O mundo mágico do castelo de algodão

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constituía o centro de HierápolisPamukkale é um lugar mágico e poético a qualquer hora do diaHierápolis conserva antigas muralhas bizantinas, vestígios de uma basílica cristã e um teatro com 50 níveis de bancadas As casas trepam as colinas da cidade de BursaA antiga piscina associada ao Templo de Apolo

Hierápolis e Pamukkale, ambas património da UNESCO e famosas pelas suas águas termais, em contraste com Bursa, cidade órfã de turistas, pátria do teatro Karagoz e lugar importante do comércio da seda. Sousa Ribeiro (texto e fotos) viaja pelos contrastes da Turquia

O minarete esguio eleva-se no ar, o vale veste-se de verde e amarelo e as montanhas, com contornos bem definidos, recortam o céu pintado de azul onde sobe um sol ainda tímido.

- Parece neve. Achas que é possível?

As dúvidas do casal de turistas, fitando preguiçosamente o lado oposto com uma expressão de êxtase, enxertaram no meu ser um sorriso estéril de sinceridade e resgataram-me daquele mergulho no silêncio que parecia não ter fim. Virei as costas para a extensa planura, senti os odores da manhã que se abria bonita, de uma luz pura e ténue, e permiti que o olhar se afogasse na colina de um branco ofuscante, pálida como uma taça de leite, antes de empreender a subida. Retalhos da abóbada do mundo, manchada apenas por uma nuvem ou outra, reflectiam-se nas águas opacas que também devolviam o verde da escassa vegetação em redor da lagoa onde começavam a trepar os socalcos. E, de repente, como que por encanto, projectam-se à esquerda do caminho de terra batida por onde seguem os meus passos piscinas de um azul que desencadeia de imediato no viajante um espasmo de emoção e uma sensação que dificilmente se desmorona. Como se de um magnetismo se tratasse, a atracção é fatal e nem os mais velhos ou as almas mais disciplinadas resistem a chapinhar na água ao lado das crianças ébrias de euforia e de contentamento. Mudando de cor de acordo com a luz solar, Pamukkale é um lugar mágico e poético a qualquer hora do dia e de uma infinita beleza quando a manhã desponta ou quando é abrangido pelo crepúsculo, na orfandade de turistas - mais de um milhão por ano, o que lhe confere o estatuto de um dos lugares mais visitados da Turquia.

Sempre de olhos postos naquela paisagem que exala misticismo, erguendo-se como um bolo de noiva e receptiva a tantas outras metáforas, encontrei ainda mais silêncio para tentar compreender este fenómeno natural. As ténues correntes de água quente (35 graus) que brotam do solo, por baixo do monte, são ricas em cálcio e, ao deslizarem sobre as rochas da colina, deixam restos calcários (carbonato de cálcio) que, com o decorrer do tempo, foram criando um conjunto de terraços sobrepostos que comunicam entre si e belíssimas estalactites.

Um monomotor rompe o céu bem-humorado, tão baixo que permite perscrutar o rosto alegre de um turista gozando aquela privilegiada perspectiva aérea, e logo de seguida sou assaltado por um silvo agudo que enche o ar da manhã esplendorosa. Um turista, indiferente às regras impostas aos visitantes e provavelmente assombrado com tamanha magnificência, exacerba a irritação do guarda que agora segura o apito na mão esquerda e com a direita lhe faz sinal para se retirar daquela pequena piscina que brilha à luz do sol como se abrigasse mil espelhos. Não há muito tempo, quando era referência em todos os folhetos e postais da Turquia, o local estava inundado de vendedores com as suas tendas e de hotéis construídos sem grande distinção arquitectónica que trepavam até ao dorso da colina. Mas a partir de 1988, ano em que Pamukkale passou a integrar a lista de património da UNESCO, a situação sofreu uma alteração profunda e grande parte do castelo de algodão apenas pode agora ser absorvido com o olhar, de forma a controlar um desastre que parecia iminente.

