"Não podemos congelar o património e transformar os maravilhosos monumentos em museus chatos"

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pedro cunha

A crise põe o património em risco, sobretudo no Sul da Europa, onde há mais para proteger e cada vez menos dinheiro para o fazer. Sneska Quaedvlieg-Mihailovic, secretária-geral da Europa Nostra, associação de defesa da herança cultural, esteve em Lisboa para preparar o congresso de Maio e explicar como a crise pode ser também uma oportunidade.

Aos 48 anos, Sneska Quaedvlieg-Mihailovic tem o desembaraço de quem já se ocupa dos problemas do património há mais de 20 anos. Pragmática, gosta de o dizer, vê a sociedade civil como uma das principais garantias da salvaguarda da herança cultural europeia e diz que os governos devem olhar para o património não só como um recurso social e cultural, mas económico.

Quaedvlieg-Mihailovic é a secretária-geral da Europa Nostra, uma associação pan-europeia de defesa do património, fundada há 45 anos, e que hoje reúne 400 organizações de toda a Europa. Anualmente, a Europa Nostra atribui, com a União Europeia (UE), o mais importante prémio do sector. Este ano, o tenor Placido Domingo, presidente da associação, estará no Mosteiro dos Jerónimos para o entregar, durante o congresso que decorrerá em Lisboa de 29 de Maio a 3 de Junho e que inclui um seminário à volta do tema Património da Europa em Perigo. Foi precisamente sobre os riscos que o património enfrenta em tempo de crise que o P2 falou com Quaedvlieg-Mihailovic no Centro Nacional de Cultura, que co-organiza o congresso.

Podemos dizer que a crise económica pôs o património sob pressão?

A crise é uma ameaça e, ao mesmo tempo, uma oportunidade. O risco está, é claro, nos cortes que os fundos públicos têm vindo a sofrer. Mas o património, é preciso dizê-lo, não foi o mais afectado. Na Holanda, onde vivo, houve um corte de 30% no financiamento à cultura, mas reflectiu-se, sobretudo, nas artes performativas.

Em Portugal aconteceu o mesmo. A que se deve esta preferência pelo património?

Ao facto de os governos terem cada vez mais consciência de que o património não é um fardo, mas um recurso que não é só cultural e social, mas económico. E cada vez mais. Isto porque o turismo que tem vindo a crescer é o cultural, sobretudo graças aos chamados mercados emergentes, não-europeus, que vêm até cá não por causa do sol e da praia, mas por causa da herança cultural. E os europeus continuam a viajar e a interessar-se pelo seu património.

A falta de dinheiro é a única ameaça?

Não. Há outra. Com todos os governos apostados na recuperação económica e na criação de emprego, há o receio - e até exemplos concretos - de que haja uma tendência para liberalizar as leis de protecção do património em favor do crescimento.

"Liberalizar" quer dizer torná-las mais permissivas?

Sim, há esse receio. E é um problema muito sério. Muitas vezes, as leis do património são vistas como demasiado pesadas e restritivas por parte de potenciais investidores. Se alguém compra um terreno no campo para construir um empreendimento e esse terreno é relativamente próximo de uma vila romana, a obrigação de fazer sondagens arqueológicas antes de pôr as máquinas a trabalhar parece muitas vezes altamente limitativo... Mas é necessário.

Quais são os "exemplos concretos" dessa tendência liberalizante?

Bom, na Holanda começa a haver sinais, mas a situação mais preocupante é a do Reino Unido. O Governo está a propor uma espécie de reforma das regras de ordenamento do território nas zonas rurais. A nossa organização no Reino Unido está seriamente preocupada com o impacto que essa medida vai ter na preservação de uma paisagem cultural que faz parte da herança europeia.

Formalmente, a UE não pode fazer nada?

É um assunto da responsabilidade do Estado-membro. Mas, mesmo assim, com o Tratado de Lisboa (2009), a UE ganhou mais legitimidade para pressionar os governos. O tratado define que um dos principais objectivos da UE é a preservação da diversidade cultural e do património. Com isto a UE não quer substituir-se aos Estados, mas trabalhar com eles. A Europa percebeu, de facto, que o património é um recurso económico e um recurso social, que fomenta a coesão e reforça identidades.

