Na pré-história da EDP e da REN, existiam 14 companhias e um país virado para a "hulha branca"
Portugal era, no princípio do século XX, um país fortemente dependente das importações de carvão britânico, a chamada "hulha negra". Com as paragens de fornecimento durante as guerras, a solução foi aproveitar o que ficou conhecido como a "hulha branca": a força dos rios. Uma breve história da electricidade, cá
A assembleia geral da EDP que se realiza hoje vai marcar um passo decisivo na vida da empresa. A alteração dos estatutos e a eleição dos novos órgãos sociais, que vão a votos, são já uma porta aberta para a saída do Estado da empresa. Quanto à REN, quando em breve se alienarem os últimos 11,1% que para já ficam em mãos públicas, também a empresa que gere as redes de transporte de electricidade e gás deixará de ter representantes do Governo.
O que agora fica para trás é uma história marcada pela forte presença do Estado nos últimos 70 anos, décadas antes do nascimento da EDP.
Foi em 1944 que se deram alguns dos passos mais importantes para o que é hoje a empresa de electricidade portuguesa. José Ferreira Dias Júnior, subsecretário de Estado da Indústria e do Comércio, elaborou a Lei 2002, conhecida como Lei da Electrificação Nacional, e lançou as bases do sistema eléctrico português.
No livro A História da Energia, coordenado por Nuno Luís Madureira, recorda-se que uma das premissas desta estratégia foi permitir a exploração dos principais rios através de centrais hídricas, criadas pelo Estado. Objectivo? Aumentar a utilização dos recursos próprios do país e diminuir a dependência energética - uma preocupação já nessa altura.
Com efeito, desde o início do século que Portugal era fortemente dependente das importações de carvão britânico. Foi a chamada "hulha negra", que durante várias décadas alimentou muitas centrais eléctricas, recordam os autores de A Electricidade em Portugal: dos Primórdios à II Guerra Mundial, de Ana Cardoso Matos, Fátima Mendes, Fernando Faria e Luís Cruz.
Com as paragens no fornecimento de carvão durante as duas guerras mundiais, os portugueses sentiram o preço dessa dependência. Mas, como o carvão português tinha menos poder calorífero do que o britânico, não era um substituto à altura. A solução foi aproveitar o que ficou conhecido como a "hulha branca": a força dos rios.
Foi o que se passou na região de Lisboa, por exemplo. Durante muitas décadas o carvão tinha sido o principal combustível da Central Tejo, onde funciona hoje o Museu da Electricidade. Construída em 1909 pelas Companhias Reunidas de Gás e Electricidade, a central só perdeu o papel de maior centro produtor eléctrico em Lisboa, quando a barragem e a central hídrica de Castelo de Bode começaram a funcionar, em 1951. Finalmente, as luzes de Lisboa passavam a ser alimentadas a hidroelectricidade.
Seis anos antes, no seguimento da nova Lei da Electrificação Nacional, em 1945, tinham nascido a Hidroeléctrica do Cávado, para os rios Cávado e Rabagão, e a Hidroeléctrica do Zêzere, as duas empresas de capitais públicos e privados, que se lançam na construção de grandes barragens. Logo em 1951 entram em funcionamento a central hidroeléctrica de Vila Nova (Cávado) e de Castelo do Bode (Zêzere), que três anos depois já representavam mais de 50% da produção eléctrica portuguesa. Os preços praticados por estas duas empresas transformam-se também numa referência para a distribuição nacional, fragmentada em dezenas de grandes, médias e pequenas concessionárias.
Nos anos 50, nascem ainda a Hidroeléctrica do Douro e a Empresa Termoeléctrica Portuguesa - esta última viria a ser responsável pelos projectos de importantes centrais térmicas, a carvão e a fuelóleo, que anos depois entraram em funcionamento, como as centrais da Tapada do Outeiro (começou a operar em 1959, em Gondomar), do Carregado (final dos anos 60, Alenquer) e Tunes (1973, em Silves), indicam Jaime Ferreira e João Figueira, no livro A Electrificação no Centro de Portugal no Século XX. Entretanto, a "hulha branca" tinha continuado a ganhar força: sucederam-se as centrais hidroeléctricas de Belver (1952), Salamonde (1953), Cabril (1954), Bouçã e Caniçada (1955) e Paradela (1958).
