesa de Francisco Leitão, a qual considerou desde o início que não existiam indícios suficientes para aplicar os 25 anos de prisão. Mas, numa das últimas sessões do julgamento, o depoimento de Mara Pires, uma conhecida do sucateiro e das vítimas, acabou por ser determinante.
Esta testemunha, que também se encontra a cumprir pena de prisão, acabou por referir ter visto, a 26 de Junho de 2008, Leitão a agredir mortalmente (com uma barra de ferro na cabeça) Ivo Delgado, na altura com 22 anos, o qual seria depois metido na mala de um carro e, posteriormente, abandonado num local não especificado.
A defesa do sucateiro entende que Mara Pires deverá voltar a ser ouvida pelo tribunal, mas na qualidade de arguida (assistiu à morte de Ivo e não terá contado nada, porque, supostamente, teve medo das ameaças de Francisco Leitão) e não como testemunha. Essa será, de resto, uma das tónicas do recurso a apresentar.
Ivo Delgado foi morto, porque teria acabado uma relação amorosa com Francisco Leitão. Ao mesmo tempo que abandonou o sucateiro, iniciou namoro com Tânia Ramos, que seria morta (supostamente por ciúmes) a 5 de Junho de 2008, tinha então 27 anos de idade.
Foram igualmente os ciúmes que levaram Leitão a matar Joana Correia, de 16 anos, a 3 de Março de 2010. Esta jovem, frequentadora assídua da casa-castelo do sucateiro situada no lugar de Carqueja, Lourinhã, namorava com um rapaz que o agora condenado desejava. Matá-la foi a forma encontrada para vingar os sentimentos amorosos não correspondidos.
Mesmo sem os corpos, os investigadores da PJ acabaram por encontrar outros meios de prova, nomeadamente cartões e telemóveis retirados às vítimas e que terão servido para efectuar diversos telefonemas para os seus familiares, criando-lhes assim a falsa ideia de que estariam vivos algures em Espanha, em França e noutros países europeus, para onde teriam partido em busca de melhores condições de vida.
Vídeos no castelo
No caso de Ivo Delgado, o sucateiro até lhe terá ficado com o automóvel, dizendo aos pais do jovem que este lhe pedira para o guardar. Leitão dizia aos pais de Ivo que este estava a trabalhar em Espanha e que falavam regularmente. Por vezes pedia-lhes dinheiro e comida, dizendo-lhes que o fazia em nome do jovem. Numa ocasião, deslocou-se mesmo com o pai de Ivo a Badajoz, onde o jovem supostamente estaria a trabalhar.
Estes pormenores acabaram por ser valorizados em tribunal. Das quatro acusações de homicídio, apenas a de António d"Albuquerque - um outro sucateiro que terá morrido em 1995, mas cujo corpo também nunca foi encontrado - não foi dada como provada. Esta vítima, conhecida como "Pisa Lagartos", seria de Lisboa e fora viver para aquela região depois de se ter divorciado.
Francisco Leitão vivia numa casa acastelada por si construída. É um edifício imenso, repleto de ameias, câmaras de vigilância e decorado com imagens de gnomos - daí a alcunha de "Ghob, o rei dos gnomos" - e santos. No interior da casa o sucateiro fazia filmagens, supostamente de cenas bizarras que dizia surgirem por intervenção divina. Numa dependência secreta no subsolo do castelo de Carqueja, que mais se assemelhava a um cárcere, decorriam os encontros amorosos do sucateiro com diversos jovens. Em alguns casos obrigava-os a fazerem sexo com o pretexto de que, caso recusassem, as almas dos seus familiares já mortos não iriam ter descanso.
Muitas das cenas que filmava eram depois colocadas na Internet, onde anunciava para este ano o final do mundo. Um dos filmes mais vistos é o de uma espécie de dança macabra num cemitério de uma localidade próxima.