Que coisa bonita
Aos 19 anos, Mallu deixou cair o Magalhães - "não tirei o Magalhães, simplesmente aumentei o Mallu", diz ela -, virou-se para o lado e convidou o namorado Marcelo Camelo para lhe produzir o terceiro álbum, "Pitanga". Adeus, pop-YouTube, olá coisa bonita. Gonçalo Frota
Uma guitarra acústica, uma voz afinadinha a cantar em inglês e uma webcam estática. Um quarto atravancado, a cama por trás e a ideia de que as canções arrastaram-se apenas um par de metros para sair dos lençóis, chegar ao mundo e tornar alguém um nome citável nas preferências musicais. A ideia glutona de que se gosta sem filtros, porque se escolhe e não porque uma rádio, uma televisão ou um jornal mandam. A pop-YouTube fez-se disto. E foi por aqui que começou Mallu Magalhães. No seu caso o contágio deu-se sobretudo via MySpace, ainda que o cenário em grande medida se mantenha. As canções eram frágeis, feitas num apartamento paulista a sonhar com a poeira nas canções de Bob Dylan e Johnny Cash.
Isto foi 2007. 2012 é outra história. Mallu largou o apelido, juntou-se há três anos ao namorado Marcelo Camelo e perdeu a ingenuidade musical de fazer canções cuja ambição era soarem como se fossem de outros e não suas. Acabou a menina, começou a mulher. Desses primeiros tempos, os 19 anos mantêm somente a fragilidade e a intimidade na primeira linha das canções. Mas agora, Dylan, Cash ou Cat Power não cheiram a devoção deslumbrada e já há que procurar com uma lupa as pegadas que a eles possam conduzir. "Acho que não tenho outra opção", admite Mallu relativamente à forma como coloca toda a sua intimidade em cima da mesa em casa tema. "Esse é o único caminho em que realmente acredito, com que me identifico e me sinto bem e inteira. Consigo me encontrar fazendo esse movimento da intimidade, de olhar para dentro. Acho esse movimento muito valioso, muito raro".
Essa intimidade é ajudada e ajustada por uma produção a cargo do homem que costuma encontrar debaixo dos lençóis. E "costuma" porque nem sempre Marcelo Camelo está lá. Em períodos de gravação, raramente se cruzam. "Ele é totalmente noctívago, funciona, trabalha e gosta mais da madrugada e da noite. E eu sou muito, muito diurna", diz Mallu. Daí que "Pitanga" tenha sido fabricado a dois tempos. Mallu saía cedinho com o técnico de som Fernando Sanches e trabalhava até à hora de jantar, cruzando-se ainda com Marcelo, e este seguia noite dentro com o co-produtor Victor Rice. A bem do conforto criativo: "era muito massacrante para eles acordar cedo para estar no estúdio às dez, e era muito massacrante para mim ficar até às quatro, cinco da manhã. Não tinha por que sofrer". A medida levou também a esticar o tempo útil para a gravação e, involuntariamente, transformou-se em combustível criativo, uma vez que não raras vezes Mallu e Marcelo ficavam "obrigados" a reagir a algo que não tinham mapeado para uma canção e o outro tinha lançado numa direcção inesperada. "Algumas vezes eu tinhas as minhas ideias que queria experimentar e executar, e quando o Marcelo viajava e voltava de viagem acontecia eu ter gravado um monte de coisas totalmente loucas e inesperadas. E eu também, chegava de manhã e via um detalhe, uma coisa que ele colocava a mais e eu não esperava. O que é maravilhoso". Canções a serem fixadas com vida e não passadas a papel químico das maquetas.
Camelo não estragou Mallu
O reverso da medalha é que colocar-se nas mãos de um músico tão distinto e original quanto Camelo facilmente poderia sugar-lhe as canções e colocá-las a orbitar em torno do magnetismo imenso do músico do Rio. Nunca foi, no entanto, receio que roubasse horas de sono à cantora: "Ele sempre teve a capacidade de despertar em mim o que tenho de mais autoral, interior e próprio. Eu sabia que ele queria o melhor para mim e queria procurar o melhor de mim. E foi exactamente isso que ele fez, Não tive medo de ficar esteticamente muito parecido". A função de Marcelo revelava-se sobretudo na forma de pôr de pé o castelo musical que Mallu arquitectara na sua cabeça. Ela dizia "imagino um sininho aqui" e ele desencantava uma maneira de aparecer o sininho certo no sítio exacto, tratando-o como a contribuição musical mais importante do mundo.Mas, como seria de calcular, houve quem não perdoasse a Mallu o facto de gravar com Marcelo Camelo e assim que o vídeo de "Velha e Louca" apareceu no YouTube choveram comentários de detractores apontando sempre no mesmo sentido: Camelo tinha estragado Mallu. Como se a inocência que alguns amavam amar na catraia de antes pudesse ser eterna. "Acho que as pessoas que realmente gostam da minha música, na verdade gostam do meu jeito de ver a vida, da minha existência, das coisas em que acredito, do meu coração", contrapõe ela. "Acho que essas pessoas gostam de uma estética, de uma letra, de uma melodia, de tudo, de combinações que eu faria em qualquer situação. O resto do público que talvez não goste tanto de um lado estético e prefira outro, sempre vai ter artistas que pode continuar escutando ou escuta os outros discos".
Se comprado num quiosque de praia e tranformado num exercício de "descubra as diferenças", "Pitanga" logo se destacaria dos seus predecessores homónimos não só pela barba de Camelo como também pela clara irrupção da música brasileira - o português já comparecia nos outros, mas aqui há samba e derivados em doses para lá do residual. "Sinto bem isso. Eu faço o disco assim como o disco também me faz, me modifica. Acho que pude intensificar e concretizar um processo de autoconhecimento: a vida adulta, da feminilidade. Tive mais contacto com os meus sentimentos do dia-a-dia de uma mulher e não mais de uma menina. E realmente me descobri brasileira. Tinha dificuldade em me identificar com a música do Brasil. Com a palavra, textos e poemas, eu sempre me identifiquei, sempre gostei muito de Manoel de Barros, da literatura brasileira ou da literatura portuguesa. Mas musicalmente, aquela coisa típica do Brasil, samba e essas coisas todas, eu ainda não tinha conseguido identificar isso em mim. Isso até me levou a cantar quase tudo em português. Meio que desisti do medo e dos julgamentos".
O clique deu-se com "Lonely". Um dia, chegou a casa, ouviu a música e caiu num choro emocionado de espanto e pensando para si "que coisa bonita". Exactamente as palavras que nos ocorrem ao ouvir "Pitanga".
Ver crítica de discos págs. 34 e segs.