Não nos livraremos de Margaret Thatcher

Texto originalmente publicado no Ípsilon a 03-02-2012

A mulher que governou o Reino Unido a pulso regressou num filme, "A Dama de Ferro". Por causa dela, e sobretudo contra ela, a cultura inglesa, do "mainstream" às margens mais comprometidas, nunca mais foi a mesma.

Margaret Thatcher não gostava de consensos. Porque haveria então de se preocupar com o que diziam dela? E com o que, a favor dela ou contra ela, os artistas britânicos produziram entre o dia em que chegou ao poder, 4 de Maio de 1979, até ao dia em que o abandonou, em Novembro de 1990?

Filha de um merceeiro, Margaret Hilda Roberts, depois Thatcher, conseguiu um diploma em Oxford quando isso era uma raridade e chegou, contra tudo e todos, a líder do Partido Conservador e a chefe de Estado da mais velha monarquia da Europa. Entre 1979 e 1990, moldou a Inglaterra tão profundamente que se tornou um símbolo de resiliência e do espírito britânico, para quem a adorou, mas também uma figura visceralmente odiada até hoje por quem não esquece o que fez ao país. O que quer que tenha constituído a força de Margaret Thatcher, a Inglaterra - e por consequência a Europa - deve-lhe uma identidade arrancada a ferros. E talvez também uma grande parte da produção criativa dos últimos 30 anos. Pode parecer uma provocação, mas a sua política de ausência, em contraste claro com a política de intervenção que tinha dominado a cena britânica até à chegada de Thatcher, levou a que os universos das artes plásticas, da música, do teatro, da literatura e do cinema reagissem e se constituíssem como a verdadeira oposição.

A debilidade do Partido Trabalhista, esmagado por Thatcher todas as semanas no Parlamento Britânico com uma elegância sedutora, obrigou as artes a fazerem as despesas do combate. "Foram os artistas que desempenharam o papel de resistentes", diz ao Ípsilon Emma Parker, professora na Universidade de Leicester, onde assegura a cadeira "The Thatcher Factor: Arts in the 80s". Mas a académica salienta que nomes como os do artista visual Damien Hirst, dos escritores Haneif Kureishi e Martin Amis, dos cineastas Stephen Frears e Mike Leigh, dos dramaturgos Caryl Churchill e David Hare ou dos músicos Morrisey, Duran Duran e Billy Bragg não eram se não "uma minoria. "A arte verdadeiramente popular estava apaixonada por Margaret Thatcher". Uma Thatcher que defendia "o individualismo à maneira dos heróis dos filmes americanos", "que não acreditava que a cultura fosse relevante". "Foram tempos assustadores", diz Julian Bell, autor de "Uma História da Arte" (Orfeu Negro, 2010), também pintor e crítico. "Fascinantes se olhamos para trás, mas quem é que quer voltar a passar por isso tudo outra vez?".

"Isso tudo" é um país dividido entre "uma arte de resistência e uma arte apaixonada pelo consumo", diz Emma Parker. Por isso é necessário olhar para além das músicas que eram ouvidas nos pubs, dos livros que eram lidos pela classe média, dos filmes que anunciavam o novo realismo britânico, das peças que se apresentavam no National Theatre ou dos artistas que se insurgiam contra as políticas de desorçamentação do Arts Council. Para um retrato mais completo, e mais complexo, da Inglaterra dos anos 80, é preciso colocar, lado a lado, nomes como Damien Hirst e a dupla Gilbert & George, os The Smiths e os Wham!, os filmes "A Minha Bela Lavandaria" (1985) e "Momentos de Glória" (1981), as peças "Top Girls", de Caryl Churchill, e "O Fantasma da Ópera", de Andrew Lloyd Webber, a literatura de Salman Rushdie e aquela que se vendia nos aeroportos, nos quiosques e nas bombas de gasolina.

