Nuno Portas é a cidade portuguesa

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Nuno Grande meets Nuno Portas, em Guimarães: um encontro natural, do discípulo com o mestre, no chão comum da arquitectura e do urbanismo.

A arquitectura "não resolve o problema da cidade". Por isso Nuno Portas virou-se para o urbanismo, para as periferias e para a "cidade difusa". Uma exposição traça o seu percurso, em Guimarães 2012

Nuno meets Nuno, em Guimarães. É um encontro natural, quase se diria do discípulo com o mestre, no chão comum da arquitectura e do urbanismo. Nuno Grande (n. Luanda, 1966) é o comissário da exposição que a Capital Europeia da Cultura dedica a Nuno Portas (n. Vila Viçosa, 1934), e que amanhã é inaugurada na antiga Fábrica ASA, em Guimarães. Chama-se O Ser Urbano - Nos caminhos de Nuno Portas, e o curador apresenta-a como um "gabinete de curiosidades", um "repositório dos diversos elementos que Portas tem à sua volta: os livros, os textos, as fotografias, os autores de referência". Assim se refaz um percurso de mais de meio século de actividade (1956-2010), em que Nuno Portas se tornou uma referência na teoria e na prática dos estudos urbanos. E que permite a Nuno Grande sintetizá-lo assim: "Nuno Portas é a cidade portuguesa".

O Ser Urbano é também uma homenagem de Guimarães ao seu papel na definição do que a cidade é hoje, do ponto de vista urbanístico. Como é que a vê, na actualidade? E como acompanhou a conquista do título de Património Mundial da Humanidade e de Capital Europeia da Cultura?

No início dos anos 80, não pude resistir ao convite de Guimarães para fazer o PDM [Plano Director Municipal], que tinha acabado de ser legislado...

O arquitecto Fernando Távora entrou nesse projecto.

O Távora já estava lá. Ele já tinha feito estudos para a Ribeira/Barredo [no Porto], que aproveitei na altura em que se fez o CRUARB [Comissariado para a Renovação Urbana da Área de Ribeira/Barredo, lançado em 1974]. Esses estudos do Távora, ainda no tempo da "outra senhora", vieram depois dar também uma classificação da Unesco para o Porto.

Guimarães distinguiu-se por ter mantido a população histórica no centro urbano...

Os centros históricos eram a questão mais discutida, na altura: ou as pessoas saíam, e ia para lá outra classe social; ou reabilitava-se o património mantendo quem lá vivia. Estas coisas não são sagradas e limpas, como muitas vezes se pretende. Mas Guimarães era um caso raro: tem um centro histórico precioso e, ao mesmo tempo, um modelo de cidade difusa, dispersa. É um caso pequeno, em dimensão, mas que tem todos estes condimentos, incluindo a Universidade. Tínhamos um centro histórico e o resto sem história, mas esta parte sem história já tinha cem anos, porque a dispersão do concelho é a mesma de Santo Tirso, de Famalicão, de toda a área do têxtil, que é parecidíssima com os arredores de Barcelona, por exemplo. Havia aqui uma situação dualista. Era preciso melhorar o centro histórico, mas ele nunca é a solução para o resto. E o que está à volta de Guimarães podia ter impedido o centro histórico de ser classificado. Porque os estrangeiros são muito puristas. Dizem que temos que limpar tudo o que está à volta. Ora o que está à volta é a vida. Guimarães tem 50 mil pessoas na cidade compacta e 100 mil fora. Isto não se muda. É de um irrealismo total.

Um dos seus cavalos de batalha tem sido a atenção à periferia.

Não porque a periferia seja a terra dos pobrezinhos, mas porque a cidade de hoje é cada vez mais uma cidade que se espalma. Porque há transportes. Goste-se ou não, a mobilidade de hoje não tem comparação com a do século XVIII.

Porque é que optou pelo urbanismo em vez da arquitectura?

Isso aconteceu na segunda metade dos anos 60. Eu era um apaixonado pela arquitectura, mas a minha primeira grande questão foi saber se optaria pelo cinema. Acabei Arquitectura, fiz a tropa e pensei em ir estudar realização na Cinecittà. Tinha muito contacto com a Itália, e estava hesitante. Havia também o problema de casar ou não casar: se fosse para Roma, adiava o casamento. Nessa altura, isso era difícil, hoje é mais fácil. Era a grande altura de decidir. Fui ter com o [Nuno] Teotónio Pereira, que conhecia vagamente, e disse-lhe: "Há muita gente a fazer arquitectura em Portugal, mas não a escrever; eu gosto muito de cinema, mas tenho que viver, que montar uma casa, etc, e não tenho a certeza se vale a pena ficar como arquitecto ou não". Ele disse-me: "Tenho aí uma oportunidade". E deu-me uma casa a fazer, na Praia das Maçãs. O Teotónio entregou-me essa casa como um teste, para saber se eu devia ficar no atelier dele. Fiquei 17 anos, até ao 25 de Abril. Foi decisivo para mim. Posso dizer que tudo aquilo que sou, devo-lho a ele. Simplesmente, esta minha inquietude, de andar sempre a mexer e a mudar, levou-me depois a dizer-lhe: "Interessa-me fazer projectos, mas também escrever sobre a arquitectura". A revista Arquitectura tinha surgido nessa altura, e comecei a escrever. Depois virei-me para a habitação social, e logo a seguir para o urbanismo, tudo coisas muito políticas.

