Vincent Farges traz o mar e as flores para a mesa

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A construção de uma refeição começa nas rochas, depois num campo e, por fim, confeccionando os ingredientes; abaixo, a versão final dos pratos com produtos frescos acabados de apanhar

Fomos aos bastidores da feitura de uma refeição do chef francês, que no Guincho tem um gigantesco quintal - algas e mexilhão no mar, flores comestíveis nos campos. O menu de Primavera sabe a natureza e sol. Alexandra Prado Coelho (texto) e Pedro Maia (fotos)

S e imagina que escrever sobre comida significa estar confortavelmente sentado em salas de jantar a provar pratos extraordinários está (parcialmente) enganado. Havemos de chegar à sala confortável e aos pratos extraordinários, mas antes disso Vincent Farges, o chef executivo da Fortaleza do Guincho, em Cascais, tem outros planos para nós.

É verdade que no restaurante da Fortaleza os sapatos se afundam no tapete. Mas para já temos um solo mais rochoso à espera. "Vamos apanhar algas?", propõe Vincent.

São dez da manhã, está um dia de sol e uma luz límpida no Guincho. A praia está quase deserta, à excepção de alguns surfistas nas ondas. Com uns sapatos de borracha preta, Vincent desce facilmente pelas rochas até ao sítio onde sabe que vai encontrar as melhores algas e os mexilhões que quer usar num dos seus pratos. Percebes também há, mas seria melhor irmos vê-los quando a maré estivesse mais baixa, aconselha.

Faz um gesto com a mão, como quem dá a cheirar o mar. "Sentem o cheiro do iodo? Quando vim para cá, em 2005, tinha perdido o hábito disto." Descemos pelas rochas atrás dele. Na mão leva uma tesoura e uma caixa de plástico. Apanha umas algas e dá-nos a provar. Sabem a sal e a mar. Continua com a mão dentro de água, à procura de outros tipos de algas. "Esta é alface do mar, é mais rija."

Vai pondo mexilhões e mais algas dentro da caixa. "Não os uso para comer, cozinho o peixe em cima, num vapor perfumado." Olha entusiasmado para o mar à nossa frente. "Temos um quintal aqui à porta - é impressionante. Vimos aqui buscar água do mar para deixar os bivalves a largar areia. É fantástico trabalhar assim, com tudo à disposição." Remexe a água com a mão. "Aquilo é uma anémona, mas é proibido apanhar."

Viramos as costas ao mar e escalamos mais algumas rochas para chegar ao pé do funcho do mar, "meio alga meio planta", que Vincent quer usar como guarnição do peixe que vamos comer. Experimentamos a flor - pequenas bolinhas que sabem a verde.

Mas Vincent tem mais planos. Desta vez vamos de carro, em direcção à Malveira. A Primavera ainda não começou oficialmente mas já há flores por todo o lado. Andamos um bocado até ao sítio onde o chef da Fortaleza costuma vir. Sai do carro, sempre de tesoura e caixa de plástico na mão, em direcção a um campo cheio de azedas amarelas, no meio das quais despontam flores de cores vivíssimas, amarelas e laranja. Têm que ser apanhadas no dia em que vão ser usadas porque murcham depressa, avisa. Chama-lhes capuchinhos e garante que são óptimas apenas com azeite e sal.

Daqui a uns meses já vai ser possível apanhar por aqui amoras silvestres e se nessa altura virem um homem vestido de branco no meio dos campos é possível que seja Vincent Farges. Bom, por agora apanhámos o almoço - podemos voltar à Fortaleza.

Produtos portugueses

Na cozinha trabalham nove cozinheiros, dois subchefes e quatro pessoas na zona de pastelaria, mas há sempre estagiários que vêm aprender (Vincent é o chef executivo, o consultor gastronómico da Fortaleza é Antoine Westermann e o restaurante ostenta uma estrela Michelin). O padeiro chega às cinco da manhã para deixar o pão feito para o almoço, o jantar e o pequeno-almoço do dia seguinte. "Tudo é feito aqui, excepto a manteiga", explica o chef.

