Anne Teresa De Keersmaeker: retrato de uma senhora
Até ao final do ano, Lisboa está sob a influência de Anne Teresa De Keersmaeker. Uma operação sem precedentes para revisitar o corpo de trabalho da coreógrafa belga, da primeira à última peça, e também a sua cabeça: "Prefiro dançar a falar, é verdade". Tiago Bartolomeu Costa
E, de repente, a cadência do movimento é interrompida. A bailarina desconcentrou-se. Todos o perceberam, embalados que estavam por aquela frase minimal, sincopada pela música de Steve Reich. A bailarina procura a próxima deixa para voltar a entrar numa estrutura coreográfica exigente, quase impossível de se sustentar, aparentemente distante, mas que se prova, ainda e sempre, actual. Os seus olhos nunca se desviam da nuca da outra bailarina, os seus pés nunca abandonam a posição onde se encontram. É o braço esquerdo que precisa de encontrar a oportunidade para voltar a ser movimento.
A respiração do público parece suspender-se. Fomos todos chamados, outra vez, à realidade. É só movimento. É só uma bailarina que perdeu a concentração. É Anne Teresa de Keersmaeker (Mechelen, Bélgica, 1960) a procurar-se no interior da sua coreografia.
Estávamos em Julho, nos claustros do liceu Saint-Joseph, em Avignon, quando a coreógrafa e bailarina belga, fundadora da companhia Rosas e da escola a ela associada (P.A.R.T.S. - ver caixa), se deixou levar pelo entusiasmo de voltar a dançar "Fase, four movements to the music of Steve Reich", peça criada em 1982 e apresentada, naquele mesmo espaço, no ano seguinte. Passaram 20 anos desde que a começou a ensaiar. "Como é que eu ainda a sei de cor?".
Quando em Novembro a reencontrámos em Bruxelas, não foi preciso muito para que nos recordasse esse episódio e nos contasse o que aprendeu com ele: "Passa-se qualquer coisa em palco que nos compromete com aquele momento. Os esforços físicos e mentais produzem uma estranha combinação que não é meditativa. É preciso estar-se focado, fracção de segundo por fracção de segundo. O vocabulário, os mecanismos e os artifícios da coreografia estão de tal modo visíveis que não é admissível que nos enganemos. Não se trata de ficcionar coisa alguma. Não há tempo para mais nada. Nem espaço. Só nós no movimento".
"Fase" abre hoje o ciclo que, ao longo de todo este ano, trará Anne Teresa de Keersmaeker a Lisboa, juntando o Centro Cultural de Belém, a Culturgest, os teatros municipais São Luiz e Maria Matos, os festivais Alkantara, Lisboa na Rua e Temps d"Images, a Companhia Nacional de Bailado, a Fundação Calouste Gulbenkian e o Museu do Chiado. Serão 13 peças, mais vídeos, e um espectáculo para crianças. É uma operação sem precedentes, que surpreendeu a própria coreógrafa, e que se pretende repetir a cada dois anos, com outros artistas. E também é a oportunidade para vermos as quatro primeiras e as duas últimas peças de uma coreógrafa que faz hoje parte da história da dança contemporânea ocidental (e para a vermos mesmo, a dançar, nalgumas delas). "São as peças que me tocam mais fundo", diz-nos. Pelo meio fez outras "em que andou à procura".
Entre as peças que abrem o ciclo, da série "Early Works", estão, para além de "Fase", a mítica "Rosas Danst Rosas" (1983) - reconhecidamente plagiada por Beyoncé no ano passado, no vídeo de "Countdown" -, "Elena"s Aria" (1984) e "Bartók/Mikrokosmos" (1987)". São estas peças que vão marcar "o estilo sem estilo" de Anne Teresa de Keersmaeker e inscrevê-la numa família alargada e imaginária. Desde logo, desde muito cedo, ao lado dos coreógrafos Merce Cunningham (1919-2009) e Pina Bausch (1940-2009). "Quando penso nisso fico sempre a pensar a que pessoa se dirige o nome nos cartazes. O que diz de mim?"
