A liberdade da cor e a consciência do olhar

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O trabalho de Beatriz Milhazes centra-se na pintura e concilia o modernismo europeu com o brasileiro, integrando livremente referências da cultura popular do Brasil. Explora questões como a cor, a repetição e o movimento NUNO FERREIRA SANTOS

A partir de hoje abertas ao púbico no CAM da Gulbenkian, "Quatro Estações", de Beatriz Milhazes e "Frutos Estranhos" e Rosângela Rennó revelam dois retratos da arte contemporânea brasileira. Efusiva, colorida, a fazer sambar o olho. Crítica, silenciosa, comovente, a interrogar o que vemos, como vemos. José Marmeleira

O Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian está ocupado por duas formas de arte. Uma é exuberante, colorida, musical, centrada na pintura. E revela-se em "Quatro Estações", de Beatriz Milhazes (Rio de Janeiro, 1940). A outra é mais reflexiva, quase silenciosa, embora violenta e cheia de êxtases fotográficos. E envolve o espectador em "Frutos Estranhos", de Rosângela Rennó (Belo Horizonte, 1962). Por esta altura, e apesar das diferenças, já ressalta uma característica comum. São duas formas de arte produzidas por duas artistas brasileiras. E esse não será o único o elemento que as aproxima. O quotidiano e a cultura do país (sobretudo a vernácula) são transversais às suas obras.

"Quatro Estações", organizada em parceria com Fundação Beyeler, em Basileia, começa por perturbar o olhar, com uma série de trabalhos, feitos de papel de chocolate. Todas apresentam uma flor central e assinalam o momento em que Beatriz Milhazes decidiu aprofundar a colagem sobre o papel. "Foi em 2003, durante uma mostra que Museu de Domaine de Kerguehennec-Centre d"Art, na Bretanha", revela. "Ofereceram-me um estúdio para trabalhar e decidi dedicar-me à colagem. Tinha já uma grande colecção de papéis e comecei a trabalhar no primeiro grupo desta série".

Para além da flor, ressaltam as cores das embalagens e à medida que as colagens avançam cronologicamente, as formas tornam-se mais abstractas, o brilho do papel perde intensidade e passa a compor a superfície. Que, por instantes, ameaça mover-se. "O meu trabalho lida de facto com o movimento. Mexe-se no espaço", concorda. "Gosto de criar um certo distúrbio para o olho. Sempre foi uma intenção minha. Yves Klein [1928-1962] queria apenas trabalhar com uma cor sobre a tela, porque não queria conflitos ou discussões. Eu quero isso, mas é um conflito saudável. Quero vários centros. Daí usar muito os círculos, e mesmo quando introduzo a lista e os cortes horizontal e vertical, isso acontece através do movimento".

Sincretismo da pintura

O movimento estende-se a "Quatro Estações", conjunto de grandes telas que representam a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno no Rio de Janeiro, e ao "mobile" Gamboa, inspirado no Carnaval. A cultura popular brasileira saracoteia-se dentro da obra de Milhazes. "Sempre procurei relacionar o modernismo brasileiro com o europeu. Fui criada numa família carioca que tinha orgulho em ser brasileira, porque a minha geração já foi mais americanizada, e procurei unir os dois mundos. Quando entrei na escola de arte queria fazer pintura, mas ao mesmo tempo queria unir questões da minha cultura. O Carnaval foi uma referência forte, pela exuberância, pela ideia de movimento. Por uma certa selvajaria, por uma certa liberdade de expressão. Todo o meu desenvolvimento de temas, de estruturas, parte dessa liberdade".

A liberdade descobre-se no sincretismo de referências. A arte abstracta de Mondrian agitada pela natureza e as flores. A arte pop americana num abraço fogoso com a arte modernista brasileira, excitado pela pintura de Tarsila do Amaral. A construção do neo-concretismo. As colagens de Matisse. Mas esta generosidade plástica será uma excepção no contexto da arte brasileira. Como escreve Michiko Kono no catálogo da exposição, Beatriz Milhazes permanece aí um lobo solitário. "As pessoas têm uma imagem da arte brasileira como muito colorida. Relacionam-na a com arte folclórica. Mas isso não é arte contemporânea, nem sequer a moderna do Brasil. No [nosso] modernismo há um certo uso da cor, mas a minha geração não tem essa tradição. Não há uma forte tradição da pintura. A arte é muito mais conceptual, política, de objectos, instalações. As pessoas pensam que sigo uma tradição, mas isso não é bem verdade."