Muitas vezes, argumenta-se que as leis do património são demasiado complexas, burocráticas. Esta crítica tem algum fundamento?

Nalguns casos, sim. É muito difícil encontrar um equilíbrio, mas é obrigatório para que os investidores não se afastem. Por exemplo, numa cidade com tantos prédios antigos a precisar de restauro no centro, como Lisboa, têm de se criar regras que, sem abdicar de proteger o património, tornem a reabilitação mais apetecível aos investidores do que a construção de um novo edifício.

Esta liberalização das leis é produto de uma pressão do sector privado sobre os governos?

Em parte. Mas os políticos, mesmo à escala local ou regional, também têm vindo a chegar à conclusão de que têm de ter outro tipo de intervenção nos centros históricos e que, fazê-lo, para além de criar empregos, têm a vantagem de dar às pessoas uma sensação de pertença a um lugar, de identificação, que aumenta a sua qualidade de vida. É por isso que acreditamos que, neste aspecto, a crise pode dar uma nova oportunidade ao património.

Uma oportunidade que vem do facto de o património poder ser um factor de coesão social?

Sim, sem dúvida. A crise não é só económica, é social, é de valores. O património pode ser, também, uma área de criação de emprego a vários níveis, desde o menos ao mais especializado, o que lhe dá uma intervenção social muito transversal. Não podemos olhar para o restauro e a conservação do património como coisas voltadas para o passado porque podem ser muitíssimo imaginativas. A solução pode passar por dar novos usos ao património histórico. Não podemos congelá-lo e transformar todos os maravilhosos monumentos e sítios que temos em museus chatos.

Mas isso nem sempre é fácil - é possível fazê-lo com uma central eléctrica, como na Tate de Londres, mas dificilmente se poderá fazer numa vila romana nos arredores de uma cidade italiana...

Sim, é verdade. O património industrial é mais fácil - pensar num novo uso num edifício com cem anos é mais fácil do que num com dois mil. Mas, mesmo assim, podemos ser mais criativos. Além disso, um edifício com dois mil anos é por si só atraente, tem impacto na construção da identidade de uma cidade ou de um território.

Fundamental ao tal factor de coesão?

Precisamente. Mas não só. Há estudos europeus que mostram que o património atrai cada vez mais investidores. Se uma empresa anda à procura de um novo local para se instalar, é mais provável que o faça num sítio que tenha uma certa qualidade de vida, onde os seus funcionários se possam sentir bem, felizes, do que num descaracterizado. O património pode ser uma fonte de inspiração, de criatividade. Cristina Gutiérrez, eurodeputada espanhola com quem trabalhamos muito, gosta de dizer que o património é bom para a saúde mental e que, por isso, um investimento nesta área pode muito bem ser uma poupança na da saúde [risos].

Mas, numa crise como esta, é realista pensar que a iniciativa privada pode ser a solução para a falta de financiamento público?

Acho que não é impossível que as empresas, mesmo com menos lucros e mais dificuldades, tenham um papel muito activo. Só temos de explicar a quem as dirige que uma acção de mecenato não é apenas um acto de generosidade, mas também um investimento a longo prazo.

A solução pode passar por criar leis de mecenato mais atraentes?

Acho que não precisamos de leis novas, precisamos que as que temos sejam divulgadas para que se tornem mais eficazes.

Precisamos, então, de governos mais eficientes e corajosos na aplicação destas leis?

Sim. Os governos têm de assumir que o património é um factor de crescimento e não apenas uma despesa, também têm de o olhar como factor de diferenciação da Europa no resto do mundo. Os nossos tesouros históricos estão aqui, não existem em mais lugar nenhum. É claro que há património importantíssimo fora da Europa, mas o que temos é único. O nosso mundo é global, é certo, mas, ao mesmo tempo, queremos que o lugar onde vivemos seja especial, diferente dos outros. O tal sentimento de pertença a um lugar é fundamental. As crises vão e vêm, mas o património fica. O Coliseu de Roma está lá...

