Hospital Maria Pia confia as crianças a um colo mais seguro

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A antiguidade e exiguidade das instalações do Maria Pia levaram a Entidade Reguladora da Saúde a mandar encerrar o hospital, por uma questão de segurançaEm 2011, o Maria Pia assegurou 67 mil consultas e 3001 internamentos. Desde Julho de 2010 foram realizados 14 transplantes renais pediátricos neste hospital, que é uma referência na área da nefrologia pediátrica e no tratamento de doenças raras e crónicas fotos nelson garrido

Mudança para o Hospital de Santo António começa a 5 de Março e decorre até Junho. Primeiro, transfere-se o internamento. Depois, aos poucos, vão as consultas

O dinossauro cor-de-rosa a voar com um rato azul nas costas, as borboletas e o vulcão cheio de cores vão ficar para trás na parede do internamento. O chão frágil que treme debaixo dos nossos pés, as escadas, os corredores estreitos, as curvas e contracurvas, as salas escuras e quentes (às vezes com janelas com vista para outras janelas ou para lado nenhum) e a pintura a descascar nas portas também. Tudo isto vai ficar para trás, que a Entidade Reguladora de Saúde mandou encerrar o Hospital Maria Pia. A mudança (provisória) deste velhinho hospital pediátrico (fundado em 1882) para o Hospital de Santo António é um fim e o princípio de um futuro que se quer melhor - mas percebe-se que também é importante que muita coisa continue como está.

Com a integração no edifício do Santo António, o Maria Pia perde e ganha. Perde espaço, por exemplo, e algumas camas. E em vez de lado a lado num corredor, as consultas estarão dispersas pelo grande edifício do hospital central, ainda que estejam a ser tomadas medidas para tentar preservar o ambiente pediátrico na assistência (ver texto ao lado). Mas perde mais do que isso para poder ganhar a essencial segurança, modernização e melhores condições para o exercício da medicina. O hospital pediátrico vai ter de perder também a "individualidade", avisa Sollari Allegro, o presidente do conselho de administração do Centro Hospital do Porto (CHP) que reúne o Hospital de Santo António, a Maternidade Júlio Dinis e o Maria Pia. É isso que se pretende. Fazer com que se dispa a camisola Maria Pia e que todos carreguem a mesma e única bandeira do CHP.

Conseguir uma mudança de identidade numa instituição com o peso de várias gerações de dedicação à medicina pediátrica não será simples. Há décadas que se pedem melhores condições para o Maria Pia, que, ao mesmo tempo, nunca desistiu de contornar os obstáculos da velhinha casa da Associação dos Amigos das Crianças do Maria Pia (proprietária do edifício do século XIX na Rua da Boavista). Hoje, lá dentro, enquanto se prepara o futuro possível com a integração no CHP, resiste o sonho de um hospital pediátrico.

Porém, dentro da velha casa, há mais do que projectos e sonhos. Há um milhão de coisas invisíveis que não aparecem nos papéis onde se planeia o futuro do Maria Pia. "Coisas" que ninguém quer perder com uma mudança de morada. Dentro da velha casa está Olinda Póvoas, enfermeira com 35 anos de trabalho, sem medo da mudança mas ainda agarrada ao sonho "de um grande hospital pediátrico com jardins cá fora para as crianças". "A única coisa que os pais nos perguntam é se o pessoal também vai para o Santo António", diz Olinda, que repete o que se diz por todos os cantos da casa: "As instituições são as pessoas, não as paredes". Dentro da velha casa, está também Cristina Pinto - mãe da corajosa Juliana com 12 anos de vida num corpo com preguiça de crescer, talvez porque esteja demasiado ocupado com as visitas regulares ao hospital - e que não quer que se perca "o tipo de atendimento e atenção" que só encontra ali para a sua filha doente. Está Martinha Silva, mãe do irrequieto Rafael, que circula despachado à volta da conversa, e que faz eco do mesmo apelo. "O que temos aqui é muito importante e especial. No caso do Rafael, temos uma área de internamento só para a nefrologia e só com crianças. No Santo António, não será assim e o Rafael deverá ficar no internamento médico-cirúrgico com as outras crianças todas", refere. O transplante de rim do Rafael está marcado para esta semana, depois de anos de diálise, e será uma das últimas cirurgias a realizar-se no Maria Pia. Com dez anos e uma vida com demasiados dias passados no hospital, Rafael vai receber um rim do irmão Joel, com 20.

Dentro da velha casa está ainda Conceição Silva. Sentada num cadeirão com o neto de 14 meses ao colo, a avó de Domingos apenas faz questão de dizer que "é essencial que as tias também vão com os meninos para o Santo António". As tias? "As enfermeiras e auxiliares, o pessoal". Dentro da velha casa, está o bebé Luana, sem a mãe por perto, com um coração trapalhão que não lhe dá o oxigénio que precisa, com um tubo transparente no minúsculo nariz que quase parece um fio e que pára de choramingar com o colo de uma dessas "tias".

Dentro da velha casa está Andreia, prestes a fazer 18 anos, que um dia quase se afogou em Matosinhos e que não morreu mas perdeu toda a vida que tinha. Com raras visitas da mãe e um pai ausente no estrangeiro, Andreia conta com a companhia das "tias" sem sair da cama da enfermaria há quase ano e meio. Dentro daquela casa está Núria, que assustou os pais com uma bronquiolite complicada pouco depois de nascer e que hoje - na consulta - entretém meio mundo com as suas gracinhas, do alto dos seus 13 meses. Dentro daquela casa, há meninos com fibrose quística em quartos isolados, outros em cadeiras de rodas na sala de espera, bebés com doenças raras. Médicos, enfermeiras, auxiliares, voluntários. As tais tias e tios. Donas de um colo imenso e infinito. Chamado Maria Pia. Entrar no Maria Pia é como entrar na velha casa de uma avó. Estão lá a ternura, o colo, os afectos. Mas aquela casa de família range nos cantos, tem pouca luz e segurança. Apesar de faltarem as condições que a medicina de hoje não dispensa, dentro da velha casa há o suficiente para que muitos dos que lá vivem ainda hesitem em comemorar a mudança.

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