"Há duas maneiras de escravizar uma nação: pela espada e pela dívida"
A compositora, cantora e belly dancer nascida na Bélgica, com raízes judias e muçulmanas, árabes e europeias, já não é só a "Rosa Pop do Cairo". Com Mounqaliba, nono álbum a solo, Natacha Atlas fundiu clássicos do Médio Oriente e do Ocidente, num manifesto contra a desordem mundial
Às 13h00 de domingo, como combinado, Natacha Atlas chega ao lobby de um hotel em Lisboa para a entrevista. O seu rosto é inconfundível, mesmo que expurgo da maquilhagem que sempre o ornamenta em fotos promocionais e nos seus espectáculos. Olhos incisivos realçados por pestanas postiças e um discreto eyeliner; longo cabelo negro semipreso como uma flor; camisola amarela que acentuava o decote. Sorridente e simples, a compositora, cantora e belly dancer que nasceu num subúrbio de Bruxelas, filha de um judeu de Jerusalém e de uma católica de Manchester, falou com o P2 sobre Mounqaliba - In a State of Reversal (aclamado por Siddhartha Mitter, exigente crítico do jornal Boston Globe, como um dos dez melhores álbuns de world music de 2010), mas também sobre as revoluções no Médio Oriente e a crise que afecta o mundo inteiro.
À noite, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, Natacha Atlas deleitou os que a aplaudiram de pé, convidando-a a um encore, num concerto integrado no ciclo Músicas do Mundo, com uma orquestra onde os sete músicos se revelaram excelsos. Destaque para Aly Abdel Alim, percussionista egípcio e primo da cantora, exímio a tocar darabuka, e Samy Bishai Basha, o violinista e director musical. De um alinhamento de 15 canções, só com Hayati Inta (do anterior álbum, Ana Hina) é que Natacha exibiu os seus dotes de dançarina do ventre, desta vez resguardando o corpo de qualquer nudez, com um lenço colorido atado à cintura sobre uma túnica negra e ondulantes calças vermelhas, sem perder a sensualidade. Durante mais de 90 minutos, a artista deslumbrou, com a sua voz possante, apresentando melodias novas e covers incluídos em Mounqaliba, como Riverman, de Nick Drake, e Lawhazat Nashwa, épico dos irmãos Rahbani, celebrizado pela libanesa Fairouz, mas também Mon Amie la Rose, canção de Françoise Hardy que Natacha, numa interpretação magistral, oferece à sua mãe desde que ela morreu em 2006.
O que distingue Mounqaliba dos seus trabalhos anteriores?
Foi uma progressão de Ana Hina [lançado em 2008], que era acústico e tinha um quarteto. Com Mounqaliba fomos um pouco mais longe, com uma orquestra de câmara, fazendo a ligação entre a música clássica ocidental, a música clássica árabe e o jazz. Antes, fazíamos mais fusão electrónica. Eu e o meu director musical, Samy Bishai, que é, como eu, metade inglês e metade egípcio, e tem um grande conhecimento político do que se passa lá [no Egipto], quisemos fazer Mounqaliba, porque é, de certo modo, um projecto político. Algumas canções evocam o facto de nós, tanto no Médio Oriente como no Ocidente - e isto é importante dizer -, estarmos prisioneiros da crise económica. Tudo isto deriva de um problema maior que é sermos reféns de um sistema que já não funciona, o facto de as corporations controlarem os governos e não o contrário. Os governos são apenas marionetas. Mounqaliba significa in a state of reversal [em estado de regressão] e, para mim, é um alerta para o que estamos a viver. Não evoluímos mas regredimos, quase até ao sistema feudal da Idade Média, quando todos os poderes eram os do dinheiro. Quis que este álbum fosse uma declaração política.
Por que introduziu registos sonoros de Jacques Fresco e Peter Joseph?
