37 anos de democracia. E a cidade?
Com o percurso profissional de cinco décadas de Nuno Portas podemos confrontar as suas visões da habitação, da cidade e do território com os 37 anos de democracia. Que foram um processo sem visão de conjunto ou estratégia regional. Por Ricardo Carvalho*
"As casas cresceram o quádruplo da população", lê-se no PÚBLICO de sexta-feira 1 de Jullho, sobre o Census de 2011. Da escassez de habitação que caracterizava a vida sob o Estado Novo em Portugal passamos hoje à situação oposta, sem ter fixado pelo caminho qualquer ponto de equilíbrio. Portugal é hoje estatisticamente urbano, com os seus prédios na cidade e no campo, mas nem por isso um país em crescimento demográfico. Pelo contrário. Mas ainda assim, para os cidadãos, a habitação "não está garantida".
Esta é uma das conclusões mais interessantes do estudo A Qualidade da Democracia em Portugal: a Perspectiva dos Cidadãos, elaborado no ano passado. Mostra como a produção de habitação esteve desligada de uma visão estratégica para esta sociedade. O paradoxo pode ser em parte desvendado na exposição sobre o arquitecto e urbanista Nuno Portas. Com o seu percurso profissional de cinco décadas podemos confrontar as suas visões da habitação, da cidade e do território com os 37 anos de democracia. O Ser Urbano é inaugurada amanhã na fábrica Asa em Guimarães. Uma exposição sobre o trabalho de Portas em 2012, momento de pausa forçada num processo voraz de construção do território português, um processo sem uma visão de conjunto ou estratégia regional, é uma possibilidade de confronto com a reflexão informada, com os modelos teóricos e com uma ideia de qualidade associada ao urbanismo. Mas também com a figura do Estado como veículo de qualidade. As "casas a mais" que existem, fruto da especulação não monotorizada e da figura do loteamento, do retalho acrítico do território, e a "habitação que não está garantida" coincidem com a demissão do Estado em criar habitação de interesse social.
Ambiguidade
Mas o ponto de chegada da cidade contemporânea, não apenas a portuguesa, está muito distante dos resultados dos debates eruditos sobre a polis. Muito distante de uma possibilidade de cidadania gerada a partir do centro radioso do poder iluminado. A cidade já não tem o seu limite nos seus bairros fundadores, com os seus lugares simbólicos, nem sequer procura reproduzir essa ideia de centro. É uma imensa cidade subjectiva, uma metrópole fractal que deixou de possuir um centro identificável e passou a fundar-se na ambiguidade e despolitização, muitas vezes sem limite entre o privado e o público - é assim que a descreve o filósofo Giorgio Agamben. Também Portas estaria atento a esta nova cidade da ambiguidade, aquela que viria a comparar com um hipertexto - uma complexa sobreposição de acontecimentos que convivem sem aparente razão sistémica - e aquela em que, no caso português, habita a esmagadora maioria da população.Mas no passado, quando ainda se acreditava na força do modelo teórico, Portas esteve associado a momentos-chave da arquitectura portuguesa na sua dimensão urbana. Esteve envolvido como autor em projectos no Bairro dos Olivais em Lisboa, foi o mentor das operações, de arquitectura participada S.A.A.L., enquanto membro dos governos provisórios depois da revolução de Abril e, recentemente, responsável pelo plano geral da Expo-98. Um dos denominadores comuns a todos estes projectos é a ligação do problema da habitação à forma da cidade, defendendo uma ideia de arquitectura como resultado de um processo - a cidade em aberto, ou seja, disponível para várias arquitecturas. Mas os 37 anos de democracia conduziram-nos para outros caminhos.
Periferia é cidade
As placas das várias imobiliárias sobrepõem-se nas fachadas dos edifícios. Por vezes estão em quase todas as janelas. Entre varandas, marquises ilegais e estores de plástico corridos mostram-se contactos de telefone e nomes dos vendedores. Durante as duas últimas décadas qualquer construção destinada à habitação, independentemente das suas qualidades de espaço e organização interior, exposição solar, conexão com o espaço público ou acesso a transportes públicos, foi vendida facilmente, com crédito, a uma população que se concentrou nas grandes áreas metropolitanas.À medida que nos afastamos do centro as placas de venda e os cartões com números de telefone vão surgindo com mais frequência. Na Grande Lisboa - a periferia como os cidadãos do centro chamam à cidade imensa descolada da imagem histórica - colocam-se todos os temas da cidade contemporânea, não sem conflito com uma ideia de cidade mais tradicional. Os 37 anos de democracia pareceram não questionar o frágil espaço público, as acessibilidades duvidosas aos transportes públicos, ausência de áreas de lazer ou presença da arquitectura qualificada - pelo menos em edifícios públicos. Mas o facto é que a rarefacção da cidade metropolitana não impediu que a vida e as gerações se sucedessem, e que este mundo urbano, jovem por oposição aos centros envelhecidos, seja apreendido como cidade - e é já a memória de cidade das gerações mais jovens.
