Alien, ou os monstros epistemológicos de Elsa Rodrigues
A alteridade, o outro, o estranho. A humanidade não pára de reimaginar os seus medos, desde a tecnologia à identidade. A tetralogia Alien fez isso, diz a investigadora que vai publicar um livro sobre o tema.
Se o outro pode representar todos os nossos medos, então o monstro definitivo foi inventado há 33 anos. Ridley Scott fez os espectadores (e os actores do filme) gritarem ao ver irromper um ser do peito de Kane. Só com isso imortalizou Alien: O oitavo Passageiro . O pior dos alienígenas saía cá para fora, em 1979, e trazia com ele as sombras que empurravam o filme desde o início: a obsessão do lucro, a perversão da tecnologia, um futuro lúgubre sem expectativas nos relacionamentos, sem esperança. "O Alien foi o primeiro filme que me perturbou. Um bom filme de ficção científica faz isso, nós não captamos imediatamente onde está a perturbação. Ele perturba-nos a vários níveis e levamos algum tempo a digerir", confessa Elsa Rodrigues, professora do ensino secundário formada em Filosofia. No caso da investigadora, a obsessão manteve-se até o doutoramento, que terminou em 2010, na Universidade de Coimbra, e que serve agora como base para a publicação de dois livros: um sobre a ficção científica e outro sobre os quatro filmes Alien, chamado Do oitavo Passageiro ao Clone Número oito , editados pela Imprensa da Universidade de Coimbra.
A saga não acabou em 1979, e o monstro reapareceu em Aliens: O Reencontro Final (1986), Alien 3 - A Desforra (1992) e Alien: O Regresso (1997). Houve ainda dois crossovers inconsequentes com o universo do Predador e, em Junho deste ano, vai estrear-se Prometheus, assinado também por Ridley Scott, onde se contam os acontecimentos que precederam o primeiro encontro com o monstro. Segundo o realizador, o filme não é uma prequela, apesar de haver ADN alienígena envolvido e altas expectativas por parte do público.
Embora o terceiro e o quarto filme não tenham tido o impacto dos primeiros dois, não deixaram de ser objectos de análise, tendo como base os quatro temas que Elsa Rodrigues aprofundou na sua tese: a alteridade, a tecnologia, o espaço e o tempo.
Foi a partir daqui, e depois de ter visto cada capítulo da saga frame a frame, que a investigadora situou a tetralogia na história da ficção científica da segunda metade do século XX e analisou a forma como o "outro" reaparece num contexto futuro, juntamente com a projecção dos medos latentes da modernidade. Mesmo com as mãos ocupadas com um pacote de pipocas, o resultado na tela obriga à reflexão. "Esta é a grande vantagem que eu vejo na ficção científica - mostra um conjunto de questões que obrigam o espectador a reflectir e são questões epistemológicas, ainda que não seja da melhor qualidade. São questões que são pensadas por filósofos, cientistas, sociólogos. Há esse aspecto, que acho extraordinário: que se consuma epistemologia na forma cinematográfica enquanto entretenimento", revela a investigadora ao P2.
Ripley a primeira heroína
Recordemos o filme de Ridley Scott, seminal. Uma nave, Nostromo - referência a um título de Joseph Conrard -, tem um destino traçado pela companhia: um planeta que abriga uma espécie nova, "perfeita", para ser explorada e tornar-se numa arma potencial. Aos sete tripulantes da nave espera-os o oitavo passageiro que é, segundo a descrição da investigadora, "visualmente interessante, morfologicamente rico, biologicamente complexo, socialmente estruturado e psicologicamente diferente do humano, sem fragilidades físicas ou emocionais, estabelecendo-se como radicalmente outro, como o absolutamente estranho com o qual não há comunicação nem entendimento e que, por isso, se institui como inimigo".
