"Seria errado chamar a isto guerra. É um cerco medieval e uma chacina"
Ainda não foi ontem que a Cruz Vermelha entrou em Bab al-Amr, o bairro de Homs que se tornou símbolo da resistência ao Presidente Bashar al-Assad e que o regime sírio arrasou a golpes de morteiro
Primeiro, as forças de Bashar al-Assad arrasaram Bab al-Amr com o peso da artilharia e a perfídia dos atiradores furtivos. Centenas de pessoas morreram e milhares, encurraladas pelos ataques, passaram fome e sede. Na quinta-feira, o Exército entrou por fim no bairro, fechando-o ao mundo, e o silêncio dos canhões surgiu como um prenúncio de novos massacres, enquanto a Cruz Vermelha desespera por entrar.
Ninguém esquece Srebrenica. Nem os oito mil homens e rapazes executados às ordens de Ratko Mladic depois de o enclave muçulmano ter caído nas mãos dos sérvios bósnios. É esse fantasma que renasce agora nas ruas do bairro de Homs que ousou declarar-se bastião da revolta contra o Presidente sírio. "Estamos certos que eles querem ganhar tempo para enterrar ou queimar os cadáveres e limpar os vestígios dos seus crimes, para que a Cruz Vermelha não veja nada", disse à AFP o activista Hadi Abdallah, no terceiro dia consecutivo em que os camiões da organização voltaram a ser impedidos de entrar em Bab al-Amr.
O receio não é infundado. Sexta-feira, o gabinete de Direitos Humanos da ONU disse ter informações de "execuções sumárias particularmente macabras" em Homs e um activista contou à Reuters que todos os homens com idades entre os 14 e os 50 anos estavam a ser presos.
Sem observadores, o Exército diz estar a concluir a "limpeza" do bairro das armadilhas deixadas pelo "grupos terroristas" que mantinham "refém" a população. "Quem saísse à rua era raptado ou chacinado. Alá abençoe o Exército por nos ter salvado", disse um morador a uma equipa da televisão estatal, a única autorizada a entrar no bairro.
Mas quem lá esteve enquanto as bombas choviam conta uma história diferente. "Seria errado chamar a isto guerra. É um cerco medieval e uma chacina", disse o fotojornalista do Sunday Times Paul Conroy, sobrevivente do ataque que, a 22 de Fevereiro, matou a colega Marie Colvin e o freelancer francês Remi Ochlik. Já em Londres, contou à CNN que no bairro "não havia alvos militares", apenas algumas centenas de combatentes mal armados do Exército Livre. "Era um puro e sistemático massacre da população civil".
Édith Bouvier, enviada do jornal Le Figaro ferida no mesmo ataque, contou que os morteiros caíam às centenas do nascer ao pôr-do-sol - "talvez com uma pequena pausa à hora de almoço dos artilheiros" - e que só à noite a população ousava sair à rua em busca de comida. A água há muito não corria nas torneiras e só a neve que caiu na semana passada trouxe algum alívio.
Para medir a destruição, a Human Rights Watch (HRW) recorreu a imagens de satélite e o resultado impressiona: no mapa 640 pontos vermelhos assinalam edifícios danificados e 930 marcas amarelas identificam crateras abertas no solo pelos morteiros - projécteis de 240 mm que, segundo a descrição do fabricante, visam "demolir fortificações".
Mas não são apenas os números que chocam. São também as imagens de crianças em desespero noutro bairro de Homs que a artilharia de Assad não poupou. E são as descrições de quem viu a morte de perto. "Os morteiros provocavam tanta destruição que todos os corpos que encontrámos dentro dos edifícios estavam em pedaços", disse à HRW um combatente. E o jornalista do El Mundo Javier Espinosa contou que na fuga nocturna de Bab al-Amr algumas crianças em pânico chamaram pelas mães. Foi quanto bastou para os soldados dispararem às cegas contra a procissão de civis, muitos feridos, que tentavam furar o cerco.
Mas nada trava a violência. Ontem, os bombardeamentos estenderam-se a outros bairros de Homs e à cidade vizinha de Rastan. Neste ataque, que terá envolvido helicópteros, quatro crianças da mesma família foram mortas. Entretanto, duas mil pessoas, na maioria mulheres e crianças, chegaram à fronteira com o Líbano, muitas fugindo a pé aos combates.