A situação do património em Itália tem sido uma das faces mais visíveis do problema de falta de financiamento. Mas é só uma questão de falta de dinheiro? E na Grécia?

Nunca é só um problema de dinheiro. Há também uma falta de liderança. Itália atravessou um período, longo, em que o Governo não deu a devida importância à preservação do património, nem assumiu as suas responsabilidades. Isto aconteceu não porque não houvesse dinheiro, mas porque as prioridades eram outras. Na Grécia foi o mesmo.

Mas tanto a Itália como a Grécia têm uma particularidade: têm muito mais património a proteger que qualquer país do Norte da Europa.

E não é só uma questão de quantidade: quando se faz um buraco para as fundações no centro de uma cidade do Sul, temos de contar, à partida, com muitas camadas de História. As cidades do Sul da Europa, os seus governantes, os seus investidores, estão constantemente a fazer escolhas. O património é um recurso não renovável e por vezes há quem se esqueça disso.

Percebo o que quer dizer com a riqueza no subsolo mas, em Itália, o problema atinge já proporções mais preocupantes, com ícones como o Coliseu de Roma e as ruínas de Pompeia com sérios problemas...

É um assunto extremamente complexo. Acho que não podemos dizer que o Governo e as autoridades não estejam a fazer nada para resolver este problema. Mas faltou competência ao anterior Governo para resolver as coisas. A base da estratégia está na resposta a esta pergunta: quem é que escolhemos para ocupar cargos de grande responsabilidade - pessoas relevantes para os partidos do poder ou pessoas relevantes para a defesa do património? Nem sempre os governos escolhem os mais eficientes e os tecnicamente mais competentes.

No Coliseu, o grande problema não é o restauro da estrutura histórica mas o trânsito à sua volta. Essa é a maior ameaça. O estado a que Pompeia chegou é uma vergonha. Em Novembro, a UE assinou um acordo com a Itália em que se compromete a avançar com fundos estruturais para resolver o problema.

Este tipo de problemas pode alastrar-se a outros países do Sul, como Portugal e Espanha?

Pode acontecer, mas creio que os governos espanhol e português, assim como outras instituições encarregues do património nestes dois países, têm tomado a atitude certa. Agora, o risco está lá, com a pressão que existe para encontrar soluções de curto prazo para ultrapassar a crise.

Diria que o património do Sul da Europa corre mais riscos do que o do Norte?

Nesta fase da crise, é seguro dizer que os riscos são maiores. O turismo também pode vir a ser um problema. Muito do património europeu já não pode receber mais visitantes do que recebe hoje. Se os países do Sul tiverem, por questões de sobrevivência, de apostar ainda mais no turismo, a pressão sobre os monumentos e sítios vai aumentar de forma dramática. Os grandes monumentos não são o principal problema - não tenho dúvidas de que Pompeia e o Coliseu vão ser salvos. O que me preocupa, sobretudo, são os centros históricos e a paisagem rural, que são mais complexos do que um castelo ou um mosteiro.

Os centros históricos têm tido problemas de desertificação, mesmo quando são património mundial...

É verdade, e, quanto mais vazio, mais vulnerável.

Em Portugal, está prestes a nascer um grande organismo que vai juntar o património aos museus. Os grandes organismos não correm o risco de ser menos eficientes, mais burocráticos?

Sim, sem dúvida. O Europa Nostra está habituado a trabalhar com governos, mas também com pequenas organizações do sector privado que, muitas vezes, são mais eficazes do que os gigantes públicos. Bom, no Sul da Europa, o peso do Estado no património é, por tradição, maior do que no Norte. Mas, quando precisamos de poupar dinheiro, simplificar as estruturas do Estado, delegar competências na sociedade civil e estabelecer parcerias com fundações ligadas ao sector são sempre boas estratégias.

Mas juntar o património aos museus não me parece despropositado. São duas realidades complementares que têm estado separadas e, em muitos casos, de forma artificial.

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