O alien vai matando, um por um, cada elemento da tripulação. A frase de lançamento do filme, que remete para o imaginário do terror, diz tudo: "No espaço ninguém consegue ouvir-te." "O Alien inaugura simultaneamente um ciclo de malevolência que não existia e é um choque em relação aos filmes da época", como Star Wars ouEncontros Imediatos, explica Elsa Rodrigues.
A alteridade vem do espaço e é mesmo má. Mas não deixa de ser a continuação de um património antigo. "Temos demónios, gárgulas, temos muita vontade de dar nomes aos medos e de os vencer. Se calhar é uma coisa muito infantil. Temos de os criar e configurar, e depois fazemos narrativas de luta e de vitória onde vencemos o medo", sustenta Elsa Rodrigues.
Neste caso, o horror é travado por Ellen Ripley, protagonizada por Sigourney Weaver, a única sobrevivente da Nostromo. A final girl - um conceito nascido dos filmes de terror da década -, que resiste a tudo e todos, não tanto graças à sorte, mas à inteligência e capacidade de reacção, e transforma-se numa marca tão forte quanto o alien que combate, voltando a aparecer no resto da saga.
O Alien "é um filme feminista". "A Ripley é a primeira heroína, ela consegue sobreviver a um confronto com uma entidade que segundo o Ash [o ciborgue que é a outra personagem negativa do primeiro capítulo da saga] é perfeita." Desde o primeiro momento em que viu o filme, a personagem tornou-se uma referência para Elsa Rodrigues. "Ridley Scott escolhe mulheres fortes. As [personagens principais de] Thelma e Louise também são mulheres fortes. A Ripley é uma mulher muito mais forte no primeiro do que no segundo filme, em que já é uma heroína de acção. James Cameron [realizador do segundo capítulo da saga] acompanha-a, dá-lhe homens, a companhia, armas. Ali não, ela está sozinha."
Tecnofobia, tecnofilia
Mas esta dualidade, macho/fêmea, também é uma fonte de desconforto e perturbação ao longo do filme. Ripley quase é morta por Ash, que introduz uma revista pornográfica na boca para a sufocar, numa referência claramente sexual. O próprio alien mata indiscriminadamente, homens e mulheres, com a cauda, o que remete para a imagem de um falo. "O alien é um macho violador", interpreta Elsa Rodrigues. "O domínio masculino é curiosamente não humano. Os machos dominantes são a alteridade, agressivos e expressam aquilo que os humanos não expressam, ou seja, a agressividade às mulheres." Uma agressividade latente na sociedade, numa altura de ressaca do movimento dos direitos humanos, dois anos depois os EUA entrariam na era Reagen.
Aliás, é no encontro com o outro e na representação da tecnologia como uma fonte de problemas que o primeiro capítulo da saga se inscreve como produto da ficção científica do seu tempo, projectando e contemplando os fantasmas da época. Segundo Elsa Rodrigues, a alteridade é a fonte da problemática da ficção científica da década de 1960 e 1970, que acompanha os temas dos direitos humanos.
Na década seguinte, é o estatuto da tecnologia que está na berlinda. Primeiro numa vertente tecnofóbica, de perigo e desestabilização, passando para uma vertente tecnofílica, como um elemento positivo ao mesmo tempo que cada vez mais dispositivos tecnológicos, como o comando da televisão ou o computador, se foram infiltrando na sociedade da altura. Basta olhar para o Exterminador Implacável I (1984), e a sequela, de 1991, em que a personagem de Arnold Schwarzenegger passa de uma máquina insensível e sanguinária para o guarda-costas amável de John Connor, que, no futuro, será a última esperança da humanidade.
Na saga do Alien, do primeiro para o segundo filme, Ash, que põe sem qualquer pudor a espécie alienígena à frente da sobrevivência dos humanos, é substituído por Bishop, um ciborgue que arrisca a "vida" pela dos companheiros e é aprovado por Ripley.
Paradigma pós-moderno
É neste tipo de reflexão que a investigadora vê o interesse do cinema de ficção científica. "A obrigatoriedade da ficção científica é que esteja sempre ancorada ao conhecimento existente, à lógica e às leis da física. Tem de haver uma continuidade epistemológica no universo imaginado, se não passamos para a fantasia", considera.