Por detrás de "Quatro Estações", representação imaginativa das estações do ano carioca, encontramos uma pintura em vinil adesivo, recortado e colado. Trata-se de "Jardim Verde", trabalho produzido para o CAM, que dialoga com as janelas e o jardim da Gulbenkian. Uma pintura mural? "Não gosto da ideia de fazer murais", responde. "Pode ser entendido com um projecto de parede. A relação com a arquitectura é mais importante e há uma ligação sobretudo com "Quatro Estações", pois não existiria sem ela". Pintura expandida, mas pintura.

Não basta uma mirada

A obra de Rosângela Rennó inclui-se, porventura, na outra arte referida pela sua colega brasileira. Comecemos pelo título, "Frutos Estranhos", que remete para uma série homónima de animações digitais de fotografias, datada de 2007. "Sempre gostei de discutir todos os meios possíveis dentro do universo fotográfico e esse trabalho faz a ponte entre as questões digitais e analógicas. Nele, o olho humano não consegue captar o movimento da imagem fotográfica devido à sua lentidão", esclarece. "E acho que o título acaba por servir todos os trabalhos. São frutos estranhos, bizarros"

Estes frutos estranhos compõem a maior exposição antológica alguma vez dedicada à Rosângela Rennó, onde o espectador depara, em simultâneo, com um crença na fotografia e uma consciencialização incisiva da prática fotográfica. O estranho, nesta exposição esconde-se no banal, no singelo, sempre a partir de imagens encontradas, que alguém abandonou, perdeu ou vendeu à artista. "Atribui-se uma transparência para as imagens que elas não têm. E de alguma forma tento mostrar essa dimensão." Atentemos em "Realismo Fantástico", de 1991. "São retratos de identidade de pessoas comuns, mas são também imagens que foram retocadas a lápis, para que o retrato fosse mais fiel essas pessoas. Receberam uma mentira para serem mais parecidas com o que representam. Tudo que aprendi na fotografia, aprendi manipulando e entendendo o material e as razões da sua existência".

Rosângela Rennó trabalha com a fotografia privada, defendida por Roland Barthes como o devir ideal do "médium", e, também, com a fotografia pública. Mas o que lhe interessa é dar um novo contexto a tais tipologias. "Sempre gostei da histórias privadas, que não estão nos livros, das histórias dos vencidos. São mais saborosas, falam mais da humanidade do que as da história oficial. O meu envolvimento com a fotografia torna as imagens anónimas, mas elas já me chegam esvaziadas. São esses signos carentes que convido o espectador a preencher, porque é ele que vai ver."

E ver pode implicar mover o corpo, avançar ou voltar atrás no espaço, como na instalação "Bibliotheca"(2002), onde álbuns de fotografias, resgatados pela artista à feiras de velharias, podem ser folheados ou investigados pelo espectador mediante a consulta de um arquivo: tudo depende do envolvimento de cada um com a (sua) memória, e em última instância, com a fotografia. Até onde queremos ir?

Na série "Vulgo", a partir de negativos de fotografias de presos, a artista acende e desliga as imagens do seu carácter arquivista, policial, normativo, oferecendo-lhe uma enigmática e comovente cor. Em "Menos-valia" (2005-2007), sublinha a relação entre a imagem e o seu valor mercantil, desvelando a depreciação simbólica as que são sujeitas as fotografias.

Mas o que nos mostram estes trabalhos? A memória das pessoas ou a da máquina? "A da máquina. É o aparelho que domina o acto. Eu sempre gostei de revelar o que está por detrás do gesto fotográfico, da compreensão. Como é que o ser humano questiona uma imagem, por exemplo quando abre um jornal? Acredita porque tem fé, precisa de ter fé. Não quer compreender as estratégicas de produção de uma imagem. Precisa de acreditar. Gosto de criar um dispositivo que tire temporariamente as pessoas do lugar confortável da percepção visual. Para que a sua experiência surja, para que haja uma participação como a de "Bibliotheca"". A presença de vitrinas, molduras e mesas em "Frutos Estranhos" convida essa participação reservada, silenciosa, morosa. Vemos álbuns de fotografias vazios, capa de livros onde alguém colou imagens de ídolos de cinema, postais, fotos individuais. Não basta uma mirada.

A necessidade de uma consciencialização da prática e da percepção da fotografia afasta, porém, a obra de Rosângela do que poderia ser o reverso dessa mesma necessidade. "Vivo num bairro pobre e sensibilizam-me as idiossincrasias das pessoas. A fotografia é das poucas actividades de produção de imagens a que têm acesso. E isso dá-lhes poder, fé. O mínimo que elas têm não querem perder. Compreendo por isso a fé que as imagens provocam. E gosto da fotografia como objecto. Lamento o seu desaparecimento, a sua delapidação enquanto património histórico e a sua transformação em fetiche, mercadoria".

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