Beja: um crime premeditado com muitas pontas soltas
Ao suicidar-se ontem na cadeia, Francisco Esperança deixa muito por responder. O que se passou exactamente na sua cabeça para matar, com uma catana, a família - mulher, filha e neta? E por que conviveu com os corpos em casa vários dias? Ao olhar para os elementos que têm sido publicados sobre este triplo homicídio em Beja, a psicóloga forense Francisca Rebocho, da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, considera que terá sido um crime planeado, com uma motivação que pode ter sido económica e egoísta e que o agressor só se matou quando se viu encurralado.
"À primeira vista, a forma como o crime foi cometido - à catanada e ter deixado os corpos no sítio onde foram mortos, sem sequer os ocultar - faz lembrar a actuação de um crime desorganizado [impulsivo e que não é calculado ao pormenor], mas não é", começa por explicar esta psicóloga, acrescentando que também apresenta características de crime organizado.
Na literatura científica estão descritos casos como o de Francisco Esperança, em que um indivíduo mata a família: são conhecidos como assassinatos em massa do tipo aniquilador de famílias. "Nestes casos, o agressor mata por misericórdia. Normalmente, é alguém que tem um problema grave - ou é um doente terminal, ou está deprimido ou tem uma condição debilitante, desde mental e física a económica - e, para poupar o sofrimento à família, mata-a", explica Francisca Rebocho. "Mas os métodos usados por estes indivíduos são rápidos e o mais indolor possível. Optam pela asfixia ou armas de fogo e também são mais organizados. Tipicamente, termina com o suicídio do agressor pouco tempo depois do crime."
Francisco Esperança tinha cancro, mas o resto do seu perfil - a escolha da arma do crime e o suicídio já na prisão - não encaixa no de um aniquilador de famílias. "Tinha uma arma de fogo, o que teria permitido uma morte mais limpa. Mas optou pela catana, que traduz uma carga emocional mais violenta, mais intensa", explica.
"O problema oncológico não parece ter sido a motivação, porque, na mesma altura do crime, movimentou as contas bancárias conjuntas e levantou todo o dinheiro", interpreta ainda a psicóloga forense as informações vindas a público. "Isto indica que é premeditado, que não pretendia ser apanhado e que talvez a motivação tenha sido financeira. Muito possivelmente a motivação não seria altruísta, como os homicídios dos aniquiliadores de famílias, seria egoísta", refere Francisca Rebocho. "A haver a motivação do dinheiro, a família podia ser um fardo para ele, um empecilho, se precisasse do dinheiro para alguma coisa ou se quisesse desfrutar dele nos últimos tempos de vida."
Para a psicóloga, as deslocações que Francisco Esperança terá feito ao trabalho da mulher e à escola da neta, dando explicações para as ausências delas, reforçam a leitura de um crime premeditado. "Antes da descoberta dos cadáveres, criou histórias para justificar o desaparecimento das pessoas, o que indica um grande planeamento."
Mas se houve planeamento, por que não se viu livre dos corpos? "Não se livrou dos corpos, mas também não ficou trancado com eles em casa, o que seria um sinal de culpa ou patologia mental. Nada nos diz que não tinha planeado fazê-lo. Tendo criado estas histórias, tinha tempo para planear como livrar-se dos corpos. Foi surpreendido pela polícia depois da denúncia do namorado da filha e ainda numa fase em que não se tinha visto livre dos cadáveres."
Quando Francisca Rebocho olha para o quadro geral deste crime, a premeditação, as histórias que o agressor criou depois e a aparência de uma vida normal sugerem-lhe alguém com características psicopatas. Enquanto uma patologia mental é uma doença, como a esquizofrenia, uma psicopatia é uma perturbação da personalidade.
"A premeditação e planeamento metódico são mais característicos de psicopatas. Assim sendo, a escolha da catana é lógica, tem a ver com afectos negativos contra a família. Um psicopata com afectos negativos contra a família pode querer livrar-se dela."
Para Celina Manita, psicóloga forense da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, o uso da catana para matar, sobretudo a criança, "é extremamente violento e não é muito frequente".
A morte dos animais de estimação, um cão e um gato, é outra peça importante neste puzzle: "Não tinha necessidade de se livrar dos animais, a não ser por um factor: em convívio com os cadáveres, iam emitir ruídos que podiam chamar a atenção e, neste caso, matou-os numa perspectiva puramente instrumental, para evitar mais uma possibilidade de detecção", considera Francisca Rebocho.
Celina Manita considera ainda que a morte da mulher, da filha e da neta na mesma altura foge ao quadro típico de um homicídio conjugal, pois seria mais comum matar a mulher e, caso se intrometesse, a filha. Tal como o contacto com os cadáveres, a invenção das histórias e ter aparentado uma normalidade não se encaixa no quadro de um homicídio cometido numa escalada de conflito ou no momento em que o agressor percebe que vai ser abandonado, refere ainda Celina Manita, que por isso não descarta a possibilidade de uma patologia mental. "Isto leva-me à hipótese de ter havido outra patologia [como esquizofrenia], que pode ter desencadeado um surto psicótico [alterações momentâneas do contacto com a realidade], ou outro elemento que levou a alguma alteração. Pode ter misturado álcool com medicamentos."
Como interpretar ainda o suicídio na cadeia? "O ego dos psicopatas não suporta o golpe", responde Francisca Rebocho. "Quando se vêem encostados à parede, como era o caso, matam-se. Vê a reacção das populações, vê o que o espera na cadeia, tem pouco tempo de vida e o ego dele não suporta ver-se nessa situação."
Ao suicidar-se, fica por esclarecer o que lhe passou na cabeça no dia em que matou a família - se tinha alguma patologia mental, se era psicopata.
Notícia corrigida às 18h05