Um alvo a abater

Thatcher havia sido educada pelo pai a trazer dois livros por semana da biblioteca de Grantham, um dos quais de ficção. E a juntar dinheiro para ir ao cinema da cidade ver as comédias românticas dos anos 30 e 40. Mas isso não a levou a ter uma atenção particular para com a cultura. "Ela desprezava isso. Tinha mais que fazer, foi o que sempre disse", lembra Julian Bell. E isso era o que mais perturbava os artistas.

No campo musical, se um músico como Billy Bragg transportou para canção a luta política da esquerda britânica ("Talking With The Taxman About Poetry", álbum de 1986, é um bom exemplo), os The Smiths escolheram Thatcher como sintoma do tédio e da decadência dos conservadores e colocaram "Margaret in the guillotine". O punk, que explodira nos anos imediatamente anteriores à eleição de Thatcher, não podia, naturalmente, passar ao lado dela. Os Crass, por exemplo, chegaram a criar um "Thatchergate" logo após o início da Guerra das Malvinas: utilizando excertos de discursos da Dama de Ferro e de Ronald Reagan, criaram um diálogo comprometedor entre os dois líderes que, antes de desvendada a sua origem, foi considerado pelo Departamento de Estado americano como criação propagandística do KGB. Formas de resistência, como o álbum "Final Cut", dos Pink Floyd, inteiramente dedicado às Malvinas, ou o nome de uma banda pouco óbvia, os UB40 (foram buscá-lo a um formulário usado para requerer o subsídio de desemprego).

A contestação social que se vivia nas ruas - e se mostrava em sátira todos os dias no programa televisivo "Spitting Image", onde Thatcher era a caricatura mais frequente - não chegava a Downing Street. E, por isso, os romances históricos usaram Thatcher como alvo, representada sempre por modelos masculinos, normalmente déspotas e tiranos. "Alguns destes romances usam o passado como uma lente para examinar o presente, à altura da publicação", casos de "The Passion" (1987), de Jeanette Winterson, sobre Napoleão, ou de "Restoration" (1989), de Rose Tremain, sobre Carlos II. Por outro lado, escritores "pós-feministas" como Jonathan Coe, Ian McEwan ou Salman Rushdie foram bastante mais satíricos com a figura, diz Emma Parker. Em "Versículos Satânicos" (1988), Thatcher transforma-se em Mrs. Torture; em "What a Carve Up!" (1994), Jonathan Coe desenha a sociedade britânica a partir dos discursos da primeiro-ministro, da mesma forma que "Money" (1984), de Martin Amis, reflecte sobre a sociedade de consumo em que se tinha transformado a Inglaterra.

"É difícil encontrar um romance pró-Thatcher", diz Parker. Só depois se lembra do mais recente "Kitchen Venom", escrito apenas em 1996 por Philip Hensher, que trabalhou no Parlamento britânico e coloca Thatcher na sala de debates da Câmara dos Comuns, falando com a sua própria voz sobre o que vai vestir e, no fundo, "apresentando-a não como o diabo em pessoa, mas como uma mulher comum". "Uma imagem que Thatcher nunca abandonou, insistindo sempre que aquilo a que chamavam mentalidade de merceeira era o que lhe permitia conhecer o país", refere Parker. Esta dualidade também se tornou evidente nas representações de figuras femininas do cinema da altura, que opunha as mulheres trabalhadoras, heroínas do neo-realismo britânico, às protagonistas dos filmes de época que encarnavam os valores tradicionais ingleses.

No teatro, Caryl Churchill foi das primeiras a reagir a Thatcher, em "Top Girls", de 1982 (em Portugal, Fernanda Lapa encenou a peça no Teatro Aberto, em 1993). Tal como a primeiro-ministro britânica, que dizia não haver "essa coisa da sociedade, mas homens e mulheres e famílias", também Marlene, a protagonista de "Top Girls", não acredita em classes. Numa das mais importantes cenas da peça, em discussão com uma amiga, Marlene defende os seus princípios: "Se [as pessoas] forem estúpidas, preguiçosas ou tiverem medo, eu não lhes vou arranjar um emprego, porque haveria de o fazer?".

