Epopeia luso-grega

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Amélia Muge e Michales Loukovikas, num tempo em que a crise varre Portugal e a Grécia, põem em "Periplus" a força das antigas epopeias EGLE BAZARAITE

Amélia Muge fez com Michales Loukovikas o disco que ainda ninguém tinha feito. Une Portugal e a Grécia, Ocidente e Oriente, passado e futuro. Estreado anteontem na capital da cultura, Guimarães, "Periplus" chega amanhã ao palco da Culturgest, em Lisboa. Nuno Pacheco

Conheceram-se na Internet, trabalharam juntos na edição portuguesa d""O Ouro do Céu" de Ares Alexandrou e agora assinam um disco em parceria. Amélia Muge e Michales Loukovikas, num tempo em que a crise varre Portugal e a Grécia, põem em "Periplus" a força das antigas epopeias, propondo uma viagem musical luso-grega que abarca, na mesma aventura, outras culturas vizinhas, da Ásia à África. Num disco anterior, "Não Sou Daqui" (2006), Amélia deixara já uma ponte para este jogo geográfico de lugares. "Deixei isso em aberto sem perceber muito bem como é que ia continuar", diz Amélia agora. "Sempre achei que teria de fazer isso com alguém que não fosse português e, de repente, o contacto com o Michales, que conheci no MySpace, possibilitou e tornou mais fácil este trabalho em conjunto. É curioso que, neste disco, eu tive mais do que nunca que "ser daqui", isto é, ser das coisas que são de todos, à escala da Europa ou planetária. Tive que ser a voz comum das coisas que nós temos para partilhar."

O disco integra, como canção, um excerto do poema "Cântico do país emerso", de Natália Correia, que começa assim: "Não sou daqui das praias da tristeza". "Isso faz uma ponte para o ser ou não ser das coisas, que neste disco são muito plurais. E levou-me a uma entrada em novos patamares do "eu". O que aprendi ajudou a descobrir-me num "outro" português e trouxe-me desafios que me fizeram alargar horizontes."

Para Michales, as primeiras pontes com a cultura portuguesa foram o fado (Amália, sobretudo) e José Afonso. "Sinto-me afortunado por ter conhecido a Amélia porque há coisas na música portuguesa, noutros músicos, que não entendo, não aprecio, mas a música da Amélia (e eu passei na rádio o "Não Sou Daqui") é realmente fantástica."

"Os elos são muito antigos e estão aí. É preciso olhos e ouvidos para os procurar, mas quando se encontram é fácil combiná-los. Uma coisa que aprendi na rádio [Michales, além de músico, é radialista] é que precisamos sempre de construir pontes. É estúpido ir do rebético ao blues, mas com as pontes apropriadas pode-se ir até onde se quiser." Amélia diz que é como "criar comportas para nivelar a água. Nós começámos, sem saber que estávamos a trabalhar para o disco, no início de 2009. No fim desse ano já havia traduções feitas e já havia a ideia muito clara de que o que faz a diferença é a língua. A "lullaby" do Michales cantada pela Eleni é música grega mas cantada por mim, se ninguém souber, passa por música portuguesa. Há temáticas que são comuns: todos temos canções de lamento, de embalar, de trabalho, cantos de tavernas..."

Ninfas e cigarras

"Periplus" tem 24 canções repartidas por dez andamentos. "Das ausências" é o primeiro. Amélia explica-o: "Quando eu digo "uma pena que me coube", isso tem muito a ver com a descoberta da capacidade de amar a cultura grega, que me passaria completamente ao lado se não fosse este trabalho. É a ausência do que não se conhece. Os portugueses traduzem-na por pena, que ligada ao pássaro é uma coisa leve, mas os gregos, ao transmitirem essa mesma dor, falam numa barra pesada de ferro. A dor é a mesma, mas os símbolos acabam por ser quase contrários." Michales: "Essa versão é a de Creta. Mas já é fruto de viagens, porque tem influências da Ásia Menor e do Levante. Muitas vezes usamos as mesmas letras noutras versões, consoante as regiões da Grécia."

No segundo, "Dos caminhos" surge Cabo Verde: "Porque era um dos locais possíveis para o jardim das Hespérides [ninfas da mitologia grega]", diz Amélia. "Fiz uma morna e o Michales, como na Grécia também há uma região que tem escalas pentatónicas, o Épiro, acabou por fazer a ligação". Ligações como esta sucedem-se por todo o disco. Em "Dos Cantos" Hélia Correia, a escritora, traduz para português e canta, em grego antigo, o epitáfio de Seikilos (séc. II a.C. - I d.C?) com arranjo musical de Michales (que ficou espantado por ver uma escritora, não uma cantora, a cantá-lo assim); "Das ilhas" põe Fernando Pessoa, Ares Alexandrou e Constantine Cavafy em diálogo cósmico; "Das vozes" vai de Natália Correia envolvida nos Hinos Délficos até às pragas populares; "Dos embalos" mistura canções de embalar e lenga-lengas de cá e lá; "Dos amores" mostra como uma folha de rosa consegue odes semelhantes em grego, galego ou português; "Da alma" e "Das tascas e tavernas" vogam pelo íntimo e o lúdico, pondo a guitarra portuguesa e o bouzouki grego em feérico diálogo de cordas, com o fado pelo meio ("Este fado tem dois andamentos, e um deles evoca o de Coimbra", diz Amélia); e "Tão longe, tão perto" cruza as vozes de Amélia e de Eleni Tsaligopoulou em perfeita simbiose das duas culturas, terminando com "Zum zum", inspirado em Violeta Parra.

Nesta aventura embarcaram muitos músicos, desde logo a começar por José Martins, essencial nas gravações (Grécia, Lisboa, Guimarães) e na estruturação de todo o disco, António Quintino, Filipe Raposo, Harris Lambrakis, José Salgueiro, Ricardo Parreira, Kyriakos Gouventas, Manos Achalinotopoulos, o grupo Outra Voz, de Guimarães (coro de cidadãos que já reúne 120 elementos) e uma extensa lista de convidados. E cigarras gregas. Afinadas. Nos ensaios, Amélia reparou que elas "cantavam no ritmo da música". Quando disse isso toda a gente riu, mas era verdade. Apanharam os andamentos e só falharam na bossa. Mas ficaram gravadas em "Zum zum". Amanhã, 25, "Periplus" fará da Culturgest luso-grega (às 21h30). Faltarão as cigarras, mas não se pode ter tudo.

Ver crítica de discos págs. 34 e segs. e concertos págs. 37 e segs.

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