A máquina de imaginar

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Júlio Cortázar junto ao túmulo de Roussel em 1975: o interesse pelo escritor francês reacendeu-se nos anos 60, com os movimentos de contra-cultura

Poucos o leram, mas a corte dos seus admiradores é de primeira ordem: de Duchamp e Apollinaire a Foucault ou John Ashberry. Breton viu nele "o grande magnetizador". Raymond Roussel, inspirador das vanguardas, ícone da contra-cultura, era um burguês excêntrico que cobiçava a glória de Victor Hugo. Luís Miguel Queirós

As três obras fundamentais de Raymond Roussel são as novelas Impressões de África (1910) e Locus Solus (1912) e o poema em quatro cantos Novas Impressões de África (1932). Mas para contar a estranha história deste dandy parisiense que sonhou vir a ser um novo Victor Hugo talvez se justifique recuar ao seu livro de estreia, La Doublure, novela em verso que poucos terão lido desde que foi publicada em 1897. Não tanto por ser a sua primeira obra, mas porque aquilo a que se poderia chamar "o caso Raymond Roussel" começa aí, caso não comece nas brincadeiras de infância com a irmã mais velha nesses paraísos das férias aos quais nunca quis voltar, como Aix-les-Bains ou Saint-Moritz.

Roussel escreve La Doublure aos 19 anos, ao mesmo tempo que prossegue os seus estudos musicais no Conservatório. "Trabalhei (...) dia e noite durante longos meses", garantirá em Comment j"ai écrit certains de mes livres (1935), a obra póstuma em que explica o intrincado jogo de homofonias a que recorrera para construir os seus livros mais célebres. Durante esses meses, diz, experimentou "uma sensação de glória universal de uma intensidade extraordinária". Tentará descrevê-la ao seu médico Pierre Janet: "Fechava as cortinas porque tinha medo de que qualquer mínima fissura deixasse passar os raios luminosos que saíam da minha pena, queria retirar o véu duma só vez e iluminar o mundo". Janet, que seguiu Roussel durante anos e mais tarde lhe consagrará um capítulo de Da Angústia ao Êxtase - identificando-o como Martial, o protagonista de Locus Solus -, relata assim a crise que levara o escritor ao seu consultório: "Quando o livro foi publicado e o rapaz saiu à rua e se apercebeu de que ninguém se voltava à sua passagem, o sentimento de glória e lunimosidade extinguiu-se bruscamente e iniciou-se uma crise de depressão melancólica".

A novela adolescente que deveria garantir-lhe a mesma fama que a França concedera a Victor Hugo - Roussel tinha oito anos quando o país decretou luto nacional pelo autor de Os Miseráveis - contava a história de um comediante encarregado de dobrar um actor célebre, Robert de Blou (o apelido, antecipando a obsessão do autor pelos jogos de palavras, é um anagrama de double), que por sua vez se apaixona pelo seu duplo. O insucesso da obra, dirá o próprio Roussel, abalou-o de tal modo que lhe provocou "uma vermelhidão em todo o corpo". A mãe levou-o ao médico de família, convencida de que o filho tinha rubéola.

A intriga de La Doublure é talvez um pouco bizarra, mas nada que se compare com a desenfreada extravagância de Impressões de África (com tradução recente pela Relógio d"Agua), onde se narra a história de um grupo de náufragos brancos capturados por um régulo africano, que estes entretêm com as mais desvairadas performances enquanto esperam ser resgatados. Uma frase ao acaso, retirada de um excerto traduzido por António Ramos Rosa: "Um a um os gatos foram aplicados pela espinha às três ventosas, possivelmente pertencentes ao tentáculo de um polvo".

Ainda assim, Impressões de África, com a sua sucessão de cenas delirantes, contadas com abundante precisão de detalhes, tem qualquer coisa de hipnótico, e é provavelmente de mais fácil leitura do que Locus Solus, que relata a visita de um grupo de pessoas à propriedade do cientista e inventor Martial Canterel, onde este lhes vai mostrando uma série de estranhíssimas invenções, entre as quais um diamante cheio do água que contém uma bailarina, um gato sem pelo e a cabeça de Danton. O auge da visita guiada é um conjunto de oito quadros vivos, cujos protagonistas estão encerrados em caixas de vidro. São mortos que Canterel devolveu à existência graças a um líquido da sua invenção: a ressurectina. Além de ter influenciado os dadaístas com as suas intrincadas máquinas destituídas de qualquer função, Roussel pode também ser visto como um inesperado precursor das histórias de zombies.

