A verdade de Boss AC

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As rimas de "Sexta-feira (bom emprego já)", o primeiro single, sobre o tipo que não tirou o "curso superior de otário" e que não pode "apertar o cinto" porque nem calças tem parecem traduzir a ansiedade de um país e várias gerações aflitas com o futuro

"AC Para os Amigos" é o álbum de um músico serenado. Se tem algo a provar, é a si mesmo. Enquanto "Sexta-feira" o primeiro single, pulula país fora, Boss AC tem os pés assentes no chão. Mário Lopes

Há dois anos, quando lançou "Preto no Branco", repetiu de forma clara o que dizia desde sempre. Não pedia que gostassem da sua música, exigia que a respeitassem. Tinham passado quatro anos desde que o seu terceiro álbum, "Ritmo Amor & Palavras", o tinha colocado no patamar dos estrelato musical português, com singles a irromperem pelas rádios, Coliseus cheios e digressões repletas, e Boss AC, formado no hip hop, cultura em que a integridade do percurso é fulcral e em que o sucesso massivo é acolhido com desconfiança pela comunidade, não queria aturar desconfianças. A coerência do seu percurso e do discurso, acentuava, era inegável. "Preto no Branco", dizia então, ano 2009.

É hoje uma das grandes figuras da música portuguesa e não falamos exclusivamente do hip hop de que ele foi neste país um dos pioneiros. Se dúvidas houvesse, bastaria reparar no que tem acontecido nas últimas semanas com "Sexta-feira (bom emprego já)", o primeiro single do novo álbum "AC Para os Amigos". Está por todo o lado. O vídeo com os seus Legos salta de ecrã de computador em ecrã em computador, o ritmo "upbeat" com os "yeahs" a marcar-lhe o andamento é encontro recorrente e as rimas sobre o tipo que não tirou o "curso superior de otário" e que não pode "apertar o cinto" porque nem calças tem parecem traduzir a ansiedade de um país e várias gerações aflitas com o futuro - que haja ali alguma ironia e um tom que desdramatiza, é pormenor que só uma segunda leitura esclarece.

Boss AC, ele que criara "Preto no Branco" com a pressão de ter que acertar, de provar a si mesmo que "Ritmo Amor & Palavras" não tinha sido um sucesso fortuito, tornou-se nos anos seguintes um homem mais sereno. Sem pressões. O stress chegou agora. Porque o músico nascido Ângelo César Firmino é homem de trabalho que concentra em si todo os domínios da sua carreira. Criar a música é um prazer e "AC Para os Amigos" teve nascimento sereno, pausado, descontraído. Mas o AC que encontrámos pode ser entrevistado de conversa fácil e fluida que prefere isso, conversar, ao ritual pergunta/resposta, mas não esconde o quanto está cansado de toda a actividade dos últimos tempos. "Estes últimos seis meses passados a pensar no álbum, reunidos ao facto de acumular funções e, para além da produção artística e da composição, também tratar da produção executiva, deixaram-me fisicamente esgotado". Um sorriso e um suspiro: "A bem da minha sanidade mental, preciso de tirar uns dias sem reuniões, sem entrevistas, sem sessões de fotos, sem música". Acto contínuo, corrige: "Isto é um comentário. Não me estou a queixar". A angústia não entra aqui. "Têm-me perguntado o que é um "emprego bom" e eu respondo que um emprego bom é o meu. Não ganho o que quero, mas faço o que gosto". Não, não há queixume. Musicalmente, não se arrepende de nada do que fez. "Faria tudo da mesma maneira por saber que, naquele determinado momento, fiz o melhor sabia. Obviamente que duvidei e ainda duvido. A dúvida é importante, mas eu sou um inseguro muito seguro, porque tenho perfeita noção da minha insegurança. Se fiz o melhor que sei, siga em frente. Cabeça tranquila".

O nosso copo meio vazio

Para Boss AC, cada novo álbum é um recomeço. "Não me sento à sombra da bananeira a pensar que já vendi platina, que já fui ao Pavilhão Atlântico e aos Coliseus. Isso é tudo verdade, mas está para trás e eu tenho os olhos postos no futuro". Já anda nisto há duas décadas, já viu a desvanecer-se "desconfiança dos seus pares", que não olhavam de igual para igual para o tipo que representava o hip hop, coisa nova e estranha ao olhar indígena. Até se permite alguma nostalgia ao relembrar os tempos em que tudo estava a começar - fá-lo em dueto com Gabriel O Pensador, "Um brinde à amizade", em que, consequência de se olhar ao espelho e já ver "cabelinho branco", pressente a "saudade da inocência" desses tempos, perspectiva o "percurso" que fez dele o que é hoje.

