Faltam os filmes, sobra a arquitectura no Cinema Batalha

Foto
O Cinema Batalha fechou pela primeira vez em 2000. Reabriu em 2006, mas voltou a fechar em 2010 manuel roberto

Fechado há mais de um ano, o Cinema Batalha começa a exibir marcas de degradação, e o seu futuro mostra-se incerto. Pretexto para uma visita guiada por Margarida Neves e Alexandre Alves Costa

Chega-se à Praça da Batalha e, mesmo para quem não tem memória cinéfila do Porto, é impossível não reparar no contraste entre a frontaria cleando velho Águia d"Ouro recém-transformado em hotel da cadeia low-costB&B e as paredes sujas e grafitadas do Cinema Batalha. Lemos neste inscrições tão estranhas como "Becky & Stace vs. Taker", ou tão facilmente decifráveis como "Isto é um sequestro, não um resgate - Movimento 15 de Outubro", a par de cartazes contra o custo de vida e de apelo à greve geral, ou a publicidade à Grande Gala do Fado no... Teatro Sá da Bandeira! E, no entanto, é bem claro que, por detrás da degradação que começa a apoderar-se do edifício, o Batalha permanece uma referência maior da arquitectura moderna no Porto.

Foi para conhecer mais em pormenor, e por dentro, os segredos e o significado deste projecto do arquitecto Artur Andrade (1913-2005) inaugurado em 1947, que o PÚBLICO pediu uma visita guiada ao Batalha por um membro da família proprietária, Margarida Neves (n. 1955), e pelo arquitecto e professor Alexandre Alves Costa (n. 1939). Ambos aceitaram o desafio, conscientes de que, por razões diferentes, estavam também a embarcar numa viagem afectiva e que iria desencadear memórias pessoais. Margarida Neves é bisneta de Manuel da Silva Neves, o fundador da firma Neves & Pascaud constituída no final do século XIX para a construção do Teatro de Carlos Alberto (1897) e depois também do Salão Jardim da Trindade (1913) e do Salão High-Life (1906), que daria origem ao Batalha. Alexandre é filho do crítico e historiador de cinema Henrique Alves Costa (1910-1988), que foi amigo pessoal e cúmplice de aventuras cinéfilas - nomeadamente no Cineclube do Porto - de Luís Neves Real (1910-1985), durante décadas gestor e programador das várias salas de cinema que a família detinha na cidade.

"O Batalha é muito a minha memória pessoal", diz Alexandre Alves Costa, quando entramos pela porta lateral do edifício, que em 1976 foi transformada em acesso directo à Sala Bebé. "É a minha infância e a adolescência, é o meu pai e a minha mãe, é também o Dr. Neves Real (que foi meu explicador de Matemática) e outros amigos da minha família. Mas é principalmente a grande descoberta do cinema", continua a arquitecto-cinéfilo, recordando ter sido frequentador assíduo da casa e não ter falhado as sessões que o Cineclube do Porto (fundado em 1945) realizou no Batalha durante décadas.

Alves Costa não deixa escapar a oportunidade para fazer notar a Margarida Neves que a construção da Sala Bebé (arquitecto Benjamim do Carmo) "foi a primeira machadada" na integridade do edifício de Artur Andrade, já que obrigou à destruição do belo salão de chá original. "Pois. Foi a primeira tentativa do meu primo Luís Neves Real de viabilizar o cinema", defende-se a actual proprietária.

Situação de impasse

Vale a pena recordar que o Batalha está fechado desde há mais de um ano, e de novo numa situação de impasse, depois da fracassada tentativa de revitalização pelo Gabinete Comércio Vivo, entre 2006 e 2010. Classificado como imóvel de interesse municipal e à espera de classificação patrimonial nacional, o edifício parece cada vez mais longe de poder retomar a sua vocação de cinema, e a família proprietária depara com entraves à sua venda, aluguer, ou afectação a outras funções.

"Eu gostaria que o Batalha tivesse um uso. E também que a minha família não fosse prejudicada por ser dona de um edifício tão emblemático. Já aqui tivemos muitos prejuízos", desabafa Margarida Neves. E acrescenta que "a cidade devia debater a sua utilização, como tem feito noutras situações", lembrando o exemplo da Praça de Lisboa, actualmente em obras de transformação num novo espaço público e comercial.