O bilhar e o larápio

Em Comment j"ai écrit certains de mes livres, Roussel revela o método que empregava para escrever, admitindo que "alguns escritores do futuro" poderiam "explorá-lo com proveito". Explica que "escolhia duas palavras parecidas" - dá o exemplo de billiard (bilhar) e pilliard (larápio) - e depois acrescentava "palavras semelhantes mas tomadas em dois sentidos diferentes". Chegava assim, no caso de billiard e pillard a estas frases: "Les lettres du blanc sur les bandes du vieux billiard" ("As letras feitas a giz nos rebordos do velho bilhar", na tradução de Manuel João Gomes) e "Les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard" "(As cartas do branco sobre as hordas do velho larápio"). É a amplificação deste processo, baseado em homofonias e duplos sentidos, que preside à génese de Impressões de África.

Se a sua imaginação delirante seduzirá os surrealistas - Breton chamar-lhe-á "o grande magnetizador dos tempos modernos" -, já os estruturalistas dificilmente poderiam deixar de se interessar por este método, que parecia ilustrar a tese de Saussure de que a língua é um sistema onde cada elemento só pode ser definido pelas relações de equivalência ou oposição que mantém com os restantes.

Apesar de não ser fácil imaginar o trabalho que exigirá construir uma novela baseada neste processo, a façanha mais alucinada de Roussel ainda é, provavelmente, Novas Impressões de África, um poema em quatro cantos, que não tem nada a ver com o anterior Impressões de África, e que tem pouco, aliás, a ver com África, descontados uns cenários vagamente egípcios e o conjunto de ilustrações exóticas. A relação entre os vários cantos também não é óbvia: o primeiro trata de uma casa onde S. Luís (o rei francês Luís IX) esteve preso, o terceiro centra-se num objecto que, ao ser lambido, cura a icterícia. Foucault, que escreveu um livro sobre Roussel, diz que este poema é "um tratado de todas as maravilhosas distorções da linguagem: antífrases, pleonasmos, antonomásias, alegorias, litotes, hipérboles, metonímias, catacreses e metáforas", e que nele "as palavras se entrechocam e se afastam, carregadas de electricidade contrária". O leitor pode confirmá-lo na magnífica tradução que Luiza Neto Jorge publicou na Fenda em 1988.

É um verdadeiro mistério que um homem obcecado pela glória mundana - "a Academia, a Legião de Honra, todas essas pequenas púrpuras o fascinavam, porque a sua alma pura as acreditava grandes", diz Jean Cocteau - tenha pretendido conquistar o grande público com obras de tal modo bizarras e difíceis: em Novas Impressões de África, há uma profusão de notas de rodapé que remetem para novas notas de rodapé, e as digressões entre parêntesis são elas próprias interrompidas por secções entre parêntesis.

A claque surrealista

Pode ser que a chave do estranho destino de Roussel esteja na sua infância, pela qual sentiu sempre uma aguda nostalgia, a ponto de se recusar a passar de comboio por alguns lugares onde passara temporadas em criança. "Não há lugar mais inabitável do que aquele em que fomos felizes, escreverá mais tarde Cesare Pavese, que, tal como terá feito Roussel, se suicidaria num quarto de pensão.

Filho de um agente de câmbio s e neto materno de um abastado empresário parisiense, dono de uma companhia de transportes, Roussel era o mais novo de três irmãos. A sua grande companheira de infância foi a irmã, Germaine, quatro mais anos mais velha, que viria a casar com Charles Ney, marquês de Breteuil, descendente de um dos generais favoritos de Napoleão. Foi provavelmente Germaine quem ensinou ao irmão canções infantis, como "Au clair de la lune/ mon ami Pierrot", que ecoará, grotescamente distorcida, em Impressões de África: "Eau glaire de là l"anémone à midi négro".

O pai de Raymond Roussel morre quando este tem 17 anos, depois de ter bebido uma taça de champanhe gelado num dia quente. Deixa uma imensa fortuna, que os filhos e a viúva diligentemente dissiparão nas décadas seguintes. Muito ligado à mãe, é por insistência dela que Raymond entra no Conservatório e segue estudos musicais, tendo chegado a ser um pianista razoável. Também se tornará um excelente jogador de xadrez.