Mulher-homem

Porque era uma mulher a fazer o trabalho de um homem, Thatcher foi caricaturada como um homem, tal como Winston Churchill, com um fato de riscas e um farto charuto. Diz Emma Parker que Thatcher procurou conciliar as expectativas que alimentavam a discussão sobre os papéis, ao enfatizar a sua feminilidade. Por exemplo, através da sua famosa mala de mão, onde trazia sempre papéis com citações, que retirava conforme a necessária humilhação do adversário. De tal forma que o Oxford Dictionary, o documento de referência para a língua inglesa, reconheceu o termo "to handbag" (em tradução livre, algo como deitar abaixo), ainda hoje usado em discussões no parlamento. Era isso que Thatcher fazia.

Muitas das figuras femininas criadas na altura foram lidas à luz do perfil traçado por Thatcher. "Top Girls" é justamente um exame dos custos familiares do sucesso profissional das mulheres. A peça, escreve Michael Billington, crítico de teatro do "The Guardian", reflectia sobre "o duvidoso avanço social de ter uma mulher como primeiro-ministro com uma política social e fiscal tão agressiva". "As coisas pioraram muito para as mulheres durante o período Thatcher", disse a autora, Caryl Churchill, numa entrevista em 1987. "Ela pode ser uma mulher mas não é uma irmã; ela pode ser uma irmã mas não é uma camarada".

Dramaturgos como Churchill apareceram como contraponto ao escapismo e à subserviência gritantes do teatro britânico da época, numa altura em que os musicais se tinham transformado num fenómeno de exportação, define Billington. Só após a reeleição de Thatcher, em 1983, os autores começaram a "erguer as cabeças", reconhecendo que as medidas de Thatcher estavam a alterar o país de forma irreversível. Em 1984, surge uma companhia que haveria de constituir-se como referência fora de Inglaterra para um teatro de "intervenção política não-directa". O colectivo Forced Entertainment mudava-se para Sheffield como "forma de melhor desaparecer por entre a multidão". "Era mais fácil encontrar sítios de trabalho, pois existiam tantos edifícios abandonados", diz-nos Tim Etchells, o director artístico, que se ri quando lhe perguntamos se "era mais fácil" ter alguém para odiar. "Em parte a reacção tornou-se a forma e a força. Houve a necessidade de inventar outros canais de articulação por causa do que estava a acontecer", reconhece. "Se quisermos, Margaret Thatcher produziu um sentimento de oposição que tornou as coisas mais fáceis para a arte e que, no período imediatamente a seguir, foi mais difícil de encontrar. Mas o que tivemos depois disso, com Tony Blair, foi igualmente divisor e moralmente corrupto".

Foram precisos dez anos para que os Forced Entertainment reconhecessem que o seu trabalho tinha uma leitura política inevitável. Quando os convidaram para criar uma peça que marcasse os dez anos da companhia, cruzaram acontecimentos pessoais com a história do próprio país. O espectáculo, intitulado simplesmente "Ten Years of Forced Entertainment", exprimia uma "uma reacção zangada e celebratória dessa raiva, escavada em sítios onde as possibilidades pareciam ter deixado de existir". "O sentimento de alienação em que vivíamos não nos deixava ver. Não é diferente hoje, começa tudo a parecer-se", alerta Tim Etchells.

Boa imprensa

Nos anos 80, esses sinais pareciam mais confusos e foi isso mesmo que David Hare e Howard Brenton escreveram em "Pravda" ("verdade", em russo), peça de 1985 em que apontavam o dedo à imprensa, responsabilizando-a pelo falhanço nos alertas. Estreada no National Theatre, acusava Thatcher, mas também o tablóide "The Sun", de Rupert Murdoch, que mantinha uma linha editorial pró-Thatcher. "A imprensa adorava-a", esclarece Emma Parker, "e o "The Sun" foi o grande veículo das ideias de Thatcher. A sua influência em todo o país era imensa".

