Esta fotografia é como um mapa do território

Foto
Orlando Ribeiro, 1948 colecção do centro de estudos geográficos

Deambulaçõesmostra a fotografia de um geógrafo ao lado da de fotógrafos e artistas contemporâneos. Portugal visto por Orlando Ribeiro, mas também por Nuno Cera, João Pedro Vale e Duarte Belo. Até 2 de Março

Foi a primeira coisa que comprou ao chegar à universidade como professor. Quando Orlando Ribeiro saía para o campo, a Leica era tão importante como as botas ou os óculos. "Ele não via nada sem eles e, sem as fotografias, nós veríamos muito menos de tudo o que ele viu", diz Suzanne Daveau, sua mulher e companheira de muitas viagens. "Quando começava a preparar mais um trabalho numa serra qualquer, o Orlando ia logo buscar a Leica. Ele sabia que a fotografia é um documento que perdura, que amplia a paisagem, que nos permite voltar a olhar com outro tempo, a partir da sala da nossa casa."

Paralelos à escrita, Orlando Ribeiro (1911-1997) manteve sempre outros dois registos para os quais não tinha qualquer formação específica - o do desenho e o da fotografia. Folhear os seus cadernos de campo, cheios de anotações numa letra miudinha, é testemunhar um esforço de organização que, segundo Daveau, contrariava a sua natureza e que, por isso, pode explicar o facto de muitas das imagens dos seus 50 anos de carreira académica (fez cerca de 11 mil, entre fotografia e diapositivos) terem ficado por legendar. "A cartografia dos seus cadernos não é fácil. Às vezes não anota sequer a data e o local de um apontamento ou de um desenho", reconhece Daveau ao P2. Tudo em campo era muito rápido e a fotografia dava ao académico a possibilidade de registar o que via com toda a impaciência que lhe era habitual. "Aprender a trabalhar com a Leica foi uma estreia para o Orlando. Foi a única máquina que aceitou sem reservas. Ele que nunca aprendeu a dactilografar..."

Referência da geografia portuguesa do século XX, autor de livros fundamentais como Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico(1945) e Mediterrâneo. Ambiente e Tradição(1968), Orlando Ribeiro era também fotógrafo. Por necessidade. É esta faceta que Deambulações: Diálogos Fotográficos com Orlando Ribeiro, a exposição que abre hoje na Reitoria da Universidade de Lisboa, explora através de 70 trabalhos de 30 fotógrafos e artistas, cedidos pelos próprios ou saídos do acervo do Centro de Estudos Geográficos (CEG), da colecção da Fundação PLMJ e das galerias Luís Serpa e Carlos Carvalho.

José Manuel Simões e Mário Neves, geógrafos e fotógrafos, são os comissários desta exposição organizada pelo núcleo de investigação que Orlando Ribeiro fundou (o CEG). Com ela quiseram tirá-lo da esfera da academia e mostrar, entre pares, até que ponto podem ser fortes e eficazes as suas imagens documentais. "Conta-se que, na primeira aula do ano, com turmas novas, o professor falava sempre da importância da observação, de como o principal instrumento do geógrafo é o olho", diz Simões, que ainda assistiu a um ou dois dos seus seminários quando chegou à faculdade, em 1974.

Vinte e cinco das suas fotografias documentais foram propositadamente ampliadas para Deambulaçõese vê-las ao lado de outras mais familiares ao universo artístico - João Pedro Vale, Nuno Cera e Ana Janeiro - é, por si só, uma experiência. Simões e Neves não procuraram o confronto, mas ele às vezes acontece: "Gérard Castello-Lopes é contemporâneo de Orlando Ribeiro; Augusto Cabrita e Eduardo Gageiro gostam de fotografar o trabalho e os trabalhadores; o Duarte Belo entra em diálogo com o território quase nos mesmos moldes. Tudo isto é importante para estabelecer diálogos e contrastes. E os contrastes são bons", defende Mário Neves, frente a uma fotografia que Orlando Ribeiro tirou em plena erupção do vulcão dos Capelinhos, no Faial, em 1957, numa expedição em que também filmou, com a sua assistente, Raquel Soeiro de Brito. "Falta-me ver um vulcão em erupção e uma aurora boreal", diz este geógrafo que já fez trabalho de campo na Antárctida. "O Orlando Ribeiro viu muita coisa."