O fracasso de La Doublure não o desanima da escrita e publica várias novelas em verso até achar que encontrara defintivamente a sua voz própria em Impressões de África, que levou cinco anos a escrever. O livro passa despercebido, mas fascina Edmond Rostand, que sugere que a novela daria uma excelente peça de teatro. Roussel segue o conselho, e, não lhe faltando dinheiro pagar produções e chachets de grandes actores, faz representar três versões sucessivas do texto em teatros parisienses. A crítica satiriza impiedosamente o autor do texto, como voltará a fazer quando Roussell paga uma luxuosa encenação de Locus Solus no Théâtre Antoine. Mas o público das suas peças incluía um pequeno grupo de artistas e poetas, como Picabia e Duchamp ou Apollinaire e Desnos, que admiravam a extravagância de Roussel e provocavam a desconcertada assistência. Ficou célebre a palavra de ordem de Desnos, que aproveita o duplo sentido de claque, que em francês também significa bofetada: "Nós somos a bofetada e vocês são a cara". Uma das estreias acabou com a intervenção da polícia. Descontado o escritor e antropólogo Michel Leiris, cujo pai fora amigo de Roussel e que seria um dos grandes divulgadores da sua obra, este grupo constitui o primeiro núcleo de fãs do escritor, que depois engrossará com os autores do nouveau roman e, nos anos 60, com os movimentos de contra-cultura, numa época em que a obra de Roussell estava a ser reeditada, após longos anos de esquecimento, pelo editor Jacques Pauvert. Do outro lado do Atlântico, o poeta John Ashberry dará a conhecer Roussel aos poetas da escola de Nova Iorque.

Que Roussel tenha sido acolhido pela vanguarda artística parisiense, e mais tarde pela esquerda que fará o Maio de 68, não deixa de ser irónico. Politicamente conservador e com gostos bastante convencionais, Roussel considerava o surrealismo "un peu obscur". Os seus mestres eram Hugo, o algo piedosamente esquecido Pierre Loti, com os seus romances situados em paragens exóticas e, talvez acima de todos, Júlio Verne, de quem diz que se "elevou aos mais altos cumes que o verbo humano pode alcançar".

Enquanto teve dinheiro, Roussel viajou por todo o mundo, muitas vezes com a mãe - esta chegou a levar consigo um caixão numa excursão ao Oriente, para evitar que o seu possível falecimento causasse incómodos aos outros viajantes -, mas ele próprio garantia não ter aproveitado nada dessas viagens para os seus livros. De resto, quase não saía dos quartos de hotel, e o mais que fez para se integrar no ambiente local foi provar uma sopa de canguru na Austrália. Numa viagem à Índia, uma amiga pediu-lhe que lhe enviasse de lá algo de típico e exótico. Roussel mandou-lhe um aquecedor eléctrico.

Para servir essa técnica de viajar e ao mesmo tempo ficar em casa, Roussell chegou mesmo a construir um pioneiro protótipo de roulotte, com nove metros de comprimento, que incluía uma confortável sala de estar, um quarto, uma casa de banho e aposentos para a criadagem. Foi a Roma mostrá-la a Mussolini, e o Papa enviou um núncio para observar o veículo.

Este e outros gastos sumptuários levaram-no à miséria e à depressão. No dia 14 de Julho de 1933 foi encontrado morto num quarto de hotel de Palermo, vítima de uma dose excessiva de barbitúricos. As indicações que deixou para a publicação de Comment j"ai écrit certains de mes livres sugerem que tencionava desaparecer, e já teria tentado cortar os pulsos dias antes. No entanto, as circunstâncias da sua morte - às quais o romancista italiano Leonardo Sciascia dedicou um livro - nunca foram cabalmente esclarecidas.

O interesse por Roussel reavivou-se recentemente graças à descoberta, em 1989, de uma grande quantidade de documentos e manuscritos, incluindo diversos textos inéditos, que estavam arrumados há décadas num armazém.

O homem que chegara a profetizar que a sua fama "ensombraria a de Napoleão e Victor Hugo", escreve no final da vida: "Refugio-me, à falta de melhor, na esperança de que os meus livros possam vir a trazer-me algum florescimento póstumo". E desta vez acertou.

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