Stencil que são enigmas e memórias de Eça

As intervenções misteriosas na zona de Leiria já passaram pela Casa do Arco, pelo mercado Praia da Vieira e até pela estação de comboios de Monte Real

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O beijo transformado em street art DR

Em meia-dúzia de meses, gravuras pintadas pelas paredes de Leiria, a evocar o crime do Padre Amaro, de Eça, intrigaram habitantes e turistas e até provocaram romarias a um cemitério. Ninguém sabe quem é o "artista mistério" que pintou, sob o anonimato e o frio da noite — junto à Sé de Leiria, bem no centro da trama do romance “O Crime do Padre Amaro” —, um beijo entre Amélia e o sacerdote, ambas personagens criadas por Eça de Queiroz há quase século e meio.

Hoje, esse é um dos pontos da Rota Queirosiana. Depois, também no centro histórico, surgiu a imagem de Ernesto Korrodi, um arquitecto suíço adotado por Leiria e apaixonado pelo castelo. Hoje, as pinturas do "artista mistério", persistindo em fazer do segredo a alma da sua arte, integram a Rota Queirosiana e a Rota de Arquitetura Korrodi.

“Qualquer pretexto é bom para trazer as pessoas e para verem os locais culturais da nossa cidade. É uma intervenção organizada, não é acidental. Isto é, de facto, um grande acontecimento cultural em Leiria”, opina Orlando Costa, professor de História que elaborou a Rota Queirosiana.

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Em Leiria fala-se em bom gosto DR

Street art na rota Queirosiana

Orlando Cardoso olha para a gravura onde os dois amantes se beijam e recorda a Sé, onde o Padre Amaro do romance trabalhava, descobre o imóvel no qual Eça de Queiroz assumia o papel de administrador do concelho de Leiria, “a farmácia do Carlos, que no livro era o local de má-língua”, a calçada que levava Eça e Amaro para as suas respectivas casas.

De passagem pelo local, David Morais, residente em Leiria, conhece pelo menos os caminhos que vão dar à Sé. À gravura, já lhe deitou mais do que um olhar, mas acha que falta uma legenda ao beijo. “Os turistas que aqui vêm ver a Sé e o castelo, geralmente passam ali e ficam a olhar e, se calhar, devia lá estar a explicar um bocadinho o porquê de ali estarem e como é que foi que aconteceu. Mas que ficam intrigadas, ficam. Bastante”, reforça.

A pouco mais de 200 metros da Sé, junto à Casa do Arco — uma das obras mais emblemáticas do arquitecto Ernesto Korrodi na cidade de Leiria — a historiadora Genoveva Oliveira depara-se com a gravura. A responsável pela Rota de Arquitetura Korrodi garante, “sem sombra de dúvida”, que este “já é mais um elemento a inserir, e de bom gosto”, no roteiro cultural da cidade. E sublinha que “este “’artista mistério’ deve ter algum conhecimento histórico”.

Um cardume e um bando de corvos

Desde o final do verão passado, o artista já “arrastou” o desenho de um cardume de sardinhas no mercado da Praia da Vieira, em Vieira de Leiria, Marinha Grande, “abandonou” um homem apressado na parede da estação de comboios de Monte Real e “largou” um bando de corvos presos num dos pilares que sustém a A17, uma das autoestradas que rasga Leiria. Há mais gravuras, mas nada como a primeira, dizem pelo menos os habitantes locais de Carvide, em Leiria.

Da noite para o dia, “nasceu” no cemitério daquela freguesia uma menina triste que balança nas suas costas um ramo de flores. Junto à porta de entrada do cemitério, de cabeça baixa, parece ter-se abeirado de uma sepultura. “Na altura foi bastante comentada. Pela beleza que tem e pelo sítio escolhido, na parede de cemitério... Mexe sempre com as emoções. E o facto de ser uma criança. Penso que é uma coisa comovente”, salienta Alice Serpa, habitante de Carvide.

O presidente da Junta de Freguesia garante que ninguém se queixou. Nem do anonimato, nem da gravura. “Foi motivo até quase de romagem ao local para ver o que o "artista mistério" tinha feito no cemitério de Carvide. Vieram pessoas de outras freguesias”, recorda Daniel Casaleiro. “Se o artista se revelasse encomendava-lhe uma ou duas imagens para diversos locais da freguesia”, diz, apesar da suspeita com a qual se conformou de que o autor irá permanecer no anonimato, por mais aliciantes que sejam as ofertas de trabalho.