A cidade romana de Hierápolis

Sob os raios tépidos do meio da manhã, cada vez mais envolta em murmúrios indecifráveis, os turistas vão assomando, uns mais vestidos, outros mais despidos. É interessante verificar o contraste entre as mulheres turcas com o rosto coberto com um véu e as jovens europeias que, em fato de banho, com os olhos exprimindo prazer, se sentam nas baías acessíveis numa doce indolência, enquanto observam aquele manto de neve feito de mármore travertino. A reputação destas águas remonta a tempos imemoriais e por elas se sentiu fortemente atraída Cleópatra e, mais tarde, entre os séculos II a. C. e IV d. C., as mulheres romanas que nelas viam reflectidas palavras como salvação e rejuvenescimento, ao ponto de tornarem Pamukkale como local de eleição e sinónimo de beleza. Com desígnios mais modestos na minha mente, deixo o castelo de algodão entregue à sua sorte e embrenho-me na antiga piscina associada ao Templo de Apolo onde, com uma temperatura superior a 30 graus, me banho entre colunas e capitéis, permitindo que se pinte na minha imaginação como era a vida no lugar considerado o centro de Hierápolis, nesta piscina sagrada e agora tão profana, onde as crianças com menos de 16 anos têm de ser acompanhadas pelos pais, uma forma habilidosa de retirar das carteiras dos viajantes mais umas liras.

Integrada num parque natural que inclui Pamukkale e também património da UNESCO desde 1988, a cidade fundada por Eumenes II, rei de Pérgamo, em 190 a.C., rapidamente se converteu num dos mais importantes centros balneários da antiguidade, prosperando durante o reinado romano e ainda mais quando foi conquistada pelos bizantinos, atraindo comunidades de judeus (chegaram a ser mais de 50 mil) e de cristãos. Situada na linha de uma falha tectónica, foi frequentemente abalada por sismos, o maior dos quais, em 1334, conduziu ao completo abandono da cidade µ ±que agora se revela desde onde a observo, estranhamente junto a uma moderna cabina telefónica.

A frescura matinal já se evaporara, o sol cintila por cima da minha cabeça, ao longe um risco de alcatrão rompe os campos cultivados que se estendem até às montanhas e Hierápolis espraia-se à minha frente, abandonada na sua paisagem àquela hora órfã de turistas. Escavada sistematicamente desde 1957 por um grupo de arqueólogos italianos - na década de 1970, quando Pamukkale ainda era conhecida por Ecirli, 90 por cento da população laborava nas escavações e o trabalho era exclusivamente manual -, a cidade conserva grandes extensões das suas antigas muralhas bizantinas, vestígios de uma basílica cristã de três naves e um teatro com 50 níveis de bancadas, com capacidade para 12 mil espectadores e construído em duas fases pelos imperadores Hadrian e Septimius Severus. A partir daqui, onde algumas mulheres turcas removem o lixo deixado pelos turistas durante um espectáculo na noite anterior, um trilho conduz às ruínas da igreja mandada erigir para acolher os restos mortais de São Filipe, crucificado no local no ano 87 d.C..

Rebanhos de nuvens leves começam a flutuar no céu quando os primeiros turistas iniciam a visita das bem conservadas ruínas de Hierápolis, que incluem uma Ágora, uma das mais largas até hoje descobertas, com pórticos em mármore e rodeada por colunas jónicas em três lados e uma basílica no outro. Uma curta caminhada, colina abaixo e passando pelo meio da Ágora, virando depois à direita quando alcanço a estrada principal, leva os meus passos silenciosos até às elegantes colunas da Rua Frontimus, em tempos importante eixo comercial norte-sul com dois arcos monumentais em cada um dos extremos, um deles, o Arco de Domiciano, ainda de pé com as suas torres gémeas. A meia dúzia de metros encontro, na mais completa solidão, as ruínas dos banhos romanos e um cemitério que se estende para norte ao longo de dois quilómetros quadrados, com alguns túmulos circulares, num total de mais de mil, encimados por símbolos fálicos de tempos remotos que resplandecem sob a luz do sol.

Uma turista, com um cabelo loiro, liso, um nariz adunco como um buda e um corpo disponível para o sol inclinado, imóvel como o tronco de uma árvore, olha na minha direcção com um sorriso languidamente divertido e eu não percebo se ela evoca uma visão do passado ou do presente ou até mesmo do futuro. Regressar ao hotel, depois de conceder tanto tempo ao destino, naquele mundo que estava a séculos de distância, parecia-me uma ideia razoavelmente sensata. Carregando comigo muita da felicidade do planeta, calcorreei aquelas pedras que os anos foram alisando, aqueles territórios de abandono, até receber nova bofetada de branco provocada pelo panorama esplêndido que se me oferecia, aqueles socalcos, aquele bolo de noiva, aquele castelo de algodão (significado de Pamukkale em turco), aquela nata onde, com as pernas cruzadas e abraçando os joelhos, a jovem fechava os olhos e se mantinha ocupada numa preguiçosa meditação, mexendo os lábios como quem ciciava pequenas orações. Na meia escuridão do crepúsculo, mergulhei na piscina do hotel, nem sagrada, nem profana, pedi a minha cerveja antes do jantar e, naquela noite, depois de tanto caminhar, deitei-me como um morto em vida e sonhei que nevava.

