Amor sem algemas
Escreveram uma peça de teatro imaginando as cartas que gostariam de receber na prisão, mas que nunca chegaram. Dos pais, dos filhos, dos namorados. Por causa disso, nos últimos quatro meses fizeram-se actrizes estas 15 reclusas do Estabelecimento Especial Prisional de Santa Cruz do Bispo. Inesquecível Emília estreia no Dia dos Namorados.
Elas vestem vestidos pretos justos, corpetes, plumas, luvas vermelhas. Calçam sapatos de salto alto. Têm colares. Arranjam-se, pintam-se, penteiam os cabelos, põem-se bonitas. Também vestem a bata cor-de-rosa, o fato da prisão. Repetem rotinas: lavar, vestir, comer, trabalhar, dormir. Em cima de um palco vermelho, 15 reclusas do Estabelecimento Especial Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, misturam fantasia e realidade num imponente cabaret. Animado e intenso. Sem algemas e sem grades. Com direito a confetti. Das cartas que nunca chegaram à prisão, nasceu o texto escrito pelas 15 de Inesquecível Emília, uma peça de teatro que estreia na cadeia no Dia dos Namorados.
Manuela Azevedo, vocalista dos Clã, é a convidada especial desta peça. Entra em cena, vestido comprido de lantejoulas, salto alto. Botão a botão, as mulheres despem a bata cor-de-rosa e mostram os vestidos pretos. "Mulher é aquela que apanha dois autocarros para ir trabalhar e mais dois para voltar. Põe creme, usa saltos altos, arranja o cabelo, leva os filhos para a cama, enfrenta a menopausa", diz a cantora. "Somos mulheres e gostamos de ser amadas." As mulheres, nos seus vestidos justos, cantam o que lhes vai na alma acompanhadas ao piano e contrabaixo. "Barbies quando vão às compras, princesas quando apaixonadas, nómadas quando viajam, serpentes quando magoadas, satânicas quando traídas, guerreiras sempre preparadas." Palavras cantadas numa música alegre. Mas, antes de pisar o palco, decalcam-se as rotinas que antecedem a hora de dormir. Desfolham livros de fotografias, arranjam as unhas, rezam, falam dos dias que custam a passar, cantam, pedem silêncio para dormir. E os olhares, esses perdem-se no horizonte. Vagos.
Mais um ensaio que começa. Hugo Cruz, director artístico, lembra que há 15 objectos para usar, é preciso não esquecer. Pede concentração. "A peça partiu das histórias delas. As cartas que gostavam de receber e que nunca receberam foi o mote. É uma viagem entre as fantasias e as realidades de 15 mulheres que estão numa prisão. E pensamos que o ambiente de cabaret podia ser uma solução", explica ao P2.
A rotina está de volta. Vestem as batas, repetem gestos, levam cadeiras às costas cujo peso as esmaga. Palavra a palavra, os textos foram construídos pelo desfiar de sentimentos das reclusas que aceitaram ser actrizes ao longo dos últimos quatro meses. Hugo Cruz leu essas palavras, deu-lhes uma ordem, ordenou as cenas. As cartas ouvem-se e digerem-se.
"Minha filha: por que é que quiseste crescer tão rápido e nunca me ouviste? Tentei dar-te a melhor educação e avisar-te dos perigos e enganos desta vida, mas tudo o que eu te dizia entrava por um ouvido e saía por outro (...). És e sempre serás a minha menina."
Zara tem cabelos pretos compridos. Tira a bata, veste um corpete preto, canta uma canção do irmão, enquanto é agarrada pelas colegas para não partir. Para não se perder. Zara escreve sobre o amor. Sobre as palavras que gostaria de ter lido e que nunca chegaram.
"Não consegui despedir-me de ti antes de partir e, por isso, escrevo-te esta carta."
Sozinha em palco, as palavras são ditas pela voz de um homem ausente.
"Não imaginas como tenho sofrido longe de ti. Os meus dias são longos, cinzentos e vazios. Sem ti a minha vida não tem sentido. E, por isso, preciso que saibas que foste a única mulher que amei profundamente em toda a minha vida."
"Não existe passado nem presente sem ti e as recordações parecem insuficientes para encher os meus dias de alegria e esperança. Mas é tudo o que eu tenho neste momento. A minha vida é a tua vida e toda ela te pertence... Teu amor."
Zara tem participado em algumas peças que se vão fazendo na prisão. "Entrei mesmo de cabeça, sem receios", admite. Sente-se bem nesse papel de actriz, está a adorar a experiência, quer continuar a representar quando sair da cadeia. "É uma peça construída por nós", assume com orgulho. As palavras da sua carta são fortes, intensas. Fazem-lhe bem e mal quando entram no ouvido. As cartas dos filhos também doem. "Quem é mãe sabe como é...". Há uma carta que diz assim:
"Minha querida mamã, não quero que fiques triste porque vais sair daí e vamos voltar a ser felizes. Fazes-me muita falta e vais ser sempre a melhor mãe do mundo!".
