O mundo num seixo de rio

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Para ele, o fazer da arte não se resumia à aplicação de tinta sobre a tela. Era como se procurasse o segredo do mundo na própria natureza. Fernando Lanhas ficou para sempre ligado à introdução da abstracção geométrica em Portugal. Nunca conseguiu o reconhecimento internacional que merecia

Era do Porto, como tantos outros nomes ilustres ligados à cultura portuguesa de meados do século XX. Júlio Pomar, Nadir Afonso, Jorge de Oliveira e Júlio Resende foram companheiros de geração que, com ele, trouxeram a capital nortenha para a ribalta da arte moderna portuguesa nas décadas de 40 e 50.

Era o seu nome Fernando Resende da Silva Lanhas, alguém que não se sentia inteiramente à vontade com o título de artista. O nome com que assinava, Fernando Lanhas, ou o nome pelo qual a comunidade artística o conhecia, Lanhas, ficou para sempre ligado à introdução da abstracção geométrica em Portugal. Com uma obra de qualidade invulgar, que sustém a comparação com as últimas vanguardas do século XX, nunca conseguiu o reconhecimento e a divulgação internacionais que sem dúvida merecia. Morreu no sábado, com 88 anos.

João Fernandes, director do museu de Serralves, referiu-se a ele como um homem renascentista, um curioso e um erudito que se interessou não só pela pintura, como pela arquitectura (formou-se pela Escola de Belas-Artes do Porto e exerceu a profissão de arquitecto durante largas décadas), a astronomia, a cosmogonia, a física, a geologia. Como os homens do tempo em que a ciência ainda não estava confinada à especialização técnica que hoje a caracteriza, a sua vontade de conhecimento do mundo abrangia muitas áreas e muitas disciplinas. E, sobretudo, o fazer da arte não se resumia para ele na aplicação de tinta sobre a tela: bem antes da Land Art, bem antes das intervenções do escultor Alberto Carneiro na serra do Marão, Fernando Lanhas utilizava a perfeição dos seixos rolados para suportar a pintura, ou a rugosidade de um rochedo na serra de Valongo para intervir na paisagem, como se procurasse o segredo do mundo na própria natureza. João Fernandes, mas também Pedro Lapa, director do Museu Berardo, referiram-se a uma promessa não cumprida por Amadeo de Sousa Cardoso: "Todo o seu trabalho em termos artísticos é a concretização do que ficou suspenso com a morte de Amadeo, em 1918: a existência de uma vanguarda em Portugal em consonância com os movimentos congéneres europeus de meados do século XX", afirmou o segundo.

A tela como lugar mágico

Começou a expor em 1944, na exposição dos Independentes da Escola de Belas-Artes do Porto. Convém recordar que, nesta época, a alternativa à arte oficial patronizada pelo Secretariado Nacional de Informação, que tinha tido a sua apoteose na Exposição do Mundo Português de 1940 e que se continuava pelas Exposições de Arte Moderna daquela instituição, era escassa, tendo-se concretizado numa exposição surrealista (também em 1940) numa casa de decorações, em Lisboa, e pouco mais. Lanhas, com os seus colegas estudantes, integrava o elenco dos jovens artistas da escola portuense que gozava de um ambiente favorecedor da criatividade sem paralelo no país. Expunha uns Pássaros e Rochedos estilizados, mas sobretudo que se concretizavam numa paleta de cores contida e uniforme, feita de verdes, cinzas, ocres e sépias, que manteria durante o resto da vida.

Lanhas depressa se revelaria o mentor do grupo dos Independentes, expressão que não designava uma pertença geracional (incluía também alguns professores, bem como artistas que não frequentavam a escola), mas uma vontade efectiva de criar uma alternativa à inexistência de um ambiente propiciador da inovação plástica em Portugal, e sobretudo em Lisboa. Estas primeiras obras, ainda marcadas pela figura sobre o fundo, são realizadas com a espátula que aplica camadas de cores espessas sobre o susporte. Ainda em 1944, Fernando Lanhas realiza as primeiras pinturas totalmente abstractas, a que dá títulos quantitativos: 01-44, por exemplo, assinala a primeira pintura feita nesse ano. A partir daqui, toda a sua obra pictórica se concretiza e incide na busca de uma estrutura geométrica original, pesquisa essa que inclui a vertente cósmica e mesmo metafísica da ciência. Escreve muito, e relata minuciosamente todos os sonhos que tem.

Como também afirma Pedro Lapa, "o seu onirismo conota a superfície da tela com um lugar mágico de inscrição de símbolos".

Coincidências poéticas

É em 1946 que o salão das Réalités Nouvelles, em Paris, dirigido por Jan Arp e Albert Gleizes, entre outros, se institui como local de divulgação e promoção da abstracção do pós-guerra. Nesse sentido, a obra de Lanhas, que se concretizava em Portugal, país onde a informação sobre artes plásticas era escassa e insuficiente, apresentava-se em sintonia com a cena internacional. Até esta data, Amadeo de Souza-Cardoso tinha sido o único artista do século XX a consegui-lo. Mas Amadeo trabalhara sobretudo em França ou no exílio de Amarante, recusando quase por completo o contacto com o meio artístico português da altura. Faleceu em 1918, muito novo, e tudo o que se possa dizer sobre os caminhos que a sua pintura tomaria se eventualmente tivesse sobrevivido é pura conjectura.

No caso de Lanhas, há uma recusa fortíssima em deixar-se enlear pela facilidade pictórica. A sua pintura é essencialmente abstracta, e procura uma ligação à terra e aos elementos que exigem a contenção formal. As coincidências, quando existem, são poéticas e nunca programáticas ou políticas. Na História da Arte em Portugal, o crítico e historiador João Pinharanda salienta uma espiritualidade nortenha que se materializa na obra de Lanhas, mas também na de Agustina, Teixeira de Pascoaes, Camilo, na do próprio Amadeo, Manoel de Oliveira. No mesmo livro, Raquel Henriques da Silva refere uma frase sua, um paradoxo poético que sintetiza bem a sua postura como artista e como pessoa: "Quase não é natural ser artista. Difícil ainda àquele que pretende julgar, afirmar."

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