Pequenos crimes entre amigos

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A intromissão do ponto de vista de uma personagem sobre as outras: o mais perto que se fica da câmara à mão de Cassavetes, colada ao corpo e aos rostos actores JAN VERSWEYVELD
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A intromissão do ponto de vista de uma personagem sobre as outras: o mais perto que se fica da câmara à mão de Cassavetes, colada ao corpo e aos rostos actores JAN VERSWEYVELD
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A intromissão do ponto de vista de uma personagem sobre as outras: o mais perto que se fica da câmara à mão de Cassavetes, colada ao corpo e aos rostos actores JAN VERSWEYVELD

Um texto de uma violência inaudita sobre homens a tornarem-se homens. Ivo Van Hove leva ao palco o texto de John Cassavetes a partir do filme Husbands. Hoje e amanhã no CCB.

Uma pessoa é como uma bala. Quando é disparada estilhaça tudo à sua volta em mil pedaços." É assim que Ivo Van Hove, encenador flamengo que dirige a companhia holandesa Toonelgroep, descreve as personagens criadas por John Cassavetes, realizador e argumentista norte-americano de quem já adaptou os argumentos dos filmes Faces (1968, encenado em 1997), Opening Night (1978, encenado em 2005) e agora Husbands (1970). Ivo Van Hove poderia estar a falar apenas de personagens mas, tal como Cassavetes, está também a falar das pessoas na vida real, "no improviso do dia-a-dia". "Cassavetes era muito realista na descrição dos comportamentos humanos e é por isso que se diz sempre que os seus filmes parecem não ser sobre grande coisa, até mesmo unidimensionais. É preciso olhar pelo interior das camadas que estão escondidas". A dimensão jazzística que caracterizava os filmes de Cassavetes, aparentes improvisações, esconde afinal agudas leituras sobre o choque que é o confronto com a realidade.

Husbands é um texto de encobrimentos, cheio de zonas de sombra, "escrito até ao último detalhe", evitando a improvisação, que começa com três homens no funeral de um amigo. O que se segue é uma viagem emocional violenta ao inferno que dizem ser as suas vidas, como se a morte do seu mais próximo parceiro tivesse sido um alerta, um ponto de viragem. Gus, Archie e Harry irão perguntar por onde andam as suas vidas e encontrarão na amizade, nos copos, na noite, nos quartos de hotel e nas mulheres as aparentes respostas que os levarão ao ponto de partida. Mudados? "É um equívoco pensar que a evolução das personagens, como aliás a das pessoas, é linear", diz Ivo Van Hove, quando o encontrámos no dia após a estreia do espectáculo no Théâtre National de Bretagne, em Rennes, onde inaugurou uma digressão a 28 de Fevereiro no âmbito do programa Prospero, do qual faz parte o Centro Cultural de Belém, onde se apresenta hoje e amanhã.

"É verdade que a morte do amigo os leva a reflectir sobre quem são e o que fazem. E que, na dúvida, a fuga é a melhor resposta. Mas fogem para onde?". No filme as personagens voam para Londres, na peça também, mas o facto de ser o mesmo cenário, o mesmo enquadramento, permite especular sobre o verdadeiro ponto de fuga em direcção ao qual se dirigem. A cenografia, assinada por Jan Versweyveld, faz mover duas enormes paredes e um ecrã, transformando-os num bar, num parque de estacionamento, num quarto de hotel, na casa de cada um, na sala de espera do aeroporto e, inevitavelmente, no interior da cabeça de cada um. "O teatro tem essa vantagem, em comparação com o cinema, permite utilizar tudo à nossa volta e dar-lhe um outro sentido", diz-nos o encenador. Manipulação? "Prefiro falar num lugar de interrogação entre as tensões do indivíduo e o que o rodeia".

São personagens que o encenador não hesita em descrever como misóginas e logo a seguir profundamente sedutoras. "São homens de uma tamanha fragilidade, verdadeiras crianças na gestão dos seus sentimentos. Mesmo que se comportem como pessoas terríveis e violentas, não expõem senão a sua imensa vulnerabilidade. Não são predadores, só desejam o mesmo amor que não conseguem dar".

