"Piegas é o primeiro-ministro que se queixa dos portugueses"

Não é comum ouvir a palavra "piegas" no discurso de um primeiro-ministro. Sobretudo se ele manifesta o desejo de ver mais exigência e menos pieguice no país. Com um sorriso, Passos Coelho deu uma aula. E há quem diga que infantilizou os portugueses

Às vezes, Rui Zink, escritor e professor universitário, diz aos filhos: "Não sejas piegas!!!" Mas Passos Coelho não estava a falar para os filhos. Às vezes também se ouve dizer a homens que revelam pouca coragem: "Não sejas piegas, comporta-te como um... homenzinho." É que "piegas", lembra o antropólogo João Leal, é daquelas palavras que está conotada com as questões de género - "E um homem não pode ser piegas." Fernando Rosas, historiador, não tem dúvidas que "piegas é quem se queixa sem razão" e que tal definição está longe de se adequar aos portugueses que, "na verdade, se queixam pouco", acredita. Não é o único. Num país "com um salário mínimo inferior ao da Grécia", também Maria Filomena Mónica, historiadora e socióloga, não tem notado que muitas pessoas "andem por aí a lamber as feridas". Aliás, "estão a aceitar os cortes impostos pela troika como um fado".

A palavra "piegas" invadiu ontem as notícias e as redes sociais. E tudo porque o primeiro-ministro defendeu que toda a gente deve ser "mais exigente" e "menos piegas". O discurso da polémica - há quem veja nele uma tentativa de "infantilizar" os portugueses e quem leia as palavras de Passos como uma "provocação", sim, mas para "galvanizar" o país - aconteceu na véspera, ao final do dia, na cerimónia do 40.º aniversário das escolas do grupo Pedago, em Odivelas. Um grupo privado do qual faz parte o Instituto de Ciências Educativas onde Passos Coelho chegou a dar aulas.

E pareceu uma aula. Uma aula descontraída. Sem ler qualquer discurso, o primeiro-ministro falou de educação e de economia; das reformas e da troika; da polémica dos feriados; da necessidade de "sermos mais ambiciosos" e de "nos respeitarmos". Mas falou, sobretudo, de como se deve enfrentar o momento que vivemos, criticando os que consideram que há "demasiada austeridade" e que o melhor seria "andar para trás". Já numa fase final da intervenção rematou: "Quando as pessoas percebem que o que estamos a fazer está bem feito então devemos persistir, ser exigentes, não sermos piegas." E, de seguida, suscitou risos na plateia: "Nunca conheci um aluno que, anos mais tarde, louvasse os professores que facilitavam ou que não tivessem cumprido a sua missão (...). O que se evoca sempre são os professores exigentes, aqueles que faziam da vida da estudantada um inferno... salvo seja. É isso que espero que possa acontecer com cada um de nós."

O P2 foi falar com vários cientistas sociais. Objectivo: saber se os portugueses são mesmo piegas. Ou se dentro de cada um há um potencial professor capaz de fazer a "vida da estudantada um inferno". E se se justifica o discurso do primeiro-ministro contra a pieguice.

Antes de mais, pegue-se no Dicionário da Porto Editora e confirme-se a definição: "Piegas - adj. 1. que ou pessoa que é considerada excessivamente sensível ou sentimental; lamecha; 2. que ou pessoa que é considerada medrosa ou assustadiça; medricas; 3. niquento." E, de seguida, veja-se o que diz um linguista depois de ler as declarações de Passos Coelho: "O adjectivo "piegas", no contexto em que ocorre, deve querer significar algo como "lamentativo, queixoso sem razão". No contexto do discurso, é, obviamente uma escolha infeliz, uma vez que menoriza algumas razões legítimas para preocupação", afirma João Costa, investigador do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa.

O discurso conveniente

Na ressaca das declarações de Passos, houve reacções mais e menos irónicas. Rui Zink, por exemplo, fala em "obscenidade". "Se há portugueses piegas? Há, claro que sim. Mas é obsceno dizer a um desempregado: "não sejas piegas." Eu digo aos meus filhos: "Não seja piegas." Mas um primeiro-ministro não pode infantilizar assim um povo. Estas generalizações sorridentes são de uma tristeza confrangedora."

A Fernando Rosas - que diz que o discurso de Passos é "de uma total insensibilidade perante as dificuldades dramáticas que hoje muitas pessoas vivem" -, quando ouviu Passos Coelho, ocorreram dois momentos na história de Portugal. Primeiro: "No primeiro FMI em Portugal havia fome em Setúbal, mas os governantes da altura diziam que isso era uma orquestração dos comunistas." Segundo: "Salazar também se queixava do povo, dizia que era um povo infantilizado..."

Passos revelou, no fundo, o que outros políticos já revelaram - "que não gostam do país, que não gostam dos portugueses, do modo como eles são", diz o sociólogo do Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Pedro Vasconcelos. E desabafa: "Piegas é o primeiro-ministro que se queixa dos portugueses."