Fresco é um intelectual, cientista ambiental e inventor. Peter Joseph fez três filmes [Zeitgeist: The Movie; Zeitgeist: Addendum e Zeitgeist: Moving Forward] para mostrar às pessoas que temos de reavaliar o nosso sistema, porque a eficiência social está a ser deliberadamente acorrentada. Como Jacques Fresco notou: "Quando vou ao médico, não sei se ele está a propor extrair os meus rins porque precisa de pagar a sua hipoteca ou porque estou mesmo doente." Quando estamos perante um problema lucrativo, não podemos confiar em nenhum motivo. Tudo se baseia no crescimento exponencial. What the fuck does exponential growth mean? Significa que as corporations detêm o monopólio do poder e que as pessoas têm menos controlo. As pessoas comentam: "Lá [no Médio Oriente], não são democráticos." A diferença é que na Europa tiveram mais tempo e experiência para esconder a corrupção.
Este álbum é também uma homenagem ao povo egípcio?
A revolução começou em Janeiro de 2011. Em Fevereiro, eu e Samy tínhamos bilhetes para ir ao Egipto. Estavam os voos reservados, quando fomos informados de que haviam sido cancelados. Ficámos o dia todo a ver a Al-Jazira, a CNN e outras televisões. A Praça Tahrir [no Cairo] parecia papel de parede - presente em toda a parte. A forma que encontrámos de participar foi fazer uma ligação com Mounqaliba, que tem mensagens sobre evolução e revolução. Decidimos remisturar estas canções, tão relevantes, e fazer um vídeo com tudo o que se passava lá, naquele preciso momento. Continuo a ir ao YouTube ver esta lembrança, porque, embora Mubarak já não esteja no poder, o seu regime mantém-se de pé, personificado por Tantawi [presidente do conselho supremo das Forças Armadas] e pelo Exército.
Na Praça Tahrir, muitas mulheres foram para a linha da frente e agora estão a ser marginalizadas...
... este é mais um exemplo de que o velho regime se mantém. Quando há uma luta ferrenha pelo poder, uma das primeiras coisas que vemos é a marginalização das mulheres. É muito fácil atacar as mulheres e era inevitável que iria acontecer. Isso deixa-me enfurecida.
A belly dancing foi uma arte sublime no Egipto, com Tahia Carioca e Samia Gamal. Hoje, o valor artístico da dança oriental quase desapareceu. Como dançarina do ventre, sente essa pressão?
Aqui está outro sintoma do que se passa globalmente: o financiamento das artes ser uma das primeiras coisas sacrificadas, quando há recessão económica. Tínhamos uma tour marcada para o Reino Unido que teve de ser cancelada, porque não obtivemos fundos. É uma vergonha que a dança do ventre esteja a perder valor artístico, mas há uma supressão das artes em todas as suas formas.
A regressão, no caso da belly dancing, deve-se apenas a factores económicos ou também religiosos?
Acima de tudo, a factores económicos, mas é claro que logo a seguir vêm os religiosos. Há duas maneiras de escravizar uma nação: uma é pela espada e outra pela dívida. A da espada é atribuída à religião; o resto à dívida. Mas tudo começa na escassez. Se não temos o suficiente, tornamo-nos mais intolerantes.
A revolução já é irreversível?
Creio que sim. Tenho esperança de que as pessoas continuarão a ser resolutas, embora a vida seja cada vez mais difícil. É normal que alguns sejam tentados a desistir, mas outros serão resistentes: "Se abandonarmos a luta agora, todas as mortes terão sido em vão." De momento, a situação não parece boa, mas creio que há muita coisa a fazer - e não apenas no Médio Oriente. Também nos países ocidentais, onde as pessoas começam a despertar. Reparemos no que se está a passar na Grécia, um país que parece ser propriedade de outros países. É como se tivéssemos recuado ao colonialismo do passado, com os Estados incapazes de pagar as suas dívidas. Não podemos aceitar que nos reduzam a um monopólio do FMI ou seremos todos escravos.
Qual é afinal a melhor definição de si própria: "uma nómada", uma "Faixa de Gaza humana"?...
... disse essa última, quando tinha 19 anos. Naquela altura fazia sentido, porque referia-me à complexidade de ser ocidental com origens orientais - ou seja, nunca podemos pertencer a um só lado. Essa definição tem-me seguido como se fosse a minha bagagem. É engraçado que Peter Joseph disse-me recentemente: "Natacha significa natividade e Atlas era o deus grego que foi condenado a suportar o mundo nos seus ombros." Às vezes é assim que me sinto.