Um vinho para testar a marca
Santa Comba Dão esticou a ideia de Salazar como homem da terra ao limite. Há algo a fazer, perguntámos, quando o ditador se torna numa marca comercial para vender vinho? O Memórias de Salazar ainda não existe e já há quem diga "deste vinho não beberei". O sobrinho-neto de Salazar preferia que fosse Memórias do Vimieiro. Por Graça Barbosa Ribeiro (texto) e Adriano Miranda (fotografias)
Há coisas que baralham João Lourenço, o presidente da Câmara de Santa Comba Dão. Uma delas é a confusão que o nome "Salazar" ainda provoca na cabeça das pessoas. À dele, não faz nenhuma. Nasceu no coração da cidade e nunca teve "pingo de curiosidade" pelo antigo presidente do Conselho - o ditador que governou Portugal entre 1932 e 1968. Mesmo agora, que por dever de ofício leu sobre ele, não entende como a marca Memórias de Salazar pode causar "tanto alarido", principalmente quando associada a um vinho. "Mas passa pela cabeça de alguém que eu queira vender a ideologia? Eu quero é vender o vinho!"
A sua formação é em Engenharia Civil - "Já percebe por que é que sou tão prático e objectivo", apresenta-se, a rir. Está de fato e gravata e não deve ser comum. Há quem o provoque, na brincadeira: "Estás todo aperaltado, hoje!" Nasceu ali, brincou ali, todos o conhecem. Até há pouco era capaz de dizer que quase todos eram seus amigos, agora, que vai a meio do segundo mandato e a câmara subiu ao top das mais endividadas, começa a achar que "há quem misture a política com questões pessoais". Seja como for, é o presidente da câmara - quem se vê numa aflição procura-o no escritório, interpela-o na rua, bate-lhe à porta de casa, à noite. "E o que é que eu faço? Sento-me a ver as coisas a acontecer?"
Refere-se ao aumento do desemprego, às lojas que estão às moscas, ao encerramento de serviços públicos, à falta de empresas, às que não se instalam ali e às que ameaçam fechar, aos jovens que fogem e só vê uma saída, o turismo. Mas como? Não é o primeiro a chegar à conclusão de que o único produto capaz de atrair pessoas a Santa Comba Dão se chama "Salazar". Todos o associam à terra. "Experimente dizer que é de Santa Comba Dão. A reacção, invariavelmente, é: "Ah, a terra do Salazar!" Por que não assumir que é assim, sem complexos, e tirar partido disso?", pergunta.
João Lourenço cita outros indícios de sucesso: o número de pessoas que por ali passa e pergunta onde é a casa onde Salazar nasceu; os que fizeram sumir num ápice dezenas de porta-chaves com a foto do ditador que alguém se lembrou de vender; o número de livros editados sobre Salazar...
Em relação aos livros, tem razão. Os editores portugueses sabem que quando põem "chocolate" num título esse livro tem chances de vender bem. "Salazar" parece ser outra palavra mágica. A editora Maria do Rosário Pedreira escreveu sobre este assunto no seu blogue há um ano. Explicou que há temas que conseguem instituir-se como marcas de sucesso e raramente dão mau resultado. "Os editores descobriram que Salazar é um deles - e, desde então, todos os livros que tragam no título o nome e na capa o retrato do homem que se manteve mais tempo à frente dos destinos da Nação são um negócio praticamente seguro". Ontem, Maria do Rosário Pedreira disse que nada fez alterar esta sua convicção.
"Salazar foi um ditador que deixou uma marca muito forte. Não renego a força que o nome tem para o grande público. Desde sempre", concorda Guilhermina Gomes, que em 1993 publicou no Círculo de Leitores Salazar e Caetano: Cartas secretas 1932-1968, do historiador José Freire Antunes. Foi um best-seller, na época - vendeu entre 25 e 30 mil exemplares. Mas exemplos não faltam. Máscaras de Salazar, de Fernando Dacosta, publicado em 1997 na Editorial Notícias e depois na Casa das Letras, já vai na 26.ª edição e vendeu perto de 50 mil exemplares. A biografia política Salazar, de Filipe Ribeiro de Menezes, de 2010, também foi um best-seller na opinião da editora, que não costuma revelar números de vendas, adiantando apenas que está na quarta edição e que foi o livro de ensaio mais vendido nesse ano.