A partir do tempo e espaço de hoje, pode-se imaginar outros tempos e outros espaços, o que implica a colocação de hipóteses sobre o impacto do pensamento, da ciência e da tecnologia, do encontro com o outro e serve ainda como campo de testes para o que vai acontecer. "Ver ficção científica implica mais competências do que ver outro cinema, porque temos de imaginar um paradigma ausente, mas também implica essa projecção do presente no futuro, para conseguir perceber o futuro que me é mostrado e ao fazê-lo interpreto o presente", considera. "Para que qualquer novidade tecnológica ou científica seja consequente numa narrativa, necessariamente são levantadas hipóteses, e, eventualmente, são colocados alertas de perigo em relação a determinadas coisas."
E as problemáticas vão mudando. Se na década de 1990 uma das tecnologias que acaba mais reflectida nos filmes é a clonagem, a questão principal, para a investigadora, é o tempo e o espaço - onde o "aqui" e o "agora" do filme são enganadores. Elsa Rodrigues dá exemplos: 13th Floor, Dark City ou Matrix. "O que vai sendo a temática é a duplicidade, o engano, o não saber bem a que nível da realidade se está e isso reflecte-se na questão da identidade: O que é que eu sou? Eu sou eu? Sou o clone? O clone é mais ou menos importante do que eu? Qual é o estatuto do original e da cópia?"
No quarto Alien está lá tudo. Ripley é ressuscitada através da clonagem, mas ganha ADN alien e torna-se híbrida. A rainha engravida e gera um ser aberrante que a mata assim que nasce, mas que depois se liga emocionalmente a Ripley e, quando é morto pela sua "mãe", através de uma cena que faz lembrar um aborto, causa pena. Os sobreviventes são uma mistura de identidades e Ripley, que lutou durante toda a saga contra a infecção alienígena, leva, ela própria, dentro de si, o ADN extraterrestre para a Terra. "A essência do homem é um tema delicioso na ficção científica", diz Elsa Rodrigues, defendendo que a mistura das identidades é um reflexo de uma mudança mais profunda.
"Estamos a viver um momento de mudança paradigmática em que o homem como ser racional, a ciência como ideal para o conhecimento, tudo isso está a desmoronar-se. A pós-modernidade parece-me o desmoronar disso. A ficção científica veio projectando esse diluir de fronteiras entre razão e emoção, humanos e máquinas. Até a própria noção de tempo e de espaço foi alterada pela tecnologia", comenta.
Mas há uma ideia que permanece desde o início: o primeiro filme apresenta a companhia, que simboliza os interesses capitalistas, o lucro, e que quer possuir o alien desde o primeiro momento. Para Elsa Rodrigues este é o elemento mais negativo da história, porque "é o que está em controlo". E vai manter-se como motor da narrativa, ao longo da saga, mesmo no terceiro filme, em que é representado por uma empresa nipónica, que tenta controlar a situação.
"Claramente, a não ser nos filmes de Steven Spielberg, a lógica humana é de conquista, domínio e domesticação. O universo do Alien assume que o homem já colonizou vários planetas e aproveitou outros recursos. Está aqui assumido o pior, a colonização, a relação com o outro que é sempre de confronto e tentativa de domesticação", interpreta.
Por isso, voltemos a Nostromo, ao momento incrível em que um alien salta do peito de Kane e apresenta-se como o irremediavelmente diferente, o outro para quem o diálogo é impossível, mas que continua a ser o objecto de ganância. Nunca se transforma em tecnologia, nunca se transforma em arma. É de uma natureza perfeita, bela e letal. Parece um absurdo suicida promovê-lo, querer possuí-lo. "Há uma consciência muito clara que o homem é o pior inimigo do homem, que tenta tirar proveito de qualquer situação", conclui a investigadora. Ainda não ultrapassámos isso. Valha-nos Ellen Ripley.