- Parece neve. Achas que é possível?

Nos sonhos tudo é permitido.

Pelos caminhos de São Paulo

Olhei uma vez mais, talvez a última, para aquela mortalha que cobria a colina antes de arrastar a mochila até à paragem do autocarro que me haveria de levar a Denizli. O fumo da neblina desprendia-se sinuosamente das árvores anãs e aquele silêncio matinal, tão íntimo, despertava em mim sensações profundas e, ao mesmo tempo, disciplinadas emoções, próprias de quem não se deixava impressionar com as coisas efémeras da vida. A caminho de Izmir, eu olhava, através do retrovisor do autocarro, com um copo de chá na mão, oferecido pelo cobrador, o motorista com o seu cabelo disperso e espetado, tão espetado que parecia ter lambido uma tomada de eléctrica antes de ter colocado as mãos naquele volante que agora acariciava como uma mãe acaricia um filho recém-nascido.

Pela janela que se abria para outra manhã sonhadora, eu via os campos de tabaco que se sucediam aos de algodão, um ou outro camponês enchendo a moldura colorida e pensava em São Paulo, na rota dos primeiros cristãos iniciada no século I, em Tarsus, ao longo da Turquia actual, até Milet, antes de embarcar para Jerusalém. Por três vezes, o apóstolo partira em missão, passando por Pamukkale (onde foi construída uma igreja em sua homenagem quando ele se encontrava em Éfeso) a caminho da cidade santa com a conquista de almas através da evangelização na sua mente. O primeiro e pálido sol matinal brilha quando, com uma sinceridade profundamente adulta na voz, o jovem cobrador me pergunta se desejo outro chá, que aceito com um sorriso antes de depositar de novo o olhar nas paisagens ainda dormentes e os pensamentos em Pamukkale, naquelas eternas e agora quase inacessíveis neves da colina. Mas desejava, nesta minha errância e com a ansiedade que um cão denota quando avista um osso, chegar a Bursa, a cidade que crescera à medida que o cristianismo ganhava importância. Um acidente, a meio do caminho, envolvendo um camião e um carro ligeiro, quando vislumbrava no horizonte as montanhas sulcadas de rugas onde o sol dardejava os seus raios, teimava em prolongar aquela etapa de transição entre o mundo desprovido de intimidade e o mundo ainda desligado do turismo, tão evidente neste país de tantas contradições.

A lua iluminava já os telhados quando, finalmente, o autocarro conduzido pelo motorista de cabelo espetado, prisioneiro do atraso, irrompeu no terminal da cidade de quase dois milhões de habitantes, orgulhosa de um passado que remonta a 200 anos antes de Cristo. Se a lenda não mente, foi fundada por Prusias, rei da Bithynia, antes de cair nas mãos de Eumenes II e logo depois nas menos suaves dos romanos, quando as águas termais de Çekirge, a poucos quilómetros, começavam já a dar que falar. A despeito do papel que tiveram estas figuras na história, foi Justiniano I quem realmente colocou Bursa no mapa. Eu lia sobre os factos, à luz mortiça do táxi que me transportava ao modesto hotel, mas os olhos, mudos e feridos de cansaço, fechavam-se de quando em quando e as palavras, importantes para quem agora faz o favor de as ler, surgiam-me como ondas bêbedas.

Sentia-me tão cansado que nem tinha forças para sonhar. Nem com neve.

Na cidade da seda e do teatro

À sombra de uma árvore que excluía a luz do dia, nas colinas de Çekirge, ouvindo o chamamento para a oração, não tardei a apaixonar-me, na manhã do dia seguinte, pela cidade onde os turistas são tão raros como as mini-saias. Bursa veste-se de árvores frondosas, de bonitas casas otomanas, de jardins viçosos, de recantos que contrariam a ideia de uma cidade industrial, muito por culpa da instalação, entre os anos 1960 e 1970, de duas fábricas de automóveis de marcas francesa e italiana. Ainda assim, poucas cidades turcas têm tão arreigado o espírito comercial como Bursa, uma herança que decorre do facto de ter sido um dos lugares mais importantes do comércio da seda.

