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O tempo 
da cerejeira

Fartas de acabar os filmes feitas num oito, as personagens de Aki Kaurismäki passam à acção. Era assim, feito num oito, que tínhamos deixado o último protagonista de Kaurismäki, o Koistinen de “Luzes no Crepúsculo”, filme final de uma designada “trilogia dos perdedores”. Em “Le Havre” começa outra trilogia, ainda e sempre o modo de funcionamento preferido de Kaurismäki, que (em princípio) nos levará a várias cidades portuárias - depois deste começo nortenho, a ideia é seguir para sul. Para além da mudança de ambiente (longe de Helsínquia e da Finlândia), que não é inédita em Kaurismäki e lhe permite abrir o discurso (em “Le Havre” é evidente que ele fala da Europa, a dele, a nossa, a que todos os dias nos encanta), a julgar por este primeiro momento da nova trilogia a grande novidade a esta: a “kaurismakilândia” (segundo a imbatível expressão de Peter von Bagh), feita de excluídos e de párias com pouco dinheiro nos bolsos mas muita nobreza no carácter, “strikes back”.


Conheçam, portanto, o casal Marcel (André Wilms) e Arletty Marx (Kati Outinen). Têm nomes fabulosos, na justaposição do apelido de Karl a nomes próprios que reenviam para o cinema francês, popular e até “proletário”, dos anos imediatamente antes e depois da II Guerra (também há um Dr. Becker, interpretado por Pierre Ètaix), sendo óbvio que, depois de anos a inventar Jeans Gabins finlandeses (Matti Pellonpaa, Marko Peltola - ambos prematuramente mortos), Kaurismäki encontra em Wilms um Jean Gabin francês. Que vem, aliás, de um filme com 20 anos (“La Vie de Bohème”), retomando a mesma personagem, agora “assentada” no Havre, numa vida que não deixa de ser de “boémia” (uns biscates, muito bar, muito álcool, muita música) embora numa escala mais modesta. Está Marcel Marx na pacatez da sua existência quando dois acontecimentos, praticamente simultâneos, o vão desinquietar e obrigar a tomar medidas: cruza-se com um miudo africano, Idrissa, e o seu cão (como em “Luzes no Crepúsculo”, mas aí o miudo africano e o cão eram apenas testemunhas, testemunhas da miséria da vida numa sociedade moderna, “evoluída”), e a mulher adoece gravemente. Entre as visitas ao hospital - o pudor daquela relação, a história dos vestidos e dos presentes, é uma coisa fantástica - Marcel decide-se a ajudar o jovem Idrissa a escapar à sanha das brigadas anti-imigração clandesita e a cruzar a Mancha, para ir ter com a família imigrante em Inglaterra. E, basicamente, é isto.

Mas “isto” sucede num mundo que Kaurismäki pinta em tons idealizados. É a pequena comunidade, o “bairro”, solidário e caloroso por uma questão de princípios e valores, uma espécie de “bolsa” que existe na fronteira com a sua própria mitologia (também, obviamente, um mitologia de cinema: é por aí que Kaurismäki reencontra o cinema francês clássico). A chegada de Idrissa pressupõe a chegada de outros sinais de “modernidade” e, sobretudo, de outros valores incompreensíveis e inaceitáveis - como Idrissa, antes de ser outra coisa qualquer (um imigrante clandestino, por exemplo), é um ser humano, não é surpresa que todo o bairro se mobilize para o ajudar a fugir (como, e há uma cena que praticamente o explicita, num filme de Melville sobre a Resistência). Recorrendo às manigâncias mais extraordinárias, como um “concerto de beneficência” para angariação de fundos, ocasião para o “come back” de Little Bob, um inacreditável rocker local (aparentemente autêntico). À riqueza das personagens que estão do lado certo contrapõe Kaurismäki a silhueta simples dos opositores: Jean-Pierre Léaud, o delator, que aparece meio cambaleante e faz lembrar o “Cordelier” de Renoir, e os polícias que perseguem Idrissa, filmados sempre em bando, a correrem de um lado para o outro (uma espécie de Keystone Cops em estilo Sarkozy). E depois, a personagem ambígua do inspector Monet (Jean-Pierre Darroussin), vestido de negro como um vilão de western ingénuo, mas finalmente merecedor da humanidade que Kaurismäki lhe reconhece (a cena do ananás, no bar, é prodigiosa).

Neste mundo “de cinema” - a fotografia de Timo Salminen faz o milagre habitual: recupera uma luz de estúdio, totalmente em desuso, a aplica-a mesmo às cenas de exteriores - o cinema ainda pode mais do que a vida. É o mais optimista dos filmes de Kaurismäki em muitos anos, mesmo se, por todas, se trata de um optimismo “de fábula”. Há, portanto, lugar para o milagre. E depois do milagre vem o “tempo das cerejas” (como os tangos de Olavi Viirta e de Gardel, um velho favorito da “juke box” de Kaurismäki), e o “plano-ozu” que nunca falta num filme de Kaurismäki: uma cerejeira enquadrada, em leve contra-picado, contra chaminés e cabos eléctricos. É tão belo que dá vontade de chorar. E se não houver cerejeiras no Havre, tanto melhor.

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