O cinema francês no porto de Kaurismäki

Foto
"L"Atalante", de Jean Vigo: a Criterion lançou toda a obra em DVD

Em "Le Havre", Kaurismäki encontra-se com a França e com um dos momentos mais altos e populares do seu cinema: os anos 30. Francisco Valente

Aki Kaurismäki percorreu várias cidades europeias à procura de um porto. Acabaria por descobrir Le Havre, cidade no norte de França. A procura obedecia, ainda que inconscientemente, a um gesto que tem origem no cinema francês dos anos 30: o retrato de ambientes de cidades e de histórias de solidariedade nos círculos sociais populares, em contradição com as condições de vida de uma burguesia inútil. Le Havre é a cidade de um dos filmes que mais representa esse período do cinema francês: "Le Quai des Brûmes" (1938), de Marcel Carné, obra marcada pelo ambiente portuário que sufoca a tentativa de um fugitivo em encontrar nova oportunidade de vida e amor. Os paralelismos com "Le Havre" são naturais, conhecida como é a admiração que o finlandês tem pelo cineasta francês. Será justo, por isso, invocar essa tradição cinematográfica: o "realismo poético" do cinema francês dos anos 30, obras que fotografam um ambiente "noir" nas cidades e que se apoiam na solidariedade entre indivíduos de classes populares contra forças opressoras e uma autoridade injusta.

Ponto de encontro:

Jean Vigo

"Le Crime de Monsieur Lange" (1936) de Jean Renoir será um dos exemplos mais fortes desta tradição, em cujo argumento participa o poeta Jacques Prévert, colaborador de Carné e responsável pelo encanto das falas das personagens. Valorizava-se a contribuição do som e da palavra recém-chegada ao cinema, em plena transição nas suas formas de expressão. Kaurismäki presta também atenção ao uso do som e da palavra nos filmes, tendo chegado a fazer um mudo: "Juha" (1999), com André Wilms e Kati Outinen, actores de "Le Havre".

Mas é uma aparição específica em "Le Havre" que faz uma homenagem mais directa a um realizador francês: Jean Vigo (1905-1934), cuja filha Luce (hoje com 80 anos) surge em figuração especial. "Aki Kaurismäki distribui os filmes de Jean Vigo na Finlândia e é um dos cineastas de quem mais me sinto próxima", diz ao Ípsilon, lembrando a sua participação em "Nice - À propos de Jean Vigo" (1983), homenagem de Manoel de Oliveira ao seu pai.

Vigo teve os seus inícios ainda no mudo com a colaboração de Boris Kaufman, irmão de Dziga Vertov ("O Homem da Câmara de Filmar", 1929), director de fotografia dos seus filmes que viria a trabalhar em Hollywood com Kazan ("Há Lodo no Cais", 1954; "Esplendor na Relva", 1961). Em criança, viveu influenciado pelo pai, Miguel Almereyda, anarquista preso e morto, em Paris, em 1917. Forçado a viver sob outra identidade, Vigo deslocaria a sua fúria de vida para o cinema num momento crucial: a passagem de filmes mudos e experimentais para um cinema sonoro. Falecido precocemente por tuberculose, a sua obra sobreviveria como mito nos circuitos da cinefilia, até se revelar, primeiro, no pós-guerra da libertação parisiense e mais tarde com edições integrais em DVD ("The Complete Jean Vigo", Criterion Collection, editado no final do ano passado).

Luce Vigo descreve: ""À propos de Nice" [1930; curta sobre a cidade de Nice] é um filme político onde se vê a influência do meu pai: a raiva, o anti-militarismo e a anti-religião. Tem uma dupla face: uma certa cólera e crueldade, mas vemos a felicidade de alguém poder exprimir-se pelo cinema." A experimentação sobre a forma e a imagem ver-se-ia ainda nos moldes mais narrativos do maravilhoso "Zero em Comportamento" (1933), hino à vitória do imaginário das crianças sobre o grosseiro mundo adulto. Essas duas obras "são dois filmes sobre pessoas que se opõem: as que trabalham e não têm dinheiro, e as que têm dinheiro e não fazem nada", sendo que "Zero em Comportamento" é o filme "mais autobiográfico" de Vigo "mas que se tornou num filme universal sobre a revolta."

Vigo morreria dias antes da sua única longa estrear, trucidada pelo estúdio e apenas restaurada anos mais tarde. Para Luce Vigo, ""L"Atalante" [1934] é quase o contrário: já não se trata de grupos sociais que se opõem, mas de uma revolta de indivíduos entre quem o amor circula." Hoje, é considerado um dos pontos altos da história do cinema, um milagre de alguém que soube manter a riqueza de uma expressão visual livre, poética e lírica, associado ao uso inteligente e tocante do som, das palavras e da música. Michael Temple, autor do livro "Jean Vigo" (ed. Manchester University Press), diz-nos que Vigo se insere, hoje, "nas nossas noções de cinema experimental, político, documental ou de ficção, são pouco menos de três horas de carreira que acabam por cobrir todas essas bases."

Sugerir correcção