Ao longo das ruas estreitas, não raras vezes passando µ ± despercebidos, encontram-se ainda hoje largas dezenas de han, uma espécie de caravanserais construídos para dar abrigo aos mercadores nas proximidades do lugar onde vendiam os seus produtos. O mais emblemático de todos continua a ser o Koza Han, que data de 1490 e é, nos dias que correm, o epicentro do comércio de seda turca, se bem que o viajante não deve desprezar os encantos do Emir Han, com a sua bonita fonte num pátio agradável para tomar mais um chá - e beber chá na Turquia é tão natural como respirar. Se estiver de visita a Bursa entre os meses de Junho e Setembro terá o privilégio de observar milhares de agricultores com os seus sacos cheios de casulos de seda, dos quais se desfazem perante a melhor oferta. Para encontrar a origem desta tradição, é necessário recuar até ao século VI, época em que o segredo da produção foi roubado aos chineses por uns monges nestorianos e ali conduzido ao longo da Rota da Seda.

Sob os corredores abobadados do bazar, motivo de orgulho das gentes locais, destaca-se o bedesten, erguido no século XIV mas totalmente reconstruído em 1855, na sequência de um forte tremor de terra. De um lado e do outro, joalheiros vendem ouro e prata em pequenas lojas, numa atmosfera serena que contrasta com o ambiente frenético e vocação capitalista do Grande Bazar de Istambul. Uma visita mais demorada, aqui e acolá interrompida para um chá revigorante, permite ver, ao longo do grande mercado coberto, alguns artesãos que permanecem fiéis a negócios herdados de gerações antigas, desde ferreiros a sapateiros, de ceramistas a joalheiros.

Quando, a meio da manhã, abandono o ambiente tão acolhedor do Kapali Çarsi, depois de uma vista de olhos pelo Eski Aynali Çarsi, o velho mercado espelhado, já o sol bate uniformemente sobre a fachada da Ulu Cami, a mais imponente mesquita de Bursa. Fundada em 1396 por Yildirim Beyazit, apostado em construir 20 mesquitas após a vitória sobre os Cruzados na Batalha de Nicopolis, exibe no interior as suas maiores riquezas: a madeira trabalhada do mimber (púlpito) a cadeira do imã, a fonte central e a caligrafia que decora algumas das suas paredes e onde um homem, de fez na cabeça, reza agora num murmúrio indecifrável. Yildirim Beyazit, quarto sultão otomano, não foi capaz de cumprir a sua promessa mas, em compensação, mandou erguer as 20 cúpulas que agora avisto, desde o exterior, de Ulu Cami, com o seu minarete desejoso de tocar os céus despidos de nuvens.

Sempre envolta em ecos do passado que o presente se encarrega de perpetuar, Bursa tem uma forte tradição do teatro de marionetas Karagoz, popular na cidade e um pouco por toda a Turquia.

Aproveitando o regresso a Çekirge para o almoço, detenho-me por uma hora no museu, que me ajuda a perceber esta arte (há espectáculos duas vezes por semana) e deixo-me fascinar pela lenda que traça as suas origens e a peculiar procedência do nome. Estava então a Ulu Cami a ser construída, no século XIV, quando se tornaram famosos dois albaneses muito dados às anedotas. Karagoz e Hacivad, assim se chamavam, passavam os dias a rir de toda a gente e a paródia contagiou de tal modo os restantes trabalhadores que não havia meio de as obras da mesquita serem concluídas. Quando o sultão se deu conta do atraso, rapidamente ordenou a detenção e consequente execução dos burlistas. Em pouco tempo, o povo começou a sentir falta do humor de Karagoz e Hacivad, um sentimento que foi aproveitado por um artesão de títeres para criar dois personagens com os traços dos albaneses. E, desde esse momento, a fama de Karagoz, um homem vulgar, com grande capacidade para abrir a boca e deixar sair obscenidades, pouco trabalhador, e de Hacivad, culto e elegante, espalhou-se por toda a Anatólia, pelas praças, casas particulares, palácios e cafés, espaços abertos à crítica da sociedade da época e expressão popular muito arreigada entre os turcos. Hoje, a televisão e a vida moderna atiram o teatro para um canto e esta miniatura da vida, com os seus músicos e comerciantes, subsiste graças a pequenas companhias que representam ocasionalmente.

Ao fim de uma tarde deambulando pela cidade, observo o crepúsculo, o mar mergulhando nas montanhas, com um chá à minha frente. Uma bandeira enorme da Turquia, tocada por um fio de vento, anda de um lado para o outro, como se fosse o próprio país, cheio de contrastes, a reflectir-se naquele pano vermelho e branco. Como se o passado e o futuro ali dançassem ao sabor dos tempos.

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