Testar a marca
"Vendem-se milhares de livros com a "marca Salazar" e ninguém fala disso, ninguém se escandaliza. E por que não um vinho?", espanta-se João Lourenço. Foi uma escolha criteriosa, "para testar a marca". "Salazar/ produtos nacionais/ produtos da terra/ naturais/ saudáveis/ biológicos/ não-manipulados" - para o presidente da câmara, "a associação é óbvia". Está a negociar com um produtor cujo nome não revela e a estudar a forma da garrafa e o design do rótulo. "Será um vinho de alta qualidade, porque, se não for, também não é a marca sozinha que o vende". E mais não diz, que "o segredo é a alma do negócio".
São 14h30, mas no centro histórico de Santa Comba Dão não se avista vivalma. As lojas parecem abandonadas até se perceber que há um vendedor que desistiu de esperar e se sentou, escondido, por detrás do balcão. Essas pessoas não falam no assunto. Têm "porta aberta" e o negócio já corre mal sem que se metam em polémicas. É preciso caminhar para encontrar alguém. E, depois, insistir. Nem sempre com os melhores resultados: "Qual é o problema da marca? O problema e o que é notícia é virem de fora para despromover o concelho", reage João Nunes, de 35 anos, bombeiro profissional. Admira o ditador e diz que "mais valia sete a comer uma sardinha que gente a passar fome, como agora".
João Alberto Martins, técnico oficial de contas, de 60 anos, interrompe a corrida de regresso ao trabalho, depois do almoço. Diz que contra o vinho não tem nada, desde que seja bom e do Dão. Mas, apesar de ser do PSD e amigo de João Lourenço, não antevê um sucesso: "O nome de Salazar ainda provoca muita irritação acústica", explica.
Mais à frente está um grupo de uns cinco jovens, que se entretêm numa conversa indolente sob céu pesado de trovoada. Hélder Graça é o único que tem opinião. Concorda com a marca: "E por que não?" É militante da JS, mas, de momento, quem fala é o cidadão de 23 anos, ""recém-desempregado", porque recém-licenciado em Marketing e Relações Públicas": "É capaz de resultar e não é por um vinho se chamar Salazar que o fascismo regressa", diz. Com isso concordam os historiadores.
Do outro lado da linha, silêncio. Depois: "Disse um vinho de marca Memórias de Salazar?" E a seguir uma longa e sonora gargalhada. O telefonema é para a Irlanda, onde dá aulas Filipe Ribeiro de Menezes, o autor da biografia política Salazar, da D. Quixote. Demora um bocadinho a recompor-se. "Desculpe lá, mas é uma coisa tão descabida", diz, ainda a rir.
Tal como farão outros historiadores, Ribeiro de Menezes relaciona de imediato a marca com a conhecida intenção da câmara (quase tão velha como a democracia) de construir um museu ou um centro de interpretação sobre o Estado Novo, na propriedade que era de Salazar. "Uma coisa é um espaço de exposição, de investigação, de debate. Outra é vender produtos, para mais chamados Memórias de Salazar", diz o historiador. Novo silêncio, agora de reflexão. "No mínimo, é de mau gosto, no máximo um insulto às vítimas do Estado Novo, mas, principalmente, é um disparate", resume.
