O homem-montanha de Portugal
Continua a ser um dos mais altos pesos-pesados do boxe mundial. Lutou no Madison Square Garden e no cinema. Beatriz Costa achava-o "homem a mais". Nos anos 1920 e 30, José Santa "Camarão", um fragateiro de Ovar, batia-se no ringue com os melhores do seu tempo, um pugilista como Portugal nunca mais teve.
Em 1904, a média de altura dos homens portugueses era de 1,64m, segundo um estudo antropológico publicado há quatro anos. O mesmo estudo projectava que em 2010 essa altura média fosse de 1,73m. Há mais de um século, ou hoje, José Soares Santa seria sempre um homem alto. E qualquer homem com 2,02m de altura seria sempre um pugilista alto. Ao seu nome de baptismo acrescente-se uma alcunha e é assim que está imortalizado. Santa "Camarão" foi talvez a maior figura da história do boxe português e um dos ídolos "sportivos" (era assim que então se escrevia) do país nos anos 1920 e 30. Um homem que nasceu na monarquia e morreu na ditadura e que, pelo meio, defrontou os melhores pugilistas do seu tempo, mas a quem faltou qualquer coisa para se tornar um dos melhores.
O que se sabe da vida de Santa "Camarão" são fragmentos, uma mistura dos artigos de jornais (antigos e actuais), recordações de pessoas que com ele conviveram nos seus últimos anos de existência e o conhecimento de quem tenta manter viva a memória de alguém que foi um herói de grande impacto popular. Existe apenas uma biografia. Alguns dos seus contemporâneos ainda são vivos, o seu único filho, que mal conheceu, vive nos Estados Unidos e a memória de Santa Camarão é preservada em Ovar, terra onde nasceu e morreu.
A biografia Com o Mundo nos Punhos (2003), do antropólogo Luís Filipe Maçarico, é, como o autor admite, incompleta. "Não tive a pretensão de fazer uma biografia completa, há sempre coisas que escapam. Há sempre uma pessoa com quem não se falou, há sempre um artigo que não se leu", diz à Pública Luís Filipe Maçarico, que recolheu os tais fragmentos para tentar reconstituir a vida do enorme pugilista português.
Santa foi grande desde o dia em que nasceu, no dia de Natal de 1902, em Ovar, às 9h, segundo a sua certidão de baptismo. "Já ao nascer era excepcional. Segundo dizem, veio ao mundo com um tamanho invulgar, de tal modo que todos os vizinhos fizeram romaria para o ver", lê-se num artigo publicado no jornal João Semana em 1982. Nem o pai, António Soares Santa, fragateiro em Lisboa, nem a mãe, Josefa Pereira dos Santos, eram muito altos. Nem nenhum dos três irmãos, todos mais velhos.
Há uma autobiografia. A Vida de José Santa Camarão Contada por Ele Mesmo é um pequeno folheto de 15 páginas, com poucos nomes e datas, menos biográfico e mais impressionista. Mas é uma janela admirável para o que terão sido os primeiros tempos de José Santa em Lisboa como fragateiro, ao lado do pai, os primeiros amores e os primeiros contactos com o boxe. Santa revela, por exemplo, como ganhou a alcunha de "camarão", sendo que outras fontes referem que era uma alcunha de família.
"- Eh! Camarãosinho! Vamos aos grilos.
Isto foi logo no dia seguinte a eu chegar ao Barreiro.
- Camarãosinho? (...)
Meu pai tinha um irmão que trabalhava na fragata para onde eu entrara. (...)
Era mais novo que os outros e mais alto do que eles. Puseram-se ao meu lado. Mediam pelas suas as minhas pernas. Davam-me pelo hombro os mais velhos...
- Ena que pernas tão compridas!...
- Tu és um gigante, oh Camarãosinho!
- Oh! Camarão!
- Oh calmeirão!
- Eh Camarãosão!...
E dessa tarde em diante - comecei a ter vergonha de ser tão alto..."