Para Rui Zink só pode haver uma explicação para a escolha das palavras: "Há duas formas de acalmar uma dor num dedo: pondo pomada ou martelando com mais força outro dedo. Esta boçalidade vem amainar a do Presidente" - diz o escritor, referindo-se às declarações de Cavaco Silva sobre a sua reforma de 1300 euros e as despesas que não iria conseguir pagar.

No seu conhecido tom provocatório, Zink aconselha mesmo: "Que se retirem do mercado os comprimidos que eles andam a tomar." É que esta é, na sua opinião, apenas mais uma "numa sequência de calinadas" - e lembra, entre outras, as declarações de Manuela Ferreira Leite sobre os tratamentos de hemodiálise e os idosos que os devem pagar.

Mas há quem tenha uma visão bem diferente. O historiador Rui Ramos não sabe se a escolha da palavra "piegas" - que sim, "é provocadora, concorda - foi "um acidente verbal" ou foi planeada. Mas, ainda assim, entende que o discurso do primeiro-ministro faz sentido no contexto actual. Pode ser arriscado? Pode. "Mas seria um risco muito maior se ele dissesse: "Estas medidas [de austeridade] se calhar já são demais, coitados de nós."

Correndo o risco de ser visto "como um homem sem coração", continua Ramos, Passos Coelho está a assumir que as medidas que está a adoptar são duras, mas que é preciso ser forte e resistir e avançar. "A visão do coitadinho não é útil ao Governo", diz o historiador. "Ele está a criar um ambiente churchilliano. Durante as ofensivas aéreas [dos alemães, em 1940/41] a palavra de ordem em Londres era "Britain can take it", a ideia de que "os ingleses aguentam". É terrível, mas galvaniza as pessoas." À escala, o apelo de Passos é semelhante, defende.

De resto, independentemente do contexto, é um facto que "há uma autoconcepção dos portugueses, que vem de longa data, e que é a de que temos tendência para nos queixarmos, para nos lamentarmos", sublinha Rui Ramos. Ela está presente em vários documentos históricos, em várias fontes. Mas é acompanhada por um outro facto: "A ideia de que somos muito críticos em relação a nós próprios." Em suma, os portugueses queixam-se, sabem que se queixam e desdenham dessa carcaterística lusa. Esquizofrénico? Sim, admite. Mas não é isso que acontece sempre que temos noção das nossas particularidades, mesmo as menos simpáticas, apesar de não lhes conseguirmos fugir?

O povo não tem psicologia

O que diz sobre o assunto um psicólogo clínico, que em breve vai editar um livro chamado Emoções positivas? "É um facto que os portugueses são dos povos mais tristes e que, como não somos muito felizes, estamos mais deprimidos, decidimos pior, a economia é pior. Mas não sei se somos piegas", afirma Américo Baptista, que manifesta algumas dúvidas sobre o método de Passos: "Não me parece que um discurso que aponta o dedo às piores características que possamos ter seja galvanizador. Galvanizador é dizer a um aluno, por exemplo, que tem qualidades, chamar a atenção para as suas qualidades. Se o chamar de piegas não o estou a motivar. É assim na educação, como na política."

A psicanalista Maria Belo até encontra alguns traços de pieguice nos portugueses, mas recusa associar isso "a uma estrutura psíquica nacional" - e a prova é que "os portugueses quando vão para fora deixam de ser piegas, de se lamentar, integram-se em estruturas mais organizadas e produzem". O problema, diz, é que as palavras do primeiro-ministro "a terem algum impacto, têm um impacto negativo, irritam as pessoas".

João Leal, da Universidade Nova de Lisboa, é mais cauteloso nisso de classificar um povo como sendo piegas ou outra coisa qualquer. Lembra que muitas têm sido as tentativas de antropólogos de traçar a "natureza psicológica que define os habitantes de determinado país". Sem sucesso. "O povo não tem psicologia. As pessoas sim. O nacionalismo baseia-se muito nessa ideia de pessoa colectiva. Mas isso é uma ficção." E no entanto, é muito frequente que os políticos tentem fazer generalizações sobre o povo - "sentem-se habilitados" para o fazer.

Maria Filomena Mónica segue uma linha de pensamento semelhante: "Odeio falar nos portugueses em geral, porque facilmente se cai no estereótipo e na necessidade de uma "reforma das mentalidades" (aliás, subjacente ao discurso do primeiro-ministro)." Seja como for, acha que os portugueses não são particularmente piegas. "É uma frase infeliz. Logo a seguir, disse coisas acertadas: lembrou, por exemplo, que "temos de ser ambiciosos e exigentes com o ensino, com a investigação e o saber". Devolvo-lhe o apelo. Peço-lhe que o Governo seja ambicioso, exigente, sério, aberto, moderno e capaz de dar o exemplo num momento em que todos estamos a sofrer. E ainda que não seja piegas, ou seja, assustadiço, mimado e lamecha. Não tenha medo de cortar: nas contas dos gabinetes, nas subvenções aos políticos, na corrupção das autarquias."

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