O autor de Salazar não é conhecido como um homem de esquerda. Nota-se a diferença quando é Fernando Rosas, historiador e ex-dirigente do BE, a atender o telefone. A gargalhada de surpresa é a mesma, os adjectivos que se lhe seguem ganham em diversidade e exuberância: "É uma ideia oportunista", "vulgar" e "saloia", "lamentável", "imbecil, "bacoca","patética". Estão inseridos em várias frases, ditas num tom que passa da surpresa à indignação e desta ao desprezo: "Em suma, uma palhaçada"
Fernando Rosas, a quem João Lourenço consultou, em tempos, sobre a intenção de construir o Centro de Interpretação do Estado Novo, desta vez desvaloriza a coisa. "Um museu com os chinelos e o penico do ditador podia tornar-se num local de romaria para salazaristas nostálgicos; do vinho não vem mal ao mundo". Nota, com desprezo na voz, que a câmara "só quer ganhar umas coroas" e pensa que mesmo "os salazaristas mais ortodoxos acharão pouca piada a que o nome de Salazar acabe como marca de vinho". Para além disso, não augura "grande futuro" à marca. Parece-lhe que entre os mais velhos haverá mais gente a reagir mal do que bem e que pelos mais novos, "para quem Salazar, D. João I ou o marquês de Pombal são igualmente distantes", ela será "completamente ignorada".
Ribeiro de Menezes avisa que nunca comprará um produto com a marca Memórias de Salazar. O historiador e politólogo António Costa Pinto assegura: "Nunca beberei desse vinho". Depois da gargalhada inicial - parece uma senha entre os historiadores - ressalva que o centro de interpretação "depende da concepção, não é necessariamente mau". Há muitos casos de turismo político. Lembra os campos de Auschwitz, o tour do comunismo em Cracóvia, o Museu do Terror em Budapeste. Em relação à marca, é diferente. Avisa que ao presidente da câmara "pode muito bem sair o tiro pela culatra". Há factos que enganam, nota: "A eleição de Salazar como "o maior português de sempre", num concurso televisivo, há uns anos, não foi o resultado de um estudo de mercado, mas de um fenómeno estudado, o do activismo minoritário: ganharam os que telefonaram mais vezes."
João Wengorovius, ex-gestor de uma das agências de publicidade mais premiadas, a BBDO, afirma que tem informação insuficiente para se pronunciar sobre a marca Memórias de Salazar. "Em teoria, um nome polémico, polarizador, pode ter influência na notoriedade. Mas o facto de as pessoas falarem da marca de um vinho não significa necessariamente que o experimentem e muito menos que o comprem, que o levem para casa". "Depois, o mercado dos vinhos é muito fragmentado. O vinho é de onde? É de boa qualidade? Quais vão ser os canais de distribuição? Vai estar à venda nos supermercados? Vai estar disponível nos restaurantes? A que preço? A multiplicidade de factores que influenciam o sucesso de uma marca é imensa", diz.
Nada proíbe
Legal, pelo menos, é. Nada na legislação o proíbe e da família do antigo presidente do Conselho - que poderia considerar o acto uma ofensa ao bom-nome ou até reclamar por lhe ser dada uma utilização comercial - parece não haver oposição.
"Por que é havia de me chocar? O meu tio produzia vinho", diz Rui Salazar. Na verdade, acha que usar o nome de Salazar "é uma provocação escusada". "Podia ser Memórias do Vimieiro, a terra onde ele nasceu", sugere. Mostra uma garrafa com uma forma invulgar, de vidro verde, um cacho de uvas em alto-relevo, em baixo o nome: Quinta das Ladeiras. O molde e as primeiras garrafas foram oferecidos a Salazar pelo médico Bissaya Barreto, nos anos 60. "Quando doei o meu terço da herança à câmara e milhares de volumes da biblioteca de Salazar, também entreguei umas duas mil garrafas vazias", diz Rui Salazar. Levanta os olhos da garrafa que segura nas duas mãos, num laivo de irritação: "Será que ele as vai usar sem nos dizer nada?"
Ele, o presidente da câmara, diz que não: "Isso é que já era de mais". "Demasiada associação à figura", explicita. Aparentemente, a maior parte das pessoas só relaciona o ditador com aquele produto graças à conhecida afirmação de que "beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses". Mas a garrafa e a actividade vitivinícola da família de Salazar, que só produzia para consumo próprio e para oferecer aos amigos, têm sido divulgadas. Rui Salazar, por exemplo, emprestou 400 peças ao Museu do Vinho de Anadia. "Eram para o Centro de Interpretação, mas, por este andar, ficam por lá", diz, ressentido.