Santa encarava a sua estatura com embaraço. "Tudo tinha a ver com esse constrangimento do gigantismo", assinala Luís Filipe Maçarico. Para as relações, a altura era um obstáculo que lhe parecia inultrapassável. "É que por causa de ser tão grande eu não podia ser como os outros - nem ter como todos os rapazes uma pequena que simpatizasse comigo...", contou no folheto autobiográfico.
Esse constrangimento, lá o foi ultrapassando, falando de uma "primeira aventura de amor" com uma mulher "alta, forte e morena" que o atendeu quando um dia foi comprar pão e com quem viveu durante um mês. "Foi ela a primeira pessoa que me fez esquecer o meu desespero por ser gigante. Quando estávamos os dois a conversar, sentia-me um homem como os outros." Depois, uma curta relação com uma rapariga da terra quando regressou a casa num Verão, Gracinda (nome falso, segundo Luiz Raul, autor do prefácio), mulher com "lindas cores, um peito airoso a destacar-se na chita azul que me prendia os olhos".
Mas José Santa, que andava descalço pelas ruas de Lisboa e com boné na cabeça e camisa esfarrapada, ainda se sentia quase como um número de circo "ouvindo gente que se ria (...) e comentários desagradáveis de mulheres e homens". Tinha, no entanto, consciência da sua força - "não havia ninguém que levantasse como eu a carga pesada das sacas" - e sentiu-se menos diferente quando foi parar ao Coliseu dos Recreios para ver uma companhia de lutadores. Mais uma história "contada por ele mesmo": "Na sala começaram a entrar homens enormes, pesados, fortes, gigantescos! Homens como eu! Maiores que eu!"
A luta livre foi a sua primeira prática desportiva. Entrou num ringue pela primeira vez em 1921, com 19 anos, por influência de Manuel Grilo, um campeão português da altura. O boxe só viria mais tarde. "Um dia vieram ter comigo. Disseram-me: podes vir a ser um grande boxeur... Eu ainda nem sabia o que isso era", conta. Em 1925, Santa já era campeão de Portugal, onde não tinha adversários à altura (nem da sua altura), e defrontou vários lutadores internacionais, partindo para o Brasil em 1926.
A estadia de Santa "Camarão" no Brasil foi acidentada, nem sempre ganhando os seus combates e com algumas confusões com o seu manager Alexandre Cal. O pugilista confessou, mais tarde, que foi vítima de exploração do empresário. "Ele chega a dar uma entrevista a dizer que nunca será manager, que era preciso ter uma certa falta de princípios e que não queria fazer o que lhe fizeram a ele, que havia sido explorado e maltratado", observa o biógrafo Luís Filipe Maçarico.
De regresso a Portugal em 1928, Santa "Camarão" vai ter, no ano seguinte, a oportunidade de lutar pelo título europeu de pesados com o belga Pierre Charles no Campo Pequeno, em Lisboa. A força bruta de português equilibra com a maior técnica do belga, mas Charles acaba por vencer aos pontos em 15 assaltos. Nesta altura, Santa já era um lutador desejado nos palcos internacionais e, em 1930, inicia uma breve carreira no cinema, partilhando o ecrã com o grande pugilista alemão Max Schmeling (futuro campeão do mundo) no filme Liebe im Ring (Amor no Ringue).
Uma amostra de cinco minutos deste filme no YouTube mostra o combate (simulado) entre Santa e Schmeling, as únicas imagens em movimento disponíveis publicamente do pugilista português em acção. Apesar da produção alemã pelos estúdios UPA, Amor no Ringue teve grande significado para o cinema português. Para além de contar com a participação de Arthur Duarte como actor (que seria realizador de filmes como O Costa do Castelo ou O Leão da Estrela), foi a primeira vez que se ouviu falar português num filme; eram as instruções de Duarte, o manager, a Santa. Há também referências à participação de José Santa num filme norte-americano, The Prizefighter and the Lady, de 1933, que juntou dois dos maiores pugilistas daquele tempo, Primo Carnera e Max Baer. O próprio Santa referiu que ganhou mais dinheiro nestas suas aventuras cinematográficas que na sua carreira como pugilista.