Croissants, bolos, doces, gelados, bombons, todos são feitos pela equipa que trabalha na cozinha. E os pratos também, claro: há cozinheiros nas várias secções - peixes, carnes, entradas -, há uma zona sempre aquecida onde são feitos os empratamentos e há a área de saída dos pratos, que são todos controlados pelo chef antes de seguirem para a sala.

É meio da manhã e estão a chegar os legumes da Quinta do Poial, de Maria José Macedo. "A minha cozinha é muito natural. Cresci no campo [nasceu em Rillieux La Pape, perto de Lyon] e gosto de cozinhar com tudo o que vem do quintal", vai explicando Farges enquanto observa o que chegou da quinta de Azeitão. Encanta-se com o alho fresco ("tem um sabor intenso mas muito mais fresco" do que o alho seco).

Há várias caixinhas com flores amarelas, laranja, azuis. Pega num molho de alguma coisa que não identifica imediatamente. "Parece chalota novinha." Dá uma dentada para perceber. "Ui. Ça c"est puissant. É alho também, muito novinho." Há beldroegas e umas pequenas bolinhas que Vincent identifica como nabos. "O meu pai fazia uns nabos que eram umas bolas douradas, o boule d"or. No ano passado, a Maria José perguntou-me o que é que eu queria para este ano e eu propus-lhe que experimentasse isto. Ela conseguiu", diz, satisfeito.

Há muito poucos produtores assim, dispostos a arriscar, a experimentar coisas novas. E é pena. "Há cada vez mais cozinheiros e restaurantes, todos querem novidades e a oferta não muda muito. O problema é que temos que mandar vir de fora, é mais caro e às vezes não chega em condições. Gostava de ter em Portugal uma oferta muito maior." Sempre que pode, Vincent Farges cozinha com produtos portugueses. "Tudo o que é peixe é nacional". E não passa sem os mini-legumes da Quinta do Poial.

Esta semana, a Fortaleza do Guincho apresentou o menu de Primavera. "Os pratos vão ter uma explosão de cores e de sabores", promete o chef. Vai haver favas pequenas e ervilhas, flores e legumes, espargos brancos (que têm que ser importados), tomates de diferentes tipos. Primavera é tempo de borrego de leite, por exemplo. Também os peixes têm uma altura certa. Se as douradas são peixe de Outubro e Novembro, agora é altura do pregado e dos ouriços-do-mar.

Já temos algas, já temos legumes. É tempo de cozinhar. Primeiro bringir o funcho do mar - é só colocá-lo numa panela de água com muito sal, a ferver, e depois pô-lo em água gelada para "fixar a clorofila". Os legumes são salteados em azeite para a entrada: tartelette de legumes perfumados com fava tonka, creme de foie gras fumado e lascas de beef wagyu. Com uma pinça, Vincent vai dispondo as pequenas cenouras, nabos, rabanetes, dentro da base de massa fina, e termina com pétalas de flores. "A ideia é fazer lembrar um cesto de legumes como os que levamos ao mercado."

Daí a pouco estamos sentados à mesa, a olhar o mar que se estende frente à Fortaleza. Chega primeiro a tartelette, depois o rascasso (o peixe vermelho de espinhas na cabeça que Vincent nos mostrara na cozinha, avisando-nos de que nunca o devemos pisar) com os legumes salteados (funcho, beldroega, folhinhas do funcho do mar), e por fim um extraordinário robalo ao vapor com tártaro de ostras e creme iodado com algas e ostras trituradas. Um verdadeiro mergulho no mar à nossa frente.

Valeu a pena escalar as rochas, escorregando entre algas e mexilhões.

Fortaleza do Guincho

Estrada do Guincho, Cascais

Tel.: 214 870 491

www.guinchotel.pt

Funcionamento: todos os dias das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h30

Preço médio: 70€

Cartões de débito e de crédito

Não fumadores

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