FILHOS DO DE SETEMBRO
Falámos com Jack Bauer sobre a Primavera Árabe, crianças e optimismo no pós-11 de Setembro. De Segurança Nacional a Touch, 24 passos separam a boa ficção televisiva
Kiefer Sutherland entra na minúscula sala sem janelas onde só há uma mesa, cadeiras, garrafas de água e um homem, silencioso, a um canto. Puxa da mão e pensamos em Sig Sauers, waterboarding e perguntas difíceis. Mas em vez de um sonoro "Dammit!" enquanto o relógio rola impiedosamente, sai um aceno adolescente e um sorriso de 100 watts. Jack Bauer agora é pai solteiro e quer tocar toda a gente. E na sala, de momento, só há jornalistas e um discreto tradutor.
O actor é vítima da força de uma personagem que, entre Outubro de 2001 (semanas depois dos atentados de 11 de Setembro) e Maio de 2010, marcou o espírito da última década televisiva, salvando o mundo um dia de cada vez (e foram oito dias) à boleia da paranóia antiterrorista.
Mas, naquela sala sem janelas em Madrid, o momento Bauer passa - "Quando escolhi fazer 24, foi porque adorei a ideia da série, não porque gostava da personagem", explica-nos. Porque Kiefer Sutherland, magro, maquilhado para a imprensa e o anfitrião da mesa-redonda de jornalistas, agora pensa positivo e tem uma série para promover - Touch, estreia mundial quase simultânea (em Portugal, esta terça-feira na Fox), a história de um viúvo, Martin Bohm, com um filho que não fala, obcecado por números e que vê e quer restabelecer as ligações entre toda a gente no planeta. Confuso? E se juntarmos à receita uns pós de Perdidos (há sequências de números, energia electromagnética e actores icónicos), Babel (gente desconhecida unida mundo fora, do Japão kinky aos terroristas de café em Bagdad), Heróis (o mesmo criador, Tim Kring, "saltos na evolução" humana, uma missão e sentimentalismo planetário) e umas colheradas de um ambiente M. Night Shyamalan nos anos iPhone? As dúvidas tirar-se-ão com o evoluir da série, que parece ser uma tentativa de Kring de fazer resultar a receita que estragou em Heróis.
Até lá, Kiefer Sutherland faz-nos pensar noutro ruivo estóico. Também na Fox, Segurança Nacional, provavelmente a melhor série da safra Inverno 2012, é um anti-24 (o New York Times chamou-lhe "24 para adultos"). Dúvida a dúvida, escuta a escuta, personagem a personagem, Segurança Nacional é o pós-Bauer, o pós-apocalipse e a ideia de prevenção de novos ataques. A série de dois dos obreiros de 24, Howard Gordon e Alex Gansa, é a certeza de que 11 de Setembro não nos deixou, mesmo que produtos como Touch queiram dizer-nos que estamos de ressaca e que tudo ficará bem.
Dois mil milhões de pessoas viram, em directo, as imagens dos atentados, tornando-os na tragédia mais mediática de sempre. Esgotando-lhe a imagem, muito pela dormência que tantas torres em queda, qual videoclip em loop na TV, criaram nos espectadores - ao ponto de pouco se ter feito sobre o 11/9 nas artes visuais. "Os americanos ainda não ultrapassaram os ataques de 11/9 em termos de cultura popular", confirma Paul Levinson, professor de Comunicação e Estudos de Media da Universidade Fordham, em Nova Iorque. Esta presença dos atentados no zeitgeist contemporâneo e na ficção televisiva americana tem tudo a ver com vulnerabilidade. "Até ao 11 de Setembro, a América achava-se invulnerável - o Havai não era sequer um estado quando, em 1941, Pearl Harbor foi atacado. Por isso, o terrorismo e os terroristas continuam a ser os principais vilões dos dramas televisivos", explica Levinson à revista 2.
