O sonho da biógrafa britânica Claire Tomalin, depois de ter passado anos a investigar e a escrever "Charles Dickens: A Life" (ed. Viking), a biografia que publicou no final do ano passado, é passar mais tempo com os netos, tratar do jardim e a voltar a escrever "livros pequenos sobre personagens obscuras". Mas como se comemoram os 200 anos do nascimento do seu último biografado - o autor de "Oliver Twist" e de "Great Expectations" -, Claire tem andado a promover o livro. Em Berlim, no seminário literário organizado pelo British Council dedicado ao tema "O que escreveria Dickens hoje?" [ver caderno P2 de 7 de Fevereiro de 2012], deu uma conferência de imprensa em que o Ípsilon participou.
Não é a primeira vez que Claire Tomalin se dedica ao escritor vitoriano. Já tinha escrito, há 20 anos, "The Invisible Woman: The Story of Nelly Ternan and Charles Dickens", onde contava a história da actriz Nelly Ternan, que tinha 18 anos quando conheceu Charles Dickens, de 45, casado com Catherine Hogarth e com família numerosa. Passaram juntos os últimos 13 anos de vida do escritor, embora Nelly tenha sido excluída da biografia que o amigo e agente literário de Dickens, John Forster, escreveu. "E ele conhecia-a bem", lembra Claire Tomalin que está feliz por esse seu livro de 1990, "The Invisible Woman", estar a ser adaptado ao cinema por Ralph Fiennes, que além de realizar, interpretará o papel de Charles Dickens. Felicity Jones será Nelly.
"O filme ‘The Invisible Woman' demorou oito anos até se conseguir fazer. Mas Ralph [Fiennes] tem essa força...", diz a biógrafa, embora saiba que quando se trata de adaptações ao cinema só se respira fundo quando nos sentamos na sala de cinema para as ver.
Liberal, radical, republicanoClaire Tomalin tem longa carreira como autora de biografias. Publicou o seu primeiro livro, "The Life and Death of Mary Wollstonecraft", em 1974 (Whitbread First Book Award nesse ano) e lançou biografias de Katherine Mansfield, Jane Austen, Samuel Pepys e Thomas Hardy. É viúva do jornalista Nicholas Tomalin que morreu em Israel, em 1973, durante a guerra da Yom Kippur e casou-se mais tarde com o escritor Michael Frayn. Trabalhou como assistente editorial e leitora de manuscritos na editora Heinemann e foi editora da revista "New Statesman" e do jornal "Sunday Times".
Houve muitas coisas que a surpreenderam quando estava a escrever a biografia de Dickens. "Entre elas, a amizade do escritor com John Forster que foi muito, muito importante e a relação de Dickens com o pai. Faço algumas especulações sobre o passado do pai de Charles Dickens", diz ao Ípsilon. No livro defende que John Dickens, pai do escritor, pode ser filho de William Dickens, mordomo da família Crewe, mas também pode ter tido um pai diferente, talvez John Crewe, exercendo o seu "droit de seigneur" ou qualquer um dos outros "gentlemen" que eram visita regular da casa onde a avó de Dickens trabalhava como empregada. O príncipe de Gales era visita, a senhora Crewe foi amante do dramaturgo Richard Brinsley Sheridan. Também podia ser uma ideia só da imaginação de John, ele acreditar que era filho de alguém importante. O seu silêncio sobre os seus primeiros 20 anos de vida, o hábito de gastar e de pedir dinheiro emprestado, o gosto por coisas boas e caras, a diferença de oportunidades que tiveram os dois filhos da avó de Dickens sugerem que isso possa ter acontecido. "O pai de Dickens, John, cresceu naquela casa e talvez não fosse filho do mordomo, estes homens bebiam muito, eram todos promíscuos, é possível que ele seja filho de outra pessoa. É óbvio que cresceu a sentir que podia intitular-se ‘gentleman' mesmo sendo só o filho da empregada. É um pormenor, mas é uma coisa que me interessou, acho que é interessante."
Por outro lado, Claire Tomalin nunca tinha percebido como Dickens amava França... "Mandou para lá o filho Henry [Fielding]. Mais velho, achava que podia ter sido francês. Era republicano, admirava a Revolução Francesa e dizia-se ‘citoyen Charles Dickens'. Escreveu parte de ‘Dombey and Son' em França e ‘Little Dorrit' quando estava a viver em Paris. Adorava o vinho francês, tinha a sensação que os franceses não eram hipócritas em relação ao sexo como os britânicos. Acho que se sentia mais à vontade em França. E antes de escrever a biografia nunca me tinha deparado com isso e isso interessou-me." Numa carta que escreveu ao amigo Forster, o escritor assinou: "Charles Dickens, Français naturalisé, et Citoyen de Paris", mas a sua confiança nos franceses teve um revês quando elegeram Luís Napoleão, sobrinho de Bonaparte, como presidente e depois quando este se declarou imperador (Napoleão III) e prendeu ou mandou para o exílio republicanos, mas Dickens continuava a achar a França irresistível.
Era liberal, radical e dizia-se republicano. "No final da sua vida encontrou-se com a Rainha Vitória e conversou com ela. Nunca se juntou a um partido político, pediram-lhe para ir para o Parlamento e recusou. Afirmava: ‘Sou um escritor'. Acho que estava certo. Com Thomas Hardy aconteceu o mesmo. A sua tentativa de editar um jornal durou três semanas, ele não era capaz de o fazer. Quando era jovem era contra a pena capital e contra as execuções públicas. Mas à medida que foi ficando mais velho, mudou de opinião. Achava que havia uma selvajaria no ser humano que tinha de ser abolida dessa maneira", acrescenta. "Suponho que todos nós, à medida que vamos envelhecendo, passamos a ver as coisas de maneira mais negra. Há na sua obra mais tardia muita escuridão, mas era cómica, tinha humor. A sua visão de Londres vai ficando cada vez mais soturna, Londres vai ficando mais mal-cheirosa e suja, e é um sítio horrível. Costumamos dizer que Dickens nos mostrou Londres como ela era, a cidade era a sua tela mas ele não gostava de Londres. O rio cheirava mal e ele descreve-o brilhantemente em ‘Little Dorrit', especialmente".
Não se pode dizer que Dickens influenciava os governantes do seu tempo numa tentativa para melhorar as condições das populações. "Só indirectamente. Ele era amigo de John Russell, primeiro-ministro liberal e costumava ir vê-lo. Mas ficou muito chateado durante o período da Guerra da Crimeia. Há paralelos interessantes com a actualidade. Dickens sentia que o dinheiro estava a ir para uma guerra no estrangeiro e que era necessário fazer reformas em Inglaterra que estavam a ser negligenciadas. Era parecido com o que se passa hoje. Com os governos a distraírem as pessoas com uma guerra no estrangeiro e a não fazerem as coisas que é necessário fazer nos seus países", diz Claire Tomalin. Os tempos mudam, tudo se repete.
O PÚBLICO viajou a convite do British Council