E o que é Boss AC hoje? O "gajo normal" a quem pedem "autógrafos como se fosse artista", mas que não é "nenhuma vedeta" - é o que diz logo na abertura do novo álbum. Alguém que se vê como "músico que, por acaso, é do hip hop" - "isso também foi uma conquista", refere. E que se lançou a "AC Para os Amigos" seguindo as premissas de sempre. Primeiro, gravar música que satisfizesse aquele que é o seu maior crítico, ele mesmo. Segundo, mostrar um sentido de evolução. "Não é por acaso que o "Sexta-feira" é o primeiro single", afirma. "Quem o ouvir pela primeira vez reconhece que é o AC, mas percebe que é qualquer coisa nova". E sim, "Sexta-feira (bom emprego já)", a "cara" do novo álbum, é Boss AC como nunca o ouvíramos antes. A sua história é curiosa.

Há muito que AC queria gravar uma canção mais "retro", inspirada na soul dos anos 1960 e 1970, na Motown das Supremes ou dos Temptations. O ano passado, viu um concerto de Sharon Jones & The Dap Kings e teve a certeza de que não poderia esperar mais. Gravou o esboço com a sua banda. Era sexta-feira e ele, sem letra, repetiu a dica no refrão ainda inexistente. Acrescentou-lhe o "yeah" porque achou que tinha algo de "Barry White, daquela "blakness" da "blaxploitation"". Depois, abriu o caderno de notas, "vulgo laptop" e sacou de uma letra, "O precário". Problema: a letra era muito negra, "muito dedo na ferida", e Boss AC queria que o álbum funcionasse a contracorrente do espírito "pessimista, de copo meio vazio" dos portugueses. Com "humor e sarcasmo", queria apelar a uma "cidadania activa". "Somos todos treinadores de bancada e em cada português há um político em potência. Parece que qualquer pessoa tem a solução para a crise, que todos sabem porque fizeram os governantes a porcaria que fizeram, mas no dia de votar é domingo, está sol e vai tudo para a praia porque o voto não serve de nada." Por fim, apela-se à ajuda divina: "Vou jogar Euromilhões a ver se acaba o enguiço / É sexta-feira, vou já tratar disso".

A verdade de AC

"Sexta-feira" foi das últimas canções a ser gravadas para "AC Para os Amigos", mas, segundo o seu autor, representa-o bem. Porque "tem o toque de descontracção que está presente em todo o álbum", porque deixa evidente a componente de banda que ganhou maior destaque - "toco com a banda há dez anos e achei que era altura de ela estar mais presente". E porque, dizemos nós, depois de "Baza baza (Hoje não quero saber)", "Princesa" ou "Hip hop (sou eu e és tu)", mantém-no presente e acessível a todos através de canção - sem repetir o que lhe ouvimos no passado. Essa é, de resto, a sua virtude. A capacidade de ser alguém que tem um rumo claramente definido, que sabe exactamente o que quer e que não tem quaisquer constrangimentos em ver a sua música, abrangente, chegar a todo e qualquer público que a queira ouvir.

Boss AC tem noção de qual é a sua função. "Todos temos o nosso papel e eu tenho o meu. O taxista transporta-te, o padeiro faz o teu pão todos os dias, o médico trata-te. Eu dou música às pessoas. Com a diferença que tenho um lado público e mediático que torna tudo isto muito romântico". A ele pedem-lhe autógrafos. Ao médico que, há dois anos, o operou a uma apendicite não. Ossos do ofício.

Ao fim do dia, o que interessa a Boss AC é ser um músico que fez da diversidade a sua estética: pôs Rui Veloso em cenário cabo-verdiano ("Deixou-me"), atirou-se ao hip hop sintético da actualidade ("Tástabater") e insistiu no calor rítmico caribenho ao lado do cubano Raul Reyes ("Dor de barriga"). Ao fim do dia, Boss AC é o tipo com os pés assentes na terra a quem não interessam sonhos vagos de internacionalização: "Estão sempre a dizer-me que se vivesse nos Estados Unidos, proporcionalmente ao que ganho em Portugal, andaria de avião a jacto. Mas não vivo nos "States" e não sou americano, portanto esse "se" é demasiado grande. Na lusofonia sou o Boss AC, tenho uma carreira e uma história. Não sou mais um". Ao longo da entrevista, é óbvio o orgulho que tem no seu percurso e no que alcançou desde que, na longínqua década de 1990, entrou num estúdio pela primeira vez para registar "A verdade", uma das suas contribuições para a colectânea "Rapública", considerada o momento zero do hip hop português. Ao mesmo tempo, pressente-se nele a capacidade de ter um olhar distanciado sobre si próprio. Ou melhor, um olhar distanciado de Ângelo César perante Boss AC.

Tal como há dois anos, diz-nos que, "num futuro relativamente próximo", vê-se a "arrumar as botas e a fazer outras coisas". Que podem ser remeter-se à discrição dos bastidores e compor para outros, como fez, para dar exemplo recente, ao oferecer a letra do fado "O homem do Saldanha" a Marco Rodrigues e Carlos do Carmo. Que podem ser gravar um álbum rock, "uma cena pedrada total, sem rap ali no meio".

Boss AC de olhos no futuro. Mas aquele é, por agora, um outro futuro. O dele, neste preciso momento, acaba de chegar. Chama-se "AC Para os Amigos" e Ângelo César quer mostrá-lo a toda a gente.

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