Yasana é venezuelana e fica nervosa antes de entrar em palco. "Não sabia que tinha jeito para isto", acaba por confessar. Entra e canta uma música espanhola sobre o amor, sobre a perda. Não sabe quem é o autor da letra, as palavras é que importam. Saia preta, corpete vermelho, Yasana fixa pontos na sala para se sentir mais confortável. No palco, as colegas calçam uma luva vermelha e a sua carta fala de um amor que morreu.
"Não voltei a acordar, o meu corpo nunca mais se mexeu, fui dado como morto nesse dia".
Em Junho, Yasana voltará à Venezuela com as recordações de uma actriz momentânea e com o rosto da voluntária que às terças-feiras a visita na prisão.
A sirene da prisão toca. É hora de lavar, vestir, comer, trabalhar, telefonar. É hora de dormir. É hora de marcar território e as almofadas são as armas.
"Sou o teu anjo-da-guarda. Apesar de não te recordares bem de mim, eu sei que vivo dentro do teu coração. Mas eu lembro-me tão bem de ti... Tinhas poucos meses e eu adorava-te. Todos os dias, depois de acordar, corria para a cama dos pais para estar contigo".
As batas unem-se para depois se descolarem. As mulheres lavam-nas com sofreguidão, esfregam com força. Torcem, lavam pecados.
O ensaio termina e Nádia tem pressa em tirar o vestido preto, justo, que lhe realça as curvas do corpo. Volta a vestir a bata cor-de-rosa porque os afazeres do final da tarde têm de ser cumpridos. Nas costas, tem gravado "Fogueteiro", o nome do marido. Na perna, na vertical, gravou Nuno, o nome do filho. Não quis colocar no papel as palavras que gostaria que lhe chegassem dentro de um envelope. "Isso mexe muito comigo." Como mexe a cena em que lentamente veste a bata e que representa a entrada na prisão. É o momento que mais a emociona. Nádia muda de roupa. Deixa de ser actriz. "Está a ser óptimo, estou a gostar desta experiência. Acho que vai ser útil para o meu futuro."
Maria Emília garante que é difícil explicar o que sente quando está em cima do palco. "É uma emoção que não tenho palavras para descrever." "É uma experiência nova e nunca pensei que tivesse esta capacidade", acrescenta. Gosta da sensação, sente que tem importância nessa peça. O momento mais marcante? "Quando carregamos o peso das cadeiras, os anos da cadeia", responde.
O palco é espaço de rotinas, mas também de festa, de celebração, de fantasia. Inesquecível Emília termina bem. Manuela Azevedo tem uma participação especial. Fala, canta, interpreta. Entrou num universo diferente do seu, no imaginário de 15 reclusas. "É um trabalho de equipa com as mulheres e estou a gostar muito. E é uma possibilidade de aprender teatro, como performer, que é uma linguagem que me interessa." Mais um ensaio terminado, a cantora dos Clã muda de roupa nos camarins que partilha com as actrizes. Está satisfeita com o trabalho, com a oportunidade. "Apesar de serem mulheres que vivem numa situação difícil, por mais que retratem as rotinas da prisão - desde o andarem de batas, ao terem números em vez de nomes - é uma peça muito luminosa, que fala de amor, de ser mulher", conta ao P2.
A PELE - Espaço de Contacto Social e Cultural, do Porto, voltou à prisão. Em Maio de 2010, assumiu a direcção artística de Entrado, um espectáculo com um grupo de presos da prisão de Custóias apresentado no Imaginarius - Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira. Hugo Cruz volta a encenar dentro da cadeia, desta vez ao abrigo de um projecto-piloto europeu, inserido no Programa Leonardo da Vinci, que envolve Portugal, Áustria, Itália, Holanda e Turquia - países que estão a desenvolver projectos artísticos em contexto prisional para uma posterior partilha de experiências e intercâmbios. O Personal Effectiveness and Employability Through the Arts (PEETA) vai certificar as competências básicas das 15 mulheres de Santa Cruz do Bispo.
"Este espectáculo procura ser um elogio à capacidade infinita de continuarmos a perseguir as nossas utopias quando tudo parece já mais que vazio." Hugo Cruz partiu de uma ideia simples para trabalhar material puro, emocional, afectivo. "O amor, a paixão, as rotinas, as vivências dentro da prisão, as saudades do marido, dos filhos, da família, e aquela ideia de que os anos passam."
Estreia a 14 de Fevereiro e repete-se nos dois dias seguintes, sempre às 21h00. A entrada é livre.
Ver as imagens dos ensaios em http://multimedia.publico.pt/FotoGalerias