"De cortar à faca"
A estratégia concebida por Ferreira Dias será também intervir no transporte e distribuição de electricidade, pois só assim seria possível tirar proveito das novas fontes de energia: em 1947 nasce a Companhia Nacional de Electricidade (CNE), precursora da REN. À semelhança das sociedades hidroeléctricas, também a nova empresa era uma sociedade de capitais públicos e privados, mas com uma forte presença do Estado. Viria a tornar-se responsável pela construção e concessão da rede de transporte de electricidade em alta tensão, ligando as centrais produtoras às redes de distribuição, que, por sua vez, levavam a energia eléctrica às empresas e a casa das pessoas.Ficou também estabelecido que os operadores que utilizassem a nova rede de transporte teriam de pagar "portagem". Nada contentes com a entrega do transporte de electricidade apenas à CNE ficaram as empresas privadas, que continuavam a ter um forte peso na distribuição e comércio de energia e não queriam perder esses direitos. Muitas eram accionistas da própria CNE - como as Companhias Reunidas de Gás e Electricidade, a União Eléctrica Portuguesa e a Companhia Hidroeléctrica do Norte de Portugal. Não é de admirar que o ambiente nas reuniões de administração fosse por isso "de cortar à faca", mas o Estado, que era o accionista com maiores poderes, acabou por levar a melhor, descrevem os autores de A História da Energia.
E as mudanças não ficaram por aqui. Anos depois, em 1969, as grandes companhias que tinham sido criadas depois da Lei de Electrificação Nacional, incluindo a CNE, fundem-se na Empresa Portuguesa de Electricidade, que passa a dominar a produção eléctrica e o transporte de electricidade.
Ao mesmo tempo, uma grande parte do sector mantinha-se nas mãos de empresas e municípios, fruto das dezenas de iniciativas avulsas que marcaram o nascimento da energia eléctrica. Há pouco mais de 100 anos, a forma como muitas localidades foram trocando o gás pela electricidade deveu-se às acções de carácter local. Por iniciativa privada ou de municípios (o pioneiro foi Coimbra), quando o número de utilizadores não era atractivo para as empresas, foram-se construindo pequenas centrais de energia eléctrica. Muitas vezes, eram as próprias fábricas que vendiam às câmaras os excedentes da electricidade que produziam ou que criavam empresas para esse efeito.
Tomar, por exemplo, começou a ter iluminação pública com a compra dos excedentes da produção eléctrica à Real Fábrica de Fiação. Em Elvas, logo em 1901, esse papel pertence à Companhia Elvense de Moagem, e em Reguengos de Monsaraz à Moagem de António Rosado Caeiro. Em Famalicão, um caso curioso, a electricidade chega pelas mãos da fábrica de relógios A Boa Reguladora.
Mário Mariano, na sua História da Electricidade, lembra que um inquérito lançado em Portugal em 1928 veio revelar "um sistema produtor eléctrico extremamente disperso, constituído por 395 centrais, das quais apenas cinco de potência superior a 7000 cv".
As marcas da história também se notavam nas maiores cidades. No Porto, durante muitas décadas era a câmara municipal que explorava a produção de electricidade e a distribuição. Já em Lisboa, é de origem belga a maioria do capital das Companhias Reunidas de Gás e Electricidade, responsáveis pelas primeiras iluminações públicas ainda no final do século XIX.
Esta empresa é uma das que viriam a sobreviver até à nacionalização, em 1975. No mesmo ano, por decreto publicado a 16 de Abril, também a Companhia Portuguesa de Electricidade (de capitais mistos) e ainda outras 12 empresas privadas, as maiores concessionárias na produção, distribuição e comercialização, foram nacionalizadas. Entre estas contavam-se a Aliança Eléctrica do Sul, a Companhia Eléctrica do Alentejo e do Algarve e a Companhia Hidroeléctrica do Norte de Portugal.
Em 1976, a 30 de Junho, a fusão das 14 companhias deu origem à EDP, com o objectivo de estabelecer e explorar o serviço público de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica no território do continente, para "promover e satisfazer as exigências do desenvolvimento social e económico de toda a população" (Decreto-Lei nº 502/76). Mas até ao final dos anos 1980 mantiveram-se ainda dezenas de pequenas sociedades e cooperativas, municipais e privadas, que foram sendo integradas no novo grupo.