A visita ao Batalha é também guiada pelas memórias de Jorge Pesqueira, pintor da construção civil e um antigo funcionário nesta casa, onde entrou com apenas doze anos e ficou duas décadas. É ele que tem zelado pela conservação do edifício, estando agora a tratar de minorar os estragos - um tecto a cair em resultado de uma infiltração de água, muito lixo acumulado... - decorrentes da sua última utilização.

Apesar de tudo, o Batalha não está danificado na sua estrutura essencial, e Alves Costa acha que o restauro se faria "com alguma facilidade". "Era preciso ir ver os desenhos originais e repor tudo como era", diz o arquitecto, que vê no Batalha "um projecto notável". "Por que é que a Ordem dos Arquitectos não faz aqui a sua nova sede?", desafia Margarida Neves...

Ainda no piso térreo, Alves Costa volta a lamentar a perda do salão de chá e do seu "belo mobiliário castanho". Sobraram, contudo, vários sofás de napa originais, envelhecidos pelo tempo, e também as montras para os cartazes e outra publicidade - "tudo criteriosamente desenhado por Artur Andrade".

Na parede do fundo, vêem-se ainda as marcas da tentativa do Instituto do Património de recuperar o fresco que Júlio Pomar pintou no Batalha, representando a Festa de S. João, e que o presidente da Câmara do Porto de então mandou tapar, por considerá-lo subversivo. Alves Costa recorda também o que aconteceu com o baixo-relevo do escultor Américo Braga na frontaria sul, de onde foram retiradas a foice e o martelo originais, que estavam nas mãos das figuras representando o trabalho manual.

No piso da entrada principal, vemos na parede do foyero medalhão com as efígies de Neves & Pascaud ao lado de evocações do High-Life e da 50.ª exibição de As Pupilas do Senhor Reitor, de Leitão de Barros (1936). Entramos na plateia, que mantém ainda o palco aumentado pela Comércio Vivo, mas apresenta um aspecto muito próximo do original, com as velhas cadeiras (agora forradas), os discretos candeeiros de iluminação, os relevos da decoração sobre as portas laterais, mas faltando-lhe os que estavam no palco e sobre a boca de cena.

Sala cheia para ver Titanic

Acima fica a Tribuna, onde Margarida Neves gostava de se sentar para ver os filmes - "Eu preferia vê-los da plateia, para estar mais próximo dos actores", diz Alves Costa. O arquitecto chama de novo a atenção para o detalhe do desenho de Artur Andrade: o singelo gradeamento dos corrimãos das escadas, o chão de marmorite negro, as luzes estreladas do tecto, que nos faziam olhar o céu... Mas, e acima de tudo, "o grande pano de vidro a toda a altura do edifício", que fazia com que o espectador, nos intervalos, se sentisse em ligação com o espaço público da Praça da Batalha.

Novo lance de escadas, e estamos no Balcão, sobre o qual a cabina guarda ainda as máquinas de projectar, como que à espera de novas (ou velhas) fitas. Um destino que parece cada vez mais distante do Batalha. "Quem é que viria cá ver cinema, agora?", lamenta-se Margarida Neves, recordando, ajudada pelo antigo funcionário, que o último filme que esgotou a lotação da casa (a sala original tinha mais de mil lugares), quase ironicamente, foi Titanicno início de 1998. Dois anos depois, o cinema fechava as portas às fitas.

Poderia ele albergar agora a prometida Cinemateca do Porto? "Em 2001, conversámos sobre a Cinemateca, mas a oportunidade gorou-se. Agora sabemos que não se vai fazer", diz Margarida Neves. Que destino é que os proprietários projectam para o cinema? "Não vou pôr nenhum anúncio no jornal a dizer: "Vende-se o Batalha". Por mim, vou deixá-lo estar como está, à espera que surja alguém interessado em dar-lhe um uso, porque isso será sempre melhor do que estar a degradar-se", responde.

Sugerir correcção