Conflito

Ivo Van Hove consegue, hoje, aos 54 anos, falar "não sei se com clareza" de um texto que muito o impressionou quando o viu pela primeira vez no cinema, "vinte anos acabados de fazer". "O filme tocou-me de tal forma que aquilo que sei dizer sobre ele não é tanto sobre o filme mas mais sobre o que senti: confusão, desordem, incompreensão. Que violência movia aqueles homens? Como tinham chegado ali?"

Cassavetes escreveu Husbands depois de ter iniciado um percurso de ruptura e reclusão relativamente ao cinema independente que se começara a produzir à margem, e depois mais tarde no interior, da máquina de Hollywood. Vindo do teatro, acreditava que era a partir do conflito, latente ou presente, entre o actor e a personagem que se deveria trabalhar. E por "gostar de pessoas que se cobrem de ridículo" (expressão de Peter Falk, um dos três actores do filme, os outros eram Ben Gazarra e o próprio Cassavetes), não acreditava em respostas e preferia fazer perguntas: "Nunca há uma resposta fácil. As perguntas são sempre melhores que as respostas. E a razão pela qual não gosto das respostas é simples: não gosto de fazer com que o público acredite em verdades fabricadas" (depoimento recolhido no documentário A constante forge, 2000, de Charles Kiselyak).

"O problema dos filmes é que estão cheios de pessoas perfeitas", dizia Cassavetes. "O problema do teatro é que as pessoas não acreditam que aquilo não é a vida", diz Ivo Van Hove que decidiu levar mais longe a contradição da linearidade e da própria improvisação ao introduzir no texto - que assegura ter sido a base do espectáculo e não o filme - dois elementos perturbadores. O primeiro é a intromissão do ponto de vista da personagem sobre as outras, através de câmaras de filmar - "verdadeiro material de guerra, usado pelos militares americanos no Afeganistão", diz um encenador tão divertido com a técnica que nos perguntamos se não será uma transferência de entusiasmo provocada pelo anúncio da crise de meia idade, e ele ri-se. "O espectador pode escolher o que quer ver e, nessa escolha, perceber se se identifica, de facto, com estas personagens", explica. É um artifício tecnológico, mas é também o mais aproximado que Ivo Van Hove fica da câmara à mão de Cassavetes, tão colada ao corpo e ao rosto dos actores, que nos obriga a tomar uma posição. "Realidade", perguntou Cassavetes. "Realidade", volta a perguntar Ivo Van Hove.

O outro elemento perturbador: à parte os três protagonistas, todas as outras personagens masculinas são interpretadas pelo mesmo actor, tal como todas as personagens femininas são interpretadas pela mesma actriz. O encenador explica-se: "Estes homens procuram uma verdade, uma sinceridade, ou uma pureza, não sei ainda como lhe chamar, que projectam nas mulheres que vão encontrando, sejam as suas esposas ou as prostitutas que levam para o hotel em Londres. Mas estas mulheres não são senão um ideal de mulher, que na verdade nem existirá, somente enquanto fantasia e, por isso, mesmo que lhe chamem um nome diferente, elas não se distinguem entre si". A palavra-chave é percepção.

Por entre os diálogos oblíquos, as verdades confusas, a ambiguidade das suas acções, e a falsa sensação de invencibilidade, estes homens, que sabemos perdidos desde o início, vivem como se se forçassem a ir para rua como se fossem para o bar como se fossem para a guerra como se fossem para a vida de todos os dias.

Estes retratos de sonâmbulos que têm de acordar, estes corpos que deambulam sem ordem aparente são, no espectáculo de Van Hove, marcados, pressionados, por músicas de Bruce Springsteen que reforçam a violência crua que é a vida do novo homem americano, protagonista de uma ressaca pós-anos 1960 e, tendo crescido, se vê rodeado dos filhos, dos sonhos por cumprir e de um futuro que não cabe no tempo que têm. São canções que lhes vão dizendo quão distantes estão dos homens que quiseram ser. Husbands terminará com o regresso de dois dos amigos a casa, aos sacos com presentes, às crianças e aos subúrbios. Terminará na ambiguidade, oferecendo a opção entre uma vida aparentemente estável e uma outra vida, provavelmente só aparente.

O Ípsilon viajou a convite do Programa Próspero

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