Miguel Dantas da Gamae o Gerês
Metade da vida dele é isto. Serra, vale, a esperança de ver uma águia no céu da Peneda-Gerês. Águia-real, como o sonho do fundador do Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens: ver reconhecida a verdadeira importância da biodiversidade do nosso único parque nacional. Abel Coentrão (texto) e Adriano Miranda (fotos)
Não há como saber olhar. E, não sabendo nós, ter ao lado alguém que sabe ajuda. Anos e anos a tentar explorar minimamente o Parque da Peneda-Gerês, e bastaram 20 minutos de caminhada por um vulgar trilho florestal da serra Amarela, na companhia de Miguel Dantas da Gama, para descobrir vestígios da presença do lobo por estas paragens. Arbustos raspados, fezes a denunciar uma refeição que terá incluído carne de vaca. Ele já tinha avisado que ia ser assim. Nós é que talvez duvidássemos. E não tínhamos razões para tal. Ao nosso lado está um dos portugueses que melhor conhecerá o nosso único parque nacional, um homem que, para além de ter criado o Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens (Fapas), dedicou os últimos 25 anos da sua vida a acompanhar um dos mais impressionantes seres que por aqui viveu: a águia-real.
Ele chama-lhe "a minha velhinha", a "minha amada". E ergue os binóculos ao céu, como que a rezar para que as águias apareçam. Há uns sub-adultos, libertados pelos vizinhos espanhóis, que se aventuram do lado de cá da fronteira, mas que, explica Miguel Dantas da Gama, não se fixaram na Peneda, no Gerês ou na Amarela, as três principais serras do parque nacional. A "velhinha", Rainha de seu nome, morreu em 2009. Desde então, oficialmente não há águias-reais no mais nobre espaço protegido português, naquela que foi uma das últimas derrotas da conservação da natureza no país. Miguel já o avisara. Foi por ele que, a 13 de Abril de 2004, o PÚBLICO fez manchete com o risco de extinção desta espécie, após o desaparecimento do macho do último casal que o fundador do Fapas acompanhava, semana após semana, já desde o início da década de 1990.
O Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG) cruza-se com a vida deste homem que, aos 53 anos, deixou finalmente o lado do "inimigo" para se dedicar a escrever sobre estes anos passados com uma das aves mais imponentes do planeta, e que ele aprendeu a admirar, como muitos de nós, a ver a série O Homem e a Terra, desse ícone da ecologia e da TV chamado Félix Rodríguez de La Fuente, falecido em 1980. Até há dois anos, e durante metade da sua vida, Miguel Dantas da Gama foi um engenheiro electrotécnico a trabalhar com multinacionais do ramo da produção de energia (o "inimigo", lá está), fornecedores da EDP, da Rede Eléctrica Nacional (REN) e dos promotores de parques eólicos - que, graças às suas lutas fora do emprego, nunca conseguiram instalar torres no parque. Chegou a receber ameaças por isso. Foi visto com desconfiança por colegas de trabalho pouco habituados a questionar o impacto dos projectos energéticos, mas agora já só tem de prestar contas a si próprio.
O tesouro
Começou a fazê-lo no ano passado. Depois de uma vida a embrenhar-se serra adentro, quase sempre só, quilómetros e quilómetros, os portugueses estão a começar a ver obras de maior fôlego deste portuense. "Ecologista de cidade", diz a brincar, Miguel é filho de um engenheiro que trabalhava nas barragens e que chegou a ser convidado para gerir a construção da de Vilarinho da Furna, em cuja albufeira, encolhida pela seca, haveremos de procurar, com os olhos, a aldeia que a água engoliu. Não chegou a viver aqui, porque o pai recusou o emprego para não perturbar o percurso escolar dos quatro filhos, mas veio muitas vezes aqui com ele, que gostava deste sítio tão inóspito quanto belo. Em família, chegou a subir, num "carocha", estradão acima até às minas de volfrâmio dos Carris, por um caminho que nesta manhã em que nos encontramos, do lado oposto do vale, se revela monte acima para lho recordar.Desses tempos, ficou-lhe o prazer de passear no Gerês. Depois, veio o interesse pela conservação. Esteve entre a trintena de pessoas que deu origem à Quercus, naqueles meados de 1980 em que a ecologia era coisa de uma geração de militantes desinteressados que, como dizia há tempos numa entrevista o homem que o espicaçou, Serafim Riem, já não existe nos jovens de hoje. Em 1990, o fundador do Fapas asturiano, Roberto Hartasánchez, convenceu-o, com um casal amigo (Serafim Riem e Emília Araújo), a fundar uma associação homónima em Portugal. Em vez do urso, o símbolo dos esforços de conservação do movimento sediado nos Picos da Europa, o novo grupo português adoptou como ícone a águia-real, desenhada pelo próprio Hartasánchez em sua casa. Era o estilizar de uma paixão que vinha em crescendo e que nunca mais parou. E que, provavelmente ainda este ano, se há-de fazer livro.