Na América, mulher e filho
Com nome estabelecido, o gigante português vai, em 1930, para os Estados Unidos, onde defronta os melhores daquele tempo. O lutador de Ovar é entusiasticamente recebido pela comunidade luso-americana e vai enchendo recintos pelo país. "Os jornais luso-americanos acompanhavam as tournées dele, era muito solicitado pelas associações e falava-se dele como o novo Viriato, tinha a imagem de um guerreiro imbatível", refere Luís Filipe Maçarico - é neste período que conhece aquela que seria a sua mulher, a luso-descendente Mary Loreto de Oliveira, com quem ficou casado até 1949 e teve um filho.
Nos EUA, Santa tem uma série de 12 vitórias nos seus primeiros combates, quase sempre por KO. Os jornais norte-americanos promovem-no como o "homem-montanha", o "gigante". A 21 de Outubro de 1931, Santa defronta no Arcadia Pavillion, em Oakland, Max Baer, que seria campeão mundial de pesados entre 1934 e 1935. O norte-americano ganhou por KO ao 10.º assalto num combate, que, segundo as crónicas, acabou com Santa inconsciente durante 15 minutos após um golpe de direita de Baer.
Menos de um ano depois, o português defrontou alguém bem mais próximo da sua altura, o italiano Primo Carnera (1,97m) no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Santa ainda conseguiu desferir alguns golpes certeiros no 1.º assalto, mas o restante combate foi todo de Carnera, que venceu por KO ao 6.º assalto. "Foi uma boa imitação de um par de dinossauros chateados", escrevia a agência UPI, descrevendo Carnera e Santa como "modelos de monstros pré-históricos".
A carreira de Santa "Camarão" não durou muito mais. Oficialmente, terminou em 1934, com um combate em Lisboa com o espanhol Claudio Vilar, mas ainda faria mais alguns combates de exibição - testemunhos citados por Luís Filipe Maçarico referem que Santa ainda voltou à luta livre. De regresso a Ovar com Mary Loreto, Santa preparava-se para uma vida tranquila com a família, que, a 20 de Abril de 1935, ganhou um novo elemento, que seria o seu único filho: Renaldo José Santa.
"Triste e sozinho"
De Ovar a Salem, capital do estado norte-americano do Oregon, são 8450 quilómetros. São as duas cidades da vida de Renaldo José Santa, o filho de Santa "Camarão". Ao primeiro contacto telefónico, Renaldo atende em inglês e, perante a incerteza do jornalista, simula a gravação de um atendedor de chamadas: "Se não fala inglês, português, castelhano ou alemão, por favor carregue na tecla "1"." Meio segundo depois, desfaz a imitação, confirma a identidade e a conversa continua em português. "Fala lá, homem!"
Renaldo fez quase toda a sua vida nos EUA, onde trabalhou, constituiu família e onde vive uma reforma preenchida com pintura, exercício, cozinha e jardinagem. A Ovar regressa de dois em dois anos - vai lá estar em 2012 - e mantém todo o contacto com as suas raízes portuguesas - no dia em que falou com a Pública, ia fazer uma feijoada para um grupo de amigos. Mas do pai pugilista, as memórias são poucas e vagas. Mais sensações, fragmentos e sonhos. Recordações de criança guardadas na cabeça de um homem de 76 anos que viveu com o pai até aos 14 anos e que, depois disso, só o viu mais uma vez.