O sobrinho-neto do antigo presidente do Conselho, com formação superior em História, professor aposentado, de 63 anos, sente-se traído, enganado. Quando fez a doação, em 2006, João Lourenço dizia que o centro de interpretação estaria de pé em 2007. Apesar de admirar Salazar, nem sequer pretendia mais do que "um espaço dedicado a um estudo sério do período do Estado Novo, no que ele teve de bom e de mau". Agora emociona-se a caminhar por entre os buracos no soalho da casa onde viveu o tio, a mostrar a ruína dos telhados do sítio onde Salazar nasceu, os vidros partidos das casas, as portas arrancadas, o abandono escuro da adega, a tristeza quebradiça e seca da magnólia, as ervas indomáveis e o lixo que cobrem o jardim.
Antifascistas vs saudosistas
O presidente da câmara, esse, é, como ele próprio diz, prático e objectivo: "Aquilo chegou a um estado tal que mais vale demolir e voltar a construir e só posso demolir quando tiver dinheiro para construir. Para além de dinheiro, preciso de expropriar a parte do segundo herdeiro." Enquanto desata esses nós, vai testando a marca e constituindo a associação que vai gerir o centro. Assim, dito de rajada, "parece simples". "Mas é uma coisa delicada. De um lado os antifascistas, do outro os saudosistas! E em ambos os lados alguns loucos!", exclama João Lourenço.
Para comprar o vinho estão todos convidados, a questão do acesso à associação tem contornos diferentes. O presidente da câmara diz que é preciso blindar os estatutos da associação de desenvolvimento local, que será constituída "um dia destes", à entrada de pessoas que tenham como intenção transformar a antiga propriedade "num santuário". Nem que para isso tenha de "ser um bocadinho antidemocrático e dar plenos poderes à câmara para aprovar a entrada de sócios e para os expulsar", admite. O que não resolve tudo - "Como é que os distinguimos? Tem de ser devagar", diz.
Tem sido tão devagar que a ideia já vinha do anterior presidente da câmara, socialista, e não saiu do lugar com este, do PSD. António Oliveira, de 64 anos, proprietário de uma estalagem em Santa Comba, já acolheu "dezenas de doutores e doutoras que querem financiar a obra". Impacienta-se. Acha que o autarca se deixa assustar pelo alvoroço que se levanta, "sempre que se fala em Salazar". É uma coisa que o irrita, a ele, António Oliveira, que emigrou para a Alemanha em 1973 e quando regressou, há 25 anos, encontrou Portugal "pior". "Mas a gente vai lá à terra dos outros dizer como é que a hão-de governar?"
Os primeiros a manifestarem-se foram os dirigentes da União dos Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), visita frequente de Santa Comba. Assim que se soube que Memórias de Salazar era marca registada, prometeram-lhe "a sua firme oposição". "Mas há-de ver os comentários às notícias, na Internet...", comenta o recém-licenciado Hélder Graça.
As críticas, quando vêm "de fora", tocam num nervo sensível comum a todos os naturais de Santa Comba. Viu-se em 2007, quando gente de todos os partidos pôs em sentido quase cem militares da GNR, que a custo evitaram confrontos com os membros da URAP, que foram "em autocarros" manifestar-se ali contra "o museu". João Lourenço, que nessa altura até agiu "de forma democrática", cedendo o auditório da câmara aos antifascistas para que debatessem as vantagens e desvantagens do projecto, garante que ninguém lhe encontra sinais de fraqueza. "Todos se julgam no direito de dizer aos santa-combadenses o que é que podem e não podem fazer. Era o que mais faltava!". Assegura que o centro, "um dia", há-de ir para a frente. O vinho Memórias de Salazar chega já no Verão. com Isabel Coutinho