Em Touch, Kiefer Sutherland não se livrou de terroristas. É viúvo do 11/9; uma das pessoas "tocadas" no primeiro episódio é um jovem iraquiano envolvido numa tentativa de atentado. Tim Kring, criador da série, explicou em conferência telefónica que o 11 de Setembro emoldura Touch porque "mudou a consciência da América sobre o mundo - apercebemo-nos da ideia de interconectividade e de que o mundo era muito mais pequeno do que pensávamos. A ideia de que éramos uma superpotência isolada, de que o que acontece a quilómetros de distância não pode afectar-nos aqui..." desapareceu com as duas torres e o Pentágono sob ataque.
Por mais new age que soe o discurso Touch - e a própria série nada tem de subtil nesse aspecto -, ela está de facto interligada com elementos-chave da TV americana. É um produto de um canal generalista, a Fox, tal como 24. Já Segurança Nacional é outra história. Título da Showtime, um canal por subscrição, foca-se no pathos político e humano do pós-11/9 e inspirou-se em Hatufim, a série israelita feita sob a sombra da detenção do soldado Gilad Shalit pelos palestinianos. Já 24 corporizou e explorou, a princípio de forma involuntária, a paranóia.
Segurança Nacional, feita com a crueza narrativa que uma generalista não permite, "é tão relevante hoje quanto 24 foi na primeira década do século XXI", diz Paul Levinson. "A série atinge o nervo do medo - a pessoa na casa ao lado pode ser terrorista. Segurança Nacional coloca esta história [de 24], ainda perigosa, numa embalagem diferente." A paranóia não se vive ao minuto como em 24, mas dia a dia, uma "burla longa" para perceber se, afinal, a Carrie de Claire Danes (uma agente da CIA assombrada por algo que lhe escapou no 11/9) tem ou não razão sobre o Nicholas Brody de Damian Lewis (um marine prisioneiro da Al-Qaeda que regressa aos EUA com os media e o sector político rendidos ao seu heroísmo). O Candidato da Verdade, de Richard Condon, é uma referência inevitável desta série em que o thriller psicológico tem mais tempo e conhecemos as personagens. Carrie vai ao WC ou pinta as unhas de um só pé, e vêmo-lo. Jack Bauer nunca tinha tempo para ir à casa de banho.
Voltamos sempre a Bauer, personagem-sintoma de uma década. "Infelizmente", atalha Kiefer Sutherland quando perguntamos sobre o que este Touch representa no pós-11 de Setembro - um dia em que Kiefer Sutherland estava a filmar a primeira temporada de 24 e, de repente, viu a sua personagem agigantar-se quando o mundo mudou sob a sombra de duas torres. "O cinismo é fácil; a esperança é muito difícil. Eu sou um cínico, tente pôr-se todo florzinhas comigo e eu espeto-lhe um dedo no olho. Mas esta série é, de forma única, esperançosa. Porque se foca não no que nos divide - diferenças culturais, linguísticas ou de religião e fé; foca-se nos fios em comum, independentes da cultura, da raça, da religião", diz o actor.
"Tive momentos na minha vida em que fui muito cínico, diria que pragmático, mas talvez estejamos prontos para algo um pouco mais esperançoso", efabula. No meio de declarações formatadas já muito repetidas na digressão de imprensa, Sutherland elabora. "Atravessámos uma década muito dura e... O que está a acontecer no Médio Oriente: vimos a revolta no Egipto, o que aconteceu na Líbia e os acontecimentos terríveis na Síria. Há pessoas a morrer hoje na Síria e ainda assim acho que é uma situação cheia de esperança - cara a cara, as novas ferramentas de comunicação, seja o Twitter ou o Facebook ou o que for; os jovens agora têm poder e estão a recuperar os seus países, os seus bairros e as suas vidas. Vai ser difícil e doloroso, mas vamos sair daí para uma era espantosa e, apesar das dificuldades, há aqui algo muito esperançoso."
Uma coisa, para além da silhueta das Torres Gémeas, une estas três séries: a tecnologia, as câmaras como portais para a dimensão do risco, mas sobretudo do voyeurismo, da vigilância. Nunca se sabe quem está a ver, ou a ouvir - o que, actualmente na medição de audiências portuguesa, serve como uma luva.
a A 2 viajou a convite da Fox