Sem distinções

Separar o documental do artístico quando se trata de relacionar a fotografia de Orlando Ribeiro com a de Paulo Catrica e de Isabel Brison faz sentido do ponto de vista formal, mas Daveau garante que compartimentar a realidade não era coisa que agradasse ao geógrafo que conheceu num congresso na Suécia em 1960 e com quem viria a casar cinco anos, uma quantas cartas e outros tantos encontros depois. "Mostrei-lhe os Alpes, ele mostrou-me a serra da Estrela. Mostrei-lhe a Bretanha, ele mostrou-me o Alentejo", exemplifica, "mas em nenhuma das nossas viagens ou em momento alguma da nossa vida, o Orlando dividiu a realidade em pedacinhos ou especialidades. A geografia era, é, uma maneira de ver o mundo. Nunca fez qualquer distinção entre ciência e arte, gostava de Vivaldi e Bruckner, como gostava de Goethe e geologia."

Muitas das fotografias de Orlando Ribeiro foram feitas com Daveau, hoje com 86 anos, por perto. E ela também fotografa. Mas num dos registos mais antigos da exposição a geógrafa francesa estava ainda a quase 30 anos de distância. É uma vista do Vale do Zêzere, em 1938, em que é possível ver os pequenos caminhos de pé posto que cortam as encostas e o rio ao fundo, como se fosse apenas um fio de água ali à porta da nascente, no Covão da Ametade.

Duarte Belo conhece bem esta serra, verdadeiro laboratório da geografia portuguesa. Tem sete fotografias expostas em Deambulações, seis delas com rochas, neve e pequenas lagoas da Estrela. As semelhanças entre a sua fotografia e a de Orlando Ribeiro explicam-se pelo "carácter documental" de ambas e pelo facto de ter herdado do geógrafo, que descobriu aos 18 anos nas estantes da livraria Leitura, no Porto, o desejo de conhecer melhor o país. "O Orlando Ribeiro desenha, com uma escrita brilhante e as suas fotografias, um mapa do território português que sempre me interessou muito", diz. "Lê-lo é como ler Camilo ou Aquilino, mas a sua fotografia não quer ser nada além do que é - puramente documental. A sua objectividade é muito tocante. Ele não está nada interessado em criar uma nova linguagem a partir da fotografia, só quer registar o que vê para fixar a memória dos lugares."

O fotógrafo já percorreu os mesmos caminhos do geógrafo mais do que uma vez. Primeiro num projecto para a Expo "98 e o Círculo de Leitores (Portugal - O Sabor da Terra, 1996-98) e depois para a Assírio e Alvim (Orlando Ribeiro - Seguido de uma viagem breve à serra da Estrela, 1999). Agora prepara-se para lançar Portugal, Luz e Sombra - O País depois de Orlando Ribeiro(no próximo dia 23, na Biblioteca Nacional, em Lisboa, numa edição Temas e Debates/Círculo de Leitores). "Foi com ele que aprendi a olhar para a paisagem. Neste último projecto fui, durante duas semanas, a muitos dos lugares que ele fotografou ao longo de 50 anos. O país de Orlando Ribeiro não era atravessado por auto-estradas."

Mas Daveau lembra-se bem de o percorrer ao volante da 4L. Orlando Ribeiro não costumava guiar. "Perdemo-nos na serra da Lousã, na do Açor... Sempre que tínhamos dois ou três dias para viajar, saíamos. Portugal era o assunto que mais lhe interessava." Era no campo, diz José Manuel Simões, que se sentia bem e as suas fotografias mostram-no: "É no mundo rural que se torna mais evidente o equilíbrio entre o homem e o meio, essa simbiose que Orlando Ribeiro gostava tanto de sublinhar, com um olhar profundamente humanizado."

Sugerir correcção