Os últimos meses foram preenchidos para Art Spiegelman (Estocolmo, 1948). O festival de Angoulême dedicou uma impressionante exposição à sua obra, o Ministro da Cultura francês, Frédéric Mitterrand, distinguiu-o com a medalha de Oficial das Artes e das Letras e um livro trouxe-o de volta è esfera pública: "Maus", ou para sermos rigorosos, "MetaMaus". Basta o título para adivinhar o conteúdo desta edição (o selo é da Pantheon), abundante em fotografias, desenhos e outro material de arquivo. Estruturado por uma longa conversa entre o autor e Hillary Chute, professora de Literatura na Universidade de Chicago, é um livro sobre um livro de banda desenhada.
Será exagero (ou talvez não) afirmar que esta arte visual nunca mais foi a mesma desde o lançamento, há 25 anos, do primeiro volume de "Maus - a História de um sobrevivente". Mas poucos recusarão ao livro, que confronta a história de uma família com as ruínas do Holocausto, o estatuto de obra maior. Mais do que a consagração simbólica em 1992 (com o prémio Pulitzer, por alturas da edição do segundo volume), foi a sua complexidade temática, narrativa e visual que lhe valeu os louvores da crítica literária e da academia. Ficção ou autobiografia? Literatura ou BD? A discussão ainda não acabou. Hillary Chute, editora de "Meta Maus", é peremptória: "Para mim Art Spiegelman é um dos autores americanos mais influentes da geração do pós-guerra, senão o mais influente. ‘Maus' obrigou as pessoas a reconhecerem que a banda desenhada pode oferecer narrativas sofisticadas e pungentes. Foi aclamado por gerações diferentes, faz parte de currículos escolares, é estudado nas universidades. E continua a vender muitas cópias por ano nos Estados Unidos".
A canonização de "Maus" deve ser entendida à luz das suas qualidades. Não só afirmou as possibilidades da autobiografia enquanto recurso ficcional, como mostrou a um público alargado que a BD não enjeita a auto-reflexão. Ou seja, é feita de pensamento; pensamento sobre os (seus) processos, discursos e memórias. Ora "MetaMaus" vem enfatizar essa dimensão, recordando aos leitores que a obra originária é menos uma representação do Holocausto, do que uma representação da relação de Spiegelman com a história de seus pais (Vladek e Anja), ambos "sobreviventes" de Auschwitz. Nesse sentido, procura responder a três perguntas que o autor ouviu, ao longo de duas décadas. Porquê o Holocausto? Porquê os ratos? Porquê a BD?
Família, trauma e históriaNão há respostas fechadas. Alguns temas, como relação com o pai, Vladek (a personagem central de "Maus) e o pudor de Art em abordar o sofrimento das vítimas, sem as santificar, são retomados e aprofundados. Nada que impeça a dúvida, o receio de faltar à verdade ("Não estive lá", diz). Porque não é apenas o fantasma do irmão morto durante a guerra (Richieu) que paira sobre "MetaMaus": é também a ameaça do Holokitsch; a dada altura, uma leitora confunde-se: "obrigado Art Spielberg". A vida não foi bela para Vladek e Anja (que se suicida em 1968).
Outros aspectos são profusamente esclarecidos. Por exemplo, o recurso à antropomorfização de animais para a figuração das nacionalidades das personagens. A propaganda nazi (que associava os judeus aos ratos) foi uma referência a par da banda desenhada, da animação e da ilustração infantil. Para todos os efeitos, a biografia de Art Spigelman é indissociável da sua condição de fruidor destas artes. Foi assim que se construiu enquanto autor. Da revista "Mad" de Harvey Kurtzman até Chester Gould (criador de Dick Tracy), passando pelas tiras de "Little Annie" e o movimento undergound comix de São Francisco, todas as influências são documentadas.
Mas não foi apenas a BD que construiu o livro vencedor de um Pulitzer. A descoberta dos primeiros panfletos que denunciavam os campos de concentração e dos desenhos com que as vítimas retratavam o quotidiano em Auschwitz, também serviram de inspiração. E, por isso, "Meta Maus" apresenta-se como um arquivo repleto de revelações. "A maior parte da pesquisa implicou a análise de desenhos e esboços e a identificação e a organização de material de arquivo que estava no estúdio do autor", conta Hillary Chute. "O que me permitiu aprender imenso sobre os assuntos representados. Por exemplo, os panfletos do pós-guerra, que pertenciam à Anja, ajudaram a perceber como Art Spielgelman se tornou autor de banda desenhada. E tivemos acesso pela primeira vez a informação nunca antes revelada, embora fragmentada, sobre o modo como Anja sobreviveu. O que acrescenta dados inéditos à narrativa de Maus que é sobretudo centrada em Vladek". Livro sobre uma família? Porventura. "Metamaus" aprofunda essa perspectiva ao incluir entrevistas com os filhos de Art Spiegelman, Dash e Nadja, e a sua mulher, Françoise Mouly. "Concordo", responde a editora. "E é, também, uma obra sobre a ligação entre uma família e a banda desenhada. Sobre a transmissão do trauma, sobre o que significa ‘sobreviver' através de gerações. É um livro que lida profundamente com as ideias de família, história e intergeracionalidade".
Outro assunto de "MetaMaus" passa quase despercebido ao longo das suas páginas: a tensão entre alta e baixa cultura, industria cultural e vanguardas artísticas. Chegado a Nova Iorque nos anos 1980, Art Spiegelman só encontra reconhecimento e compreensão no "milieu" do cinema experimental. Trava amizade com George Kuchar e torna-se inseparável de Ken Jacobs. É este cineasta que desvaloriza os seus medos de diante da representação da realidade e o incentiva a desenhar sem preocupações miméticas. Mas até que ponto não incorreu o autor de "Maus" num "crime" diante do irrepresentável? Sobre isso, Hillary Chute evoca um episódio: "Lembro-me de um comentário do Art numa conferência que fizemos juntos em Manhattan em Outubro. Ele começou a sua intervenção dizendo: ‘o não-dito vai ser dito dentro de 10 minutos'. Um livro como ‘Maus' não desafia ou contraria a famosa frase de Adorno sobre a impossibilidade da poesia depois de Auschwitz. Pelo contrário, acredito que se concilia com um comentário que o filósofo fez depois, sobre a necessidade da arte lutar consigo mesma depois do Holocausto. E isso é algo que encontramos em ‘Maus'. Está cheio de tensões internas e externas. Daí o seu sucesso, a sua profundidade e ligação com a história".