A dicotomia centro-periferia é hoje anacrónica. Existem características da periferia dentro da cidade, apenas escamoteadas pelos habitantes por uma qualquer caução dada pela proximidade ao centro. As diferenças esbateram-se. Bairros destinados às classes médias com poder aquisitivo não possuem qualquer valor acrescentado, quando comparados com os bairros periféricos - veja-se a Lisboa construída a partir da década de 1980. A construção civil tornou-se circunstância banal e oportunidade individual, a mancha urbana difusa, infinita. O investimento nas vias rápidas suburbanas acelerou o processo. O automóvel a peça-chave no sistema em desequilíbrio.
Nuno Portas costumava afirmar que uma das diferenças entre centro e periferia é que o centro evolui de modo denso, consolidado e lento e a periferia é rápida e descontínua. E esta nova cidade, rápida e descontínua, que envolveu os centros e gerou as áreas metropolitanas, não podia estar mais longe dos modelos imaginados pelo urbanismo erudito e pela arquitectura comprometida com a cidade.
O modelo dos Olivais, projectado na década de 50, afirmou uma alternativa à cidade defendida pelas vanguardas históricas. A pulverização dos edifícios pela paisagem, com as suas árvores a envolverem a arquitectura, é a característica mais evidente. A autonomia dos edifícios permitiu uma enorme variedade de tipos. Este bairro, diabolizado durante décadas, mesmo entre arquitectos, emerge hoje como emblema de um esforço dificilmente reprodutível no mundo contemporâneo. Uma alternativa à periferia rápida e descontínua - às povoações semi-rurais pressionadas pelo crescimento urbano. A sua heterogeneidade, social e também morfológica, afirma um espaço colectivo inesperado com espaços públicos onde cafés e lojas coincidem.
Mas o fôlego da promoção pública de habitação capaz de fazer cidade esmoreceu depois desta operação. As ferramentas burocráticas do planeamento e as circunstâncias da ausência do mesmo foram incapazes de repetir as experiências do passado. A cidade subjectiva possui hoje apenas alguns momentos capazes de fixar a vida urbana - é uma cidade de instantes não de sistemas, e por isso o papel da arquitectura é preponderante para criar lugares.
As respostas possíveis dos arquitectos a esta cidade podem ser mesmo antagónicas, sem deixarem de possuir qualidades. Este será o desafio de grandes cidades como Lisboa e Porto. O conjunto habitacional de Entre Campos numa área central de Lisboa, plano e edifícios do escritório Promontório, é feito da continuação de uma ideia de cidade histórica, composta por densos quarteirões com habitação, comércio, escritórios e um centro cultural. O projecto previa a vida nas suas praças interiores, com árvores e esplanadas, e afirmava uma possibilidade de espaço público e de comércio. Apontou um caminho para habitação a custos mais acessíveis que a EPUL não concretizou plenamente. Mas ainda assim mostrou ser possível fazer cidade para aqueles com menor poder aquisitivo - neste caso, os mais jovens.
As intervenções com edifícios de habitação de interesse social na Maia, um contexto urbano difuso na proximidade do Porto, do arquitecto João Álvaro Rocha, trabalham temas distintos. Num contexto de periferia emergem estes projectos com uma possibilidade de regra para a construção de baixa densidade. A sua aparente inflexibilidade revela-se depois amável na qualidade dos espaços e da construção. E estes dois exemplos mostram o poder interventivo da arquitectura no desenho da cidade.
Regresso ao bairro
Os 37 anos de democracia foram ainda anos em que o carácter estático dos bairros urbanos se alterou. Os investigadores nem sempre estão de acordo com a ocorrência plena dos processos de gentrificação. Mas o facto é que o regresso à cidade histórica só é possível com estas tensões entre os novos habitantes e a (envelhecida população) original.A Bouça, o antigo fragmento de habitação participada, em plena cidade do Porto, foi completada em 2006. O projecto de Álvaro Siza é hoje muito mais do que um projecto de habitação de interesse social fruto de um sonho revolucionário. É um pequeno bairro, socialmente heterogéneo, particular pelas suas características arquitectónicas que autorizam um modo de vida colectivo - a repetição das escadas lançadas das portas elevadas, a amabilidade dos espaços entre edifícios e pela escala ambígua com a cidade - aberto e protegido em simultâneo.
Nuno Portas, mentor do Serviço de Apoio Ambulatório Local, colocou frente a frente, na década de 1970, arquitectos e associações de moradores. Apesar de ter existido apenas dois anos, deixou um lastro na arquitectura portuguesa. Hoje, momento em que a reabilitação urbana parece ser o único modo de participação dos arquitectos na cidade, valerá a pena voltar à sua herança. E pensar a estratégia de intervenção na cidade a partir da complexidade identitária de cada bairro.
Voltemos ao PÚBLICO de 1 de Julho, onde o geógrafo Rio Fernandes afirma: "Demolir edifícios em construção que estão parados há dez anos, demolir edifícios nas aldeias que estão em completa ruína e, porventura, demolir edifícios sem grande interesse histórico nos centros das cidades e, com isso, ganhar áreas de circulação." Demolir será inevitável. Mas a retórica do ganho de áreas de circulação permitiu em décadas passadas as maiores atrocidades na forma urbana das cidades portuguesas. O apelo da demolição coloca uma questão central: como garantir a qualidade da substituição? É o desafio da arquitectura portuguesa.
*Ricardo Carvalho é arquitecto, professor universitário, e crítico de arquitectura