Dantas da Gama tem um tesouro. Nove volumes de anotações das mais de mil caminhadas que fez por vales pristinos e encostas escarpadas. Uma caixa cheia de penas, milhares de fotografias, vídeos dos cinco anos em que a "velhinha" sobreviveu na solidão dos cumes, observando-o também a ele, tolerando-o como se o tomasse como parte da serra. Por causa da águia, estudou os falcões-peregrinos, que ganharam com o recuo daquela, e já publicou as suas notas de campo sobre esta espécie. Por causa da águia, e das caminhadas que fazia a estudá-la, foi o primeiro a anunciar-nos o regresso da cabra-montês ao território do parque, de onde esteve desaparecida mais de um século. Anotado num sábado, 20 de Fevereiro de 1999: "O binóculo desfaz, historicamente, a dúvida. São 14h50. A cabra-montês está de volta a Portugal! O Gerês não me parece o mesmo! Um reixelo (macho adulto), uma fêmea e uma cria pastam em liberdade no Parque Nacional da Peneda Gerês!".
Pela boca dele a notícia correu, pelas televisões e jornais, e até um administrador da multinacional em que trabalhava, pouco dado a falas com colaboradores, não passou indiferente ao seu papel na descoberta. "Olha o nosso homem das cabras", interpelou-o, por esses dias. A notoriedade pública, explica hoje, ajudou-o a não ter grandes problemas nas três empresas por onde passou. E podia ter tido. Porque depois de uma atitude comedida nos primeiros anos de profissão assume que, a determinado momento, "entrou a matar" com as posições ambientalistas, o que lhe valeu alguma incompreensão dos colegas. Mas, agora que está fora, até conseguiu o apoio de antigos concorrentes (a Efacec), clientes (a REN) e adversários de muitas lutas (os autarcas de Terras de Bouro e de Montalegre) para a sua obra de maior fôlego até aqui: Árvores do Parque Nacional da Peneda-Gerês, editado pela Canhões de Pedra e pelo Fapas em 2011.
As fotografias, impressionantes (ver site da Fugas), são outro resultado de anos a vaguear pelas matas de Albergaria, do Cabril ou do Ramiscal - as duas últimas vítimas de grandes incêndios em 2006 e 2010, cujas proporções e danos, ainda visíveis, o país ficou a saber pela boca dele ainda antes de os responsáveis do Parque o assumirem. A persistência pô-lo em contacto com algumas das mais grandiosas e antigas árvores do país. Um património de teixos, azevinhos, carvalhos e muitas outras espécies cujo estado de abandono não cessa de criticar. Ainda assim, o livro, que disfarça um pouco as históricas lacunas na divulgação da biodiversidade do único parque nacional do país, foi dedicado ao PNPG, que então celebrava o seu 40.º aniversário em pleno Ano Internacional das Florestas. Na dedicatória, os motivos: "Inconformado com os efeitos dos fogos sobre os seus bosques, continuo a acreditar que chegará o tempo em que também o valor das suas árvores seculares será devidamente reconhecido." Mesmo sem a sua "velhinha", Miguel Dantas da Gama anda por aqui, a trabalhar para isso.