Lá vai Leonor formosa e não segura
Uma actriz de 21 anos atravessa um dos mais luminosos autos de Gil Vicente a partir de hoje, no Teatro Nacional São João. Alma é uma maratona - e um teste, em passo de corrida, à endurance de Leonor Salgueiro.
Leonor Salgueiro tem as pernas, enormes, enfiadas no fato-de-treino cinzento com que começa e acaba, à bout de souffle ela e nós, a primeira grande maratona da sua vida (21 anos, sim, mas não perguntámos que altura, e deve ser qualquer coisa). "É a primeira vez que dou uma entrevista", diz, antes de ficar do nosso tamanho. Também é a primeira vez que tem um espectáculo inteiro às costas - Alma, a nova incursão de Nuno Carinhas no grande teatro do mundo de Gil Vicente, sai literalmente do corpo desta actriz descoberta entre 300 outras num casting. "Carregada e embaraçada com cousas que à derradeira hão de ficar", saltos altos sobre um chão de madeira instável (a vida na terra, adverte Vicente, é campo minado), lá vai Leonor, formosa mas não segura: "É um medo muito grande, não sei explicar. Quando estava a fazer o Azul Longe nas Colinas, eu sentia que se acontecesse alguma coisa o caminho era feito por todos. Aqui a narrativa do texto é: vai sozinha. E eu tenho de ir".
Antes de ter impressionado Nuno Carinhas no casting da protagonista de Alma - a releitura um tanto iconoclasta (ver texto secundário) do Auto da Alma que ocupa o Teatro Nacional São João (TNSJ), Porto, até 1 de Abril -, Leonor Salgueiro tinha impressionado ao substituir de emergência um dos actores de Azul Longe das Colinas. "Estava a fazer assistência de produção, um dos actores magoou-se a oito dias da estreia, e a Beatriz [Batarda] disse-me: "Cortas o cabelo e vais tu". E fui", conta.
Era "uma personagem muito marcante", era "uma mulher a fazer de homem", foi "um trabalho muito visto" - abriu-lhe "muitas portas". Mas daí até à maratona que é Alma - uma maratona que a obriga, "no espaço de uma hora, a crescer de forma desmesurada, quase até à morte", como nota Nuno Carinhas no manual de leitura do espectáculo -, e excluindo o convite de Dinarte Branco para fazer Desnorte, de Edward Albee, Leonor esteve sobretudo nos bastidores. Foi assistente de encenação de Beatriz Batarda em Sangue Jovem e fez colaboração artística para a Cornucópia em A Morte de Judas, como quem marca o território: "Fazer coisas à volta do trabalho de actor é uma desculpa para estar lá, para estar presente, para ter a mínima sensação de que faço parte de um espectáculo".
E depois houve o casting, para onde foi às escuras porque "não sabia o que ia acontecer". Aconteceu.
Tropeçar e cair
Alma seria um espectáculo duro mesmo que não fosse o primeiro. Nuno Carinhas cumpriu à letra as instruções do anjo - "andai prestes (...)/ nam durmais;/ um ponto nam esteis parada/ que a jornada/ muito em breve é fenecida,/ se atentais" - e pôs as suas personagens em passo de corrida pela estrada fora, como num tapete de ginásio em loop interminável ("A Alma tem de fazer uma espécie de fitness, tendo o Anjo Custódio por personal trainer", comentou, depois de um ensaio, o poeta e tradutor Daniel Jonas). E agora imaginemos Leonor a tirar o fato-de-treino cinzento e a correr de saltos altos para a glória, numa palete de madeira cheia de fendas, e teremos uma visão da via sacra: "Ela não está a simular dificuldade, ela está realmente em dificuldade", conta Carinhas no mesmo manual de leitura.Sendo o primeiro, Alma é um espectáculo ainda mais duro. "O texto é difícil. E estou tão exposta. Aqui não posso varrer mesmo nada para debaixo do tapete. A metáfora do texto é mesmo essa: uma alma sozinha no mundo que tem de sobreviver. Não há que enganar, estou sozinha num palco e tenho de sobreviver. É aqui. É real", diz Leonor.
E é, para ela como para esta personagem - uma alma atirada ao mundo e obrigada a escolher entre a salvação e a perdição -, "uma batalha diária". Melhor: um ritual de iniciação, muito polemicamente figurado pela encenação de Nuno Carinhas na cena em que a Alma recebe as "iguarias" (açoites, coroa de espinhos, pregos, cruz) da Madre Igreja. Desde a primeira cena, mas especialmente nessa, Leonor está sozinha no meio de um batalhão de homens, anjos uns, diabos os outros - e também isso "cria um peso". "As atenções viram-se todas para mim, é natural, sou a única mulher... Os meus colegas protegem-me muito, mas nisso também estou sozinha", explica. Com "medo de empeçar/ e de cair".
Alma é a história dessa queda, mas também da festa - com "povo, luzes, flores", e até banda de música e foguetes - que pode vir a seguir. Possivelmente, a história de Leonor.