Naquele tempo, Mary Loreto não se enquadrava em Ovar. Uma mulher com outros horizontes, que já tinha vivido na América e que seria demasiado moderna para Portugal. "A minha mãe era muito linda e naquela altura, em Ovar, as mulheres não fumavam e não usavam calças", recorda Renaldo Santa. Voltou para a América e levou Renaldo com ela. "A minha mãe perguntou ao meu pai se me podia trazer para a América. O meu pai podia ter dito, "não não, não o podes levar", mas ele sabia que em Portugal esse tempo não era muito bom e então deixou-me vir com a minha mãe. Não gostei disso. Tinha 14 anos, tinha muitos amigos lá em Ovar, tinha o meu pai, a minha família. Não conhecia ninguém na América. Quando me mandou vir para a América, sei que foi do coração, mas não compreendi e fiquei zangado com o pobre homem por muitos anos."
Renaldo não chegou à altura do pai (1,79m) nem se interessou muito por boxe. Apenas experimentou na Marinha por duas vezes e por "sugestão" do seu oficial superior. "Ele disse-me: "Se não quiseres jogar boxe, vais ter de nadar 25 milhas." No dia do combate, achava que o homem me ia matar, pôs-me a deitar sangue do nariz no 1.º assalto, mas eu irritei-me no 2.º e ganhei. Estava habituado a andar à pancada na rua e ele estava lá do seu jeito... devia ter tirado uma fotografia e tê-la mandado para o meu pai, ele teria ficado... Como é que se diz em português?... Orgulhoso! Fiz mais um combate e ganhei outra vez, mas depois disse que não queria mais. Parti o nariz na primeira vez, e o nariz do meu pai era todo amassado..."
Restou algum ressentimento em relação à mãe, que o tirou de Ovar e o levou para a América, só regressando à sua terra em 1966, convivendo apenas mais duas semanas com o pai. "Não me dava com a minha mãe e pedi dinheiro para ir ver o meu pai. Sonhava muito com ele. Lembro-me de um sonho que tive, em que ele estava num caixão, com cabelos brancos e óculos. Quando cheguei a Portugal, era assim que ele estava, como no meu sonho (mas vivo), eu que só o conhecia de cabelo preto. Passei duas semanas com ele e ele morreu dois anos depois."
Para memórias de José Santa "Camarão", Renaldo prefere remeter para a gente de Ovar. "Era um homem muito bom. Bom de mais porque muitas pessoas tiram "advantage" (como é que se diz em português? Aproveitam-se dele). Era um bocadinho triste e um bocadinho sozinho. Era um homem grande de bom coração", diz o filho.
José Santa cumpriu a sua vida fora do ringue em Ovar, vivendo dos rendimentos. Era um homem popular de quem muitos se recordam, segundo a recolha de Luís Filipe Maçarico. Deu nome a uma marca de azeite, foi figura de quadras populares - "É tanta a doçura tanta/ que a nossa terra contém/ que até os socos do Zé Santa/ sabem a beijos de mãe" - e cruzou-se com figuras notáveis do seu tempo. A actriz Beatriz Costa, na autobiografia Sem Papas na Língua, descrevia assim o pugilista de Ovar: "Ia ao teatro para me ver, mas eu achava que aquilo era homem a mais para as minhas necessidades. [...] Quando o via entrar no camarim, tirava os anéis, porque o aperto de mão era como a passagem dum tractor: revirava tudo."
Apareceu no corso de vários carnavais em Ovar, mas o seu quotidiano era condicionado pelo seu corpo pouco ágil. A 5 de Abril de 1968, José Soares Santa era encontrado morto em sua casa. Ataque cardíaco. Tinha 65 anos. Deu nome a uma praça em Ovar e a uma rua em Lisboa e foi considerado pela Confederação do Desporto de Portugal como um dos 100 grandes atletas portugueses nas comemorações do centenário da República em 2010, a par de Eusébio, Rosa Mota, António Livramento ou Joaquim Agostinho. Mas será um nome menos lembrado que todos os outros, ao alcance da memória dos mais antigos, como refere Luís Filipe Maçarico, "os nossos pais e os nossos avós".
marco.vaza@publico.pt
Agradecimentos:
Câmara Municipal de Ovar
Luís Filipe Maçarico (Câmara Municipal
de Lisboa)