Torne-se perito

Naquele dia o Japão mudou, mas tudo está ainda em suspenso

Foto
Imagens há um ano e agora, nas prefeituras de Myagi e Iiate, entre as mais afectadas pelo tsunami de 11 de Março de 2011 fotos: KYODO/REUTERS

Reza a lenda que o Japão está às costas de um peixe-gato, cujos estremeções produzem sismos e tsunamis. O de 11 de Março de 2011 abalou as fundações da sociedade nipónica do pós-II Guerra e seu paradoxal enamoramento com a energia nuclear

Futoshi Toba é o presidente da câmara de uma vila que já não existe. Rikuzentakata, uma pitoresca vila costeira do Nordeste do Japão foi literalmente apagada do mapa há um ano. Carros, casas e árvores - todos os 70 mil pinheiros plantados como protecção contra tsunamis, menos um, que resistiu como um milagre - foram arrastados e esmagados, reduzidos a papa.

Hoje o lixo foi removido, pelo menos arrumado, mas resta o terreno vago, fantasmagórico. E o presidente da câmara, que perdeu a mulher naquele dia em que tudo mudou no Japão, não desiste de reconstruir a sua cidade.

"Continuamos na linha de partida para a maratona da reconstrução", disse Futoshi Toba, de 47 anos, no seu escritório instalado num dos pré-fabricados postos na colina de onde se vêem as ruínas do que foi o porto de pesca de Rikuzentakata, onde vivam mais de 23 mil pessoas antes do tsunami e do sismo de 9 na escala de Richter que atingiu o Nordeste do Japão a 11 de Março de 2011. Nesse dia, morreu 10% da população. E 90% dos edifícios foram arrasados. Hoje, o que relata quem passa por Rikuzentakata é um vazio chocante.

O presidente da câmara queixa-se de dificuldades burocráticas, de falta de apoio do poder central, que coloca entraves difíceis de ultrapassar numa zona de catástrofe. Por exemplo, relata a revista The Economist, não se conseguia construir um supermercado em Rikuzentakata porque continuam a vigorar as leis para proteger as lojas dos pequenos comerciantes - que foram arrasadas.

"Se o Governo quer envolver-se na reconstrução, deve dar-nos instruções claras. Se não, deve deixar quem está no terreno decidir", disse Futoshi Toba à AFP. Há "um fosso enorme" entre os responsáveis locais, nas regiões afectadas, e os políticos da capital, diz o autarca, que ficou a criar sozinho os seus dois filhos, de 11 e 13 anos, na vila que já não existe.

Quase um ano após o tsunami, a reconstrução avança a passo de caracol - a agência responsável por coordenar a forma como os ministérios gastarão o orçamento de 175 mil milhões de dólares (133,4 mil milhões de euros) para a reconstrução só começou a funcionar em Fevereiro.

Os destroços feitos pela onda gigante acumulam-se ao longo da costa nordeste do Japão, arrumados mas transformados em marcos que ameaçam tornar-se permanentes na paisagem: 22,5 milhões de toneladas de destroços, o equivalente a 20 anos de resíduos sólidos urbanos, em termos de processamento. Até agora, só 6% foram tratados de forma definitiva.

Mais de 320 mil refugiados, pessoas que ficaram sem as suas casas, estão espalhadas pelo país, em abrigos temporários, sem poderem regressar a casa. O Governo deve dar-lhes ajuda para reconstruírem, mas entretanto têm de pagar hipotecas de casas que já não existem.

Mas as cerca de 100 mil pessoas que viviam na área de exclusão num raio de 20 quilómetros em torno da central nuclear de Fukushima, destruída em resultado das ondas gigantes do tsunami, não poderão regressar durante décadas.

Para não causar pânico

Esse pode ser o caso dos 21 mil ex-habitantes de Namie, que foram obrigados a deixar as suas casas, mas não foram informados de que seguiam por um percurso onde a radiação era ainda pior do que aquela a que estavam sujeitos se ficassem quietos, com as portas e janelas fechadas.

O Governo e a empresa proprietária da central de Fukushima, a Tóquio Electric Power Company (Tepco), julgaram melhor não divulgar as previsões sobre a deslocação da nuvem de radioactividade "para não criar pânico", veio a saber-se recentemente. "Não estou zangado. É mais do que isso", disse o presidente da câmara de Namie à revista alemã Der Spiegel, outro autarca sem a sua terra. "Isto foi homicídio. Por que é que tentaram matar-nos? Por que é que ninguém foi levado a tribunal? Há pessoas a sofrer por causa disto."

A história da vila rasurada de Rikuzentakata e do seu presidente que luta para a reconstruir, e a dos habitantes de Namie, enviados para o local onde estava concentrada a nuvem de radioactividade são exemplares para explicar a enorme perda de confiança que varreu o Japão após o trauma da tripla catástrofe - sismo, tsunami e o pior acidente nuclear civil desde o da central de Tchernobil, na Ucrânia, em 1986.

Há uma enorme perda de confiança: no Governo, nos políticos, na energia nuclear, que se tinha transformado em algo completamente indiscutível no Japão. A confiança dos japoneses nas instituições caiu para níveis inferiores às dos russos sob o Governo de Vladimir Putin, diz a Economist. Houve uma perda de legitimidade dos políticos e da indústria nuclear, que durante anos entreteceram laços - criando a "vila nuclear", uma elite na qual participam os executivos da Tepco - e as figuras gradas do Ministério da Economia, Comércio e Indústria, e na qual participa também a Yakuza, a máfia japonesa.

O que se foi tornando claro no último ano é que na central nuclear de Fukushima acidentada não havia sequer um plano de emergência para lidar com um muito previsível sismo de grau elevado seguido de um grande tsunami.

"A indústria e o Governo disseram aos japoneses que a energia nuclear era muito segura, que estes acidentes não podiam acontecer. Não é de surpreender que tenha havido este oscilar do pêndulo: dois terços da população apoiava a energia nuclear antes do acidente de Fukushima, e agora dois terços opõem-se-lhe", comentou o especialista em energia nuclear do think tank Council on Foreign Relations Charles D. Ferguson.

Muitos intelectuais têm estado na frente da contestação. O escritor Kenzaburo Oe, Nobel da Literatura de 1994, foi o mais destacado. Juntou-se ao movimento Sayonara Genpatsu (Adeus ao nuclear), pediu a demissão dos responsáveis pelo acidente e criticou a aposta nuclear do Japão, que "pôs a produção eléctrica e a fortaleza económica do Japão à frente de tudo, até das gerações futuras".

Já o escritor Haruki Murakami lamentou que seja o país que sofreu com duas bombas atómicas que viva agora uma catástrofe nuclear, criada por sua própria mão: "É a segunda desgraça nuclear da história japonesa, mas desta vez é diferente. Fizemo-la nós próprios."

Sugerir correcção