A verdade da mentira no Purgatório
O texto de Ariel Dorfman fala do mais terrível dos crimes: a morte dos filhos às mãos da mãe
É inevitável ler no teatro de Ariel Dorfman ecos da história do Chile: o dramaturgo argentino era conselheiro cultural de Salvador Allende quando, em 1973, o Governo foi deposto pelo golpe de Estado de Pinochet e o Presidente morto.
A sua peça mais famosa, La Muerte y la Doncella (adaptada ao cinema por Roman Polanski), é sobre as memórias de um país cravadas na memória de uma sobrevivente. E em textos como Rumbo al sur, desejando el Norte, Viudas ou a colectânea Speak Truth to Power: Voices from Beyond the Dark o autor, exilado nos Estados Unidos, fala daquilo que define como "os dilemas do perdão e da retribuição, as incertezas da memória, a busca por um raio de esperança em tempos de terror e traição".
Não é diferente em Purgatório (2005), em cena no espaço A Ribeira (até dia 10) por Carlos Afonso Pereira, que traduz, encena e interpreta (com Anabela Brígida). Os dois actores em palco, identificados apenas como Homem e Mulher, prolongam uma obsessão de Dorfman: a ideia de que "os narradores contam sempre só uma versão da realidade". Por isso, prosseguindo um trabalho de transformação do corpo como espaço em branco através do qual o texto passa - e com o qual se lançou em textos tão diferentes como Via Dolorosa, de David Hare (2003), e Fausto Morreu, de Mark Ravenhill (2005) -, Afonso Pereira põe os espectadores como cúmplices de uma história de horror emocional, cercando os dois actores que vão desfiando a sua versão dos acontecimentos.
A partir de fontes muitos diversas, Dorfman reflecte sobre a dor e a culpa, nunca permitindo que seja claro se aquela mulher se arrepende do crime que cometeu - a morte dos filhos - ou se aquele homem é seu carrasco ou o seu marido. Texto de difícil construção que o encenador manipula de forma inusitada, constrangido os corpos à imobilidade, à escuridão e à aparente ausência de emoção na voz, é também um poderoso retrato sobre a ambivalência do teatro.