Como vê a situação da arquitectura portuguesa, com os Pritzker, mas também com o desemprego e os jovens a terem de emigrar?

Quando passei para as políticas urbanas, que marcaram todo o período do 25 de Abril até hoje, as minhas incursões na arquitectura de edifícios passaram a ser excepção. De vez em quando, fazia umas colaborações. Mas nunca quis fazer tudo ao mesmo tempo. Queria aplicar as minhas capacidades em coisas nas quais quase ninguém estava a meter-se. Era uma questão de opção política. Continuo a ser reformista, porque acho que a arquitectura e o urbanismo nunca foram revolucionários. São, quando muito, modestamente reformadores. A arquitectura ajuda a viver dentro das condições objectivas que a sociedade permite. Porque é cara, porque tem de ter o acordo do cliente... Achei sempre que o melhor era funcionar entre estes dois caminhos, o da arquitectura tout court, que é o que preocupa claramente o Siza, o Souto de Moura, o Gonçalo Byrne, pessoas que admiro muito, e os urbanistas burocratas que fazem só coisas abstractas. Andei sempre a trabalhar neste terreno intermédio.

Mas isso não significou uma desvalorização da arquitectura? Disse uma vez que a cidade é mais importante do que a arquitectura.

Não é uma desvalorização. A arquitectura tem o seu caminho, mas não resolve o problema da cidade. Portanto, se eu ajudar a melhorar a cidade, isso não fará mal nenhum à arquitectura, até porque alguém poderá fazê-la melhor.

É por isso que diz que gosta de trabalhar o chão...

Exactamente. Estou sempre a falar do chão. O problema é desenhar o espaço colectivo, porque depois o privado virá de várias formas. Nos planos, não faço os feitios, faço as malhas; os feitios, outros os farão.

Como vê a arquitectura portuguesa actual?

Proliferou muito. A qualidade, que era muito concentrada nos anos 60, abriu depois o campo. Mas, ao mesmo tempo, a arquitectura mundial entrou num caminho de grande vedetismo. Portugueses, espanhóis e outros não entravam nesse barco. O Siza, por exemplo, foi muito difícil "vendê-lo" no início, porque ele não favorecia nada, nem queria...

Sabe-se que foi fundamental na divulgação da obra de Álvaro Siza lá fora, nos anos 60. Há até quem diga que criou a aura da Escola do Porto. Assume essa paternidade?

De facto, escrevi sobre a Escola do Porto. E em Lisboa olhavam para mim com alguma desconfiança. Mas paternidade, não. Para além, obviamente, do Siza, o Porto tinha gente muito forte: o Pedro Ramalho e outros que não eram do grupo do Távora, como o Arnaldo de Araújo ou o Lixa Filgueiras. Esse movimento tinha uma concentração que não existia em Lisboa, onde não fazíamos nada na Escola. O Porto fez sempre tudo a partir da Escola.

E a arquitectura actual?

Há uma grande mistura, que não é boa para a cidade nem para o urbanismo, mas que foi generosa para os arquitectos, sobretudo de países relativamente pobres e marginais. É todo um sistema de revistas e de prémios. Há um certo culto da arquitectura, que antes só havia nas artes plásticas e no cinema. Isto significou, na realidade, o grande triunfo da imagem exterior da arquitectura. Por isso, disse a mim próprio: "Ainda bem que me fui retirando". Não falo tanto dos arquitectos portugueses e espanhóis - de resto, em Espanha só há um Pritzker, o [Rafael] Moneo, o mais parecido com a geração do Siza e do Souto de Moura. Mas muitos premiados fazem uma arquitectura de espectáculo, já a pensar na sua excepcionalidade e na capa das revistas. Há aqui uma distorção, e hoje já toda a gente fala nisto. Há 15 anos achavam que eu era um chato, e despeitado, que estava a fazer urbanismo e dizia mal dos arquitectos. Não estou. Estou a dizer: "Vejam se ajudam a que se faça melhor urbanismo, porque quanto mais individualistas forem, vocês ganham, mas a população e a cidade perde".

Acha que Souto de Moura faz arquitectura espectáculo?

Não. E o Siza também não. Nem o Renzo Piano. Mas no meio disto há a Zaha Hadid, etc, que são fabricações artificiais de vedetas.

Há pouco tempo, numa sessão pública, Álvaro Siza lamentou-se de que o Nuno Portas já não gostava dele. Quer comentar?

Ouvi essa queixa. Eu faço outra: vejo-o pouco. Porque éramos como irmãos. Houve uma fase muitíssimo intensa de relação entre nós. Não é o facto de eu ter escrito no estrangeiro coisas sobre o Siza, considerando que ele era um dos grandes valores da arquitectura contemporânea. Não é isso. À medida que me afasto da arquitectura e o Siza se internacionaliza, restava a relação humana. Acontece que essa pressupõe disponibilidade, e a gente nunca se encontra. É uma pura casualidade. Além disso, o Siza acha que, a certa altura, eu não veria a arquitectura dele da mesma forma incondicional. O problema é que não sou incondicional em relação a ninguém. Afastei-me cada vez mais da arquitectura e não tenho, por isso, de escrever sobre ele. Enviei-lhe agora um bilhetinho a dizer: "Há muito tempo que não nos encontramos. Gostava que aparecesses na exposição em Guimarães". Inclusivamente para ele perceber que nada nos divide, a não ser que temos umas vidas desencontradas.

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