Como todos os outros filmes de Rita Azevedo Gomes (dois chegaram às salas comerciais, "Frágil Como o Mundo" e "Altar", mas há vários que não chegaram ao circuito de estreia, como o primeiro de todos, "O Som da Terra a Tremer"), também "A Vingança de uma Mulher" é um filme que parece vir de uma ilha, de uma ilha perdida no tempo, onde se tivessem conservado os restos de uma civilização, ainda não substituída - ou sequer, tocada - por outra.
Singularidade, ou insularidade, que não está longe da de alguém como Werner Schroeter (de quem Rita foi assistente, nos anos 80), que construiu parte da sua obra furando o tempo e a “actualidade”, como se o cinema tivesse sido inventado no princípio do século XIX e não no seu fim, e se tivesse passado da literatura, da pintura e da música ao cinema, saltando por cima da fotografia e de uma relação “química” com o real e com o presente.
A Vingança de uma Mulher tem esse sabor a século XIX, um gosto a sangue, por todas as razões e mais algumas, inclusive absolutamente literais. Ao contrário de "O Som da Terra a Tremer" e de "Frágil", que ensaiavam o patchwork multi-referencial, "A Vingança de uma Mulher" redescobre uma certa linearidade. Em vez de se construir com bocadinhos vindos daqui e dali, adapta uma só história, de cabo a rabo: um conto de Barbey d''Aurevilly sobre mulheres “diabólicas”. A história da duquesa de Sierra-Leone e da sua vingança sobre o marido que, com requintes de crueldade, lhe matou o amante: a duquesa tornou-se prostituta, para que pela Europa se fosse sabendo que o duque casou com uma puta. Ao sangue que o marido fez verter, a duquesa respondeu enlameando-se, no mesmo gesto encharcando em lama a honra do marido. Admirável história de auto-combustão - na implacabilidade da vingança sobre um vivo, na devoção.
E admirável filme que se faz sobre esta história, talvez da única maneira que era possível filmá-la: preservando o racconto da duquesa como núcleo do filme, encenação que devolve à palavra (da duquesa) o seu papel essencial na disseminação da desonra (do duque) pelo mundo - esta mulher é como Nosferatu a espalhar a doença. Admirável, também, Rita Durão, que aguenta com o corpo e a voz dois terços do filme, e o monólogo demencial que, por sua vez, lhe dá corpo. A câmara ronda, em travellings, panorâmicas e reenquadramentos (é um bailado e um duelo), o cenário, cheio de vermelho, ameaça engolir tudo, os objectos, de rompante, revelam o seu significado cruel, e ela, a duquesa, cada vez mais fria e ao mesmo tempo, mais incandescente, domina a mise-en-scène do seu cerimonial de vingança, acentuando a que ponto ele mistura tudo, o ódio e o amor, o desejo de destruição e o desejo de auto-destruição. Sem que alguma vez vejamos “uma louca”; pelo contrário, quanto mais insana se revela a história, mais racional (e portanto, assustadora) nos parece a personagem (também pensamos que Rita Durão foi, no Vai e Vem, a última parceira dos rituais de César Monteiro, e que alguma coisa ela herdou).
Depois de tanto vermelho, somos devolvidos à realidade. Post-mortem: nos planos finais, a cor parece feita de preto e branco, de cinzas. Belíssimo, tristíssimo filme.