Uma arte maior
O escritor brasileiro Rubem Fonseca, Prémio Camões 2003, é este ano um dos convidados do festival literário Correntes D"Escritas, que hoje começa. O secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, condecora-o com a Medalha de Mérito Cultural e, no P2, traça uma panorâmica da sua obra. Num pequeno depoimento, Rubem relembra as suas ligações a Portugal e à literatura portuguesa
Das páginas de historiografia de Agosto - haverá por certo personagens mais fascinantes do que Getúlio Vargas, mas as suas incógnitas marcaram a história do Brasil até hoje - até ao rodopio cinematográfico de E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto, passando pela admirável máquina de criação de personagens que é Feliz Ano Novo, Rubem Fonseca fez mais do que modelar histórias, escrever, representar, descer aos infernos, levar-nos a passear pelas penumbras do Rio (a mais impura das belezas urbanas). Além de tudo isso, que não é pouco, Rubem Fonseca desdramatizou o uso da língua portuguesa, recriando-a, reinventando-a graficamente; ele é, provavelmente, o mais brilhante autor de diálogos na nossa língua, sem ceder à banalidade do coloquialismo, às marcas regionais ou às fáceis armadilhas da ortofonia.
O monumento está aí e é A Grande Arte, o meu romance preferido de todos os que Rubem Fonseca poderia ter escrito. É talvez injusto para um escritor que, depois de A Grande Arte, escreveu Buffo & Spallanzani, Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos e ainda os contos de O Buraco na Parede, Histórias de Amor, A Confraria dos Espadas, Pequenas Criaturas ou a retoma do personagem Mandrake em A Bíblia e a Bengala, um divertimento, sem falar da maravilhosa incursão pela música em O Selvagem da Ópera, uma espécie de biografia de António Carlos Gomes. Mas A Grande Arte, romance que atravessa o género policial como um tormento, dilacerando-o de ironia, de literatura e de melancolia, é uma revisão moderna e brasileira do "cânone policial", exaltando as suas virtudes, expondo as suas vicissitudes e fragilidades, e rindo da ortodoxia.
Virtudes, primeiro: pelo título da primeira parte do romance, "Percor", a montagem de um cenário conforme ao género. Cadáveres, um caso insolvente, as mulheres cujos rostos são traçados com um "P" misterioso; um personagem que se transfigura, narrando na primeira pessoa, tenso e cheio de tristeza, como Philip Marlowe, mas com um sinal picaresco a despontar aqui e ali, rindo do propósito cinematográfico que assoma desde a primeira página.
Vicissitudes e fragilidades, depois: Mandrake, o personagem, não existe como centro da narrativa, que é um retrato em grande panorâmica do Brasil do final da ditadura sem a referir uma única vez, circulando em torno dos seus silêncios e das suas exclusões. Onde o cânone impõe um único herói (ou dueto, para relembrar o cinema), o advogado criminalista Mandrake soçobra e rodeia-se de comparsas geniais que vão de Wexler, o seu colega de escritório, um prodígio ídiche ("waycher mentsch diment..."); a Raul, um polícia quase erudito que transporta o seu emblema de virtudes pessoais e profissionais; a Bebel, a jovem que abandona o seu estatuto de adolescente e se expõe a Mandrake como um fruto da árvore da inocência e do pecado (de que ele tinha percorrido vários ramos na companhia de várias e tantas mulheres, como Ada, Berta Bronstein, Eva, Lilibeth); a um perdido, Camilo Fuentes, o matador que adquire uma identidade social e racial, porque o tempo nos ensina que a luta de classes não termina nunca; à malograda Mercedes, que acompanha Mandrake numa viagem de comboio pelo deserto do Mato Grosso até à fronteira da Bolívia; e à descoberta de um personagem tão genial quanto contraditório como Lima Prado.
O riso, finalmente: com Zakkai, certamente, o anão negro, empresário, visionário e vidente, representante dos subterrâneos do Brasil, capaz do mais descoordenado dos discursos sobre o andamento do mundo, uma metonímia brasileira. Mas também com o trágico Lima Prado, que obriga Rubem Fonseca a compor a segunda parte do romance (Retrato de Família) a partir de uma genealogia que percorre duzentos anos de Brasil, de decadência e de demência - e, assim, a ferir definitivamente a imposição do cânone policial, desobedecendo-lhe, reconstruindo-o, amaldiçoando-o para o reerguer num certo momento. Lima Prado não é apenas o fascista e o empresário que pretende construir um império (a Aquiles, o Escritório Central) que cercará toda a vida política e económica: ele é também uma invenção surreal, produto de adultérios entre quatrocentões paulistas que perderam fortunas, incapaz de nadar (pormenor fatal: incapaz de flutuar), incapaz de amar senão como uma recordação.
Ou seja, aquilo que estava destinado a ser um policial (Mandrake regressa em E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto, título que retoma dois versos do poeta Álvares de Azevedo, e em A Bíblia e a Bengala), com os seus crimes, sexo, dissabores, adultérios, estava também destinado a ser uma evocação da grandeza da própria literatura, quer através da invocação da frase de Arquíloco de Paros ("Tenho uma grande arte: eu firo duramente aqueles que me ferem", transformada por Mandrake em "minha arte é maior ainda: eu amo aqueles que me amam"), quer do tom do grande "romance literário", povoado de bibliografias insones (inventadas ou recriadas ou canónicas). Esta marca, aliás, é permanente em Rubem Fonseca. Em E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto não é apenas Mandrake que regressa - mas também Gustavo Flávio, o escritor de Bufo & Spallanzani. Em Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos não é apenas o cineasta em crise que procura filmar - é também um livro desaparecido de Isaak Babel. Em Agosto, no meio da amarga investigação policial de Mattos (se bem que o que nos interessa, a certa altura, seja a "tristeza de Getúlio Vargas"...), Alice invoca a presença, em São Paulo, de Robert Frost, Faulkner, Torga ou João Cabral de Melo Neto. Mas, mais, muito mais, e atravessando todas as metáforas sobre o apetite sexual do narrador (Raul, a certa altura, cita Wexler: "Wexler diz que o amor extremado que você tem pelas mulheres está muito próximo do ódio."), uma sublime melancolia que mudou por completo a forma de se escrever sobre sexo em toda a língua portuguesa; como uma pérola iluminada pela derradeira luz do dia, Rubem Fonseca reconstitui nos seus livros a história do erotismo, modulando-o ("A pomposidade venturosa e festiva das palavras obscenas."), erotizando-o ainda mais (enquanto está na cama com Mónica, Lima Prado recorda o "imenso campo de girassóis a desaparecer no horizonte", em Toledo, Espanha), desculpabilizando os seus deslizes, encontrando uma linguagem que ninguém mais conseguiu traduzir ou reutilizar com essa sabedoria ou com essa naturalidade.
A Grande Arte é um livro interminável apesar do encontro decisivo na última página (como nos folhetins clássicos, afinal, definindo o romance como a narrativa burguesa por excelência); mais do que uma paródia sublime do género policial, ele inventa um Brasil onde o horror e a perversão social coabitam num mundo maravilhoso onde sexo, disponibilidade e agressão explodem, ao longe, como vulcões. É pura arte, pura literatura.
Francisco José Viegas, actual secretário de Estado da Cultura, é também escritor. O seu livro mais recente é O Mar em Casablanca