O afundamento do cruzador General Belgrano, em plena Guerra das Malvinas, foi celebrado como um momento de grandeza britânica. No novo filme, "A Dama de Ferro", Thatcher/Meryl Streep demonstra arrependimento. Mas a 4 de Maio de 1982 o "The Sun" escrevia em letras garrafais uma palavra: "Gotcha!" ("apanhámos-vos"). Em rodapé, uma outra notícia dava conta de que continuavam as negociações com os sindicatos dos mineiros. O "gotcha!" da manchete foi lido como um sério aviso de que Thatcher conseguiria dobrar os sindicatos, forçando os mineiros em greve a regressar ao trabalho.

Mas as Malvinas foram um ponto de viragem na vida política de Thatcher, que não escondeu o desejo de as inscrever na memória cultural inglesa. Conta Michael Billington no livro "State of the Union - British Theatre since 1945" (Faber, 2009) que Thatcher, ciente do poder de fabricação de mitos proporcionado pelos musicais, convidou em 1984 o encenador e compositor Andrew Lloyd Webber para uma festa de natal. Numa visita guiada pela sua casa, apontou para uma cadeira e disse: "Foi aqui que me sentei quando decidi afundar o Belgrano". O piscar de olhos era evidente, Thatcher desejava que Lloyd Webber fizesse com ela o que havia feito com Eva Péron em "Evita". Anos antes, num jantar semelhante, Thatcher recebera David Puttnam, o produtor do filme "Momentos de Glória", que em 1982, ao agradecer o Óscar de melhor filme, avisara, provavelmente aludindo à invasão das Malvinas: "The british are coming". Thatcher sugeriu que os valores britânicos representados nesse filme servissem de inspiração para outro sobre o conflito anglo-argentino. No livro "Fires were Started" (Columbia University Press, 2007), Lester D. Friedman atribui a "Momentos de Glória" "uma reconfiguração do sentimento nacionalista de perfil thatcheriano" relacionada com uma certa ideia de "regresso do herói".

Em certa medida, foi também esse espírito rebelde, fora do sistema e fora do Estado, que desenhou o perfil dos Young British Artists, um grupo de artistas maioritariamente oriundo do Goldsmiths College que se apresentou ao mundo numa exposição organizada por Damien Hirst, em 1988. "A arte britânica constitui-se à margem dos discursos oficiais. Mesmo que alguma tenha sido apoiada por dinheiros públicos, nunca o foi em valor suficiente para se sentir verdadeiramente como parte integrante do perfil do país", observa Julian Bell. "A atribuição de um preço de mercado a uma obra de arte e a necessidade de o mostrar levou a uma corrida desenfreada pelos lugares de destaque nos "rankings" das leiloeiras", diz o historiador. "É profundamente perverso", acrescenta Emma Parker, "perceber que os artistas ou garantem a sua independência expondo nas suas garagens, ou têm de depender de pessoas como Saatchi, que tenta uma subversão a partir do interior da máquina de que faz parte".

Como sempre, as margens acabam, inevitavelmente, por entrar no sistema. E foi isso que aconteceu a muitos dos Young British Artists, antes rebeldes e hoje parte da máquina. "Thatcher preparou o terreno para o que veio a acontecer e revelou que, em grande medida, nunca houve grande conteúdo político nos discursos de artistas como Damien Hirst", diz Julian Bell.

Para Emma Parker, o maior legado de Thatcher vê-se aí, "na reconfiguração do discurso sobre a arte e o seu impacto na sociedade". "Não nos livraremos de Margaret Thatcher", diz. "Será muito pior quando ela morrer", resume Tim Etchells.

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