De Keersmaeker não se cansa de reforçar que "trabalha muito". Fá-lo não para provar o que quer que seja, mas para justificar, quase a pedir desculpas, uma "resistência a uma forma, a um conforto, a um modelo". "Estou sempre a aprender", diz, acrescentando que aprendeu com o regresso às primeiras coreografias "que o essencial continua muito presente e, com o tempo, é o acessório que se auto-exclui." É disso que anda à procura e é isso que mostram as peças que vai trazer a Lisboa: "Como é que trabalhamos com o mínimo dos meios, criando um impacto que seja, ao mesmo tempo, abrangente e individual? Continuo a perguntar-me isso todos os dias".
Das primeiras peças às últimas, passando por "Drumming" (1998) e "The Song" (2009), ou mesmo por aquelas que vai trabalhar com a Companhia Nacional de Bailado - num regresso depois da criação de "The Lisbon Piece" em 1998 -, De Keersmaeker contraria uma mecanização do movimento, sugerindo que a precisão vem da capacidade de observar, ao mesmo tempo, o corpo do bailarino no palco e o modo como ele está a ser visto de fora.
Quando fala sobre dança - "prefiro dançar a falar, é verdade" -, a coreógrafa suspende o discurso e percebe-se que fica a pensar no impacto que pode ter cada palavra sua. "As pessoas esperam que eu diga algo que as possa fazer sentirem-se seguras. Pediram-me, há uns anos, que fizesse uma declaração para o Dia Mundial da Dança, e eu escrevi que, mais do que qualquer outra arte, a dança celebra o que nos torna humanos. As pessoas trabalham com o corpo, e com a dança o que fazemos é usar a mecânica do corpo, os sentidos, o que o corpo usa e carrega, e as suas emoções que tornam todas as experiências únicas." E que corpo é este? "É um corpo emocional e é sempre um corpo social."
Danço, logo existo
Nas suas peças, De Keersmaeker procura construir um espaço para uma experiência. "Como é que podemos partilhar, efectivamente, alguma coisa? Temos de criar um tempo, um espaço e um ambiente que reflictam isso mesmo. E onde temos hoje essas experiências, divididos que estamos por computadores? Esta comunidade que se cria é, ao mesmo tempo, uma comunidade aberta e que se desdobra. Cada interpretação traz e leva diferentes significados. E desdobra-se até poder fazer parte dela, integrando o que vai surgindo. É assim que as peças ganham a sua própria vida, no modo como cada um a leva. Queremos que as pessoas reconheçam ou queremos desafia-las?" É também assim que Anne Teresa se desafia, criando experiências para os outros.As peças que vai trazer a Lisboa falam disso. O díptico "En Atendant" (2010) e "Cesena" (2011), criadas para serem apresentadas, respectivamente, ao fim da tarde e ao nascer da manhã", "materializa a relação do corpo com a descoberta". "É quando o corpo se revela na luz que se torna material, ganha a sua forma e expõe a sua complexidade". Em Lisboa não veremos a versão ao ar livre, criada em Avignon, mas a 16 de Junho, em Guimarães, a experiência de Avignon será repetida no Convento das Domínicas. "Há uma diferença entre a peça na sua versão de palco e na sua versão ao ar livre. É a mesma peça, mas o modo como vamos descobrindo o movimento revela também o modo como desmontamos as imagens feitas sobre esse mesmo movimento".
É, portanto, sobre a descoberta que Anne Teresa de Keersmaeker tem falado, sem saber a que "ordem de coisas" pertence a dança: "Não é só arte, é outra coisa. Ou talvez se chame arte por não se saber o que é. É parte de uma experiência que não podemos nomear".
A coreógrafa belga fala de dança para falar de respiração. E de respiração para falar de vida: "Sabe como verificam se alguém morreu? Colocando um espelho em frente ao nariz. Os olhos podem estar quebrados, o coração pode ter desacelerado, mas é quando não respiramos que morremos". "Fase" vem daí, como vieram todas as suas peças posteriores, "desse percurso de dentro para fora e depois de volta ao corpo". Dançar é "ter uma experiência ao vivo". E explica: "Não é como a música, que pode ficar inscrita numa partitura, não é como um quadro, que pode ser pendurado. Se não for dançada, a dança não existe."
E as peças (as que continuam a circular e as que vão acabar), que vida têm? "Todas as peças têm um lado visível e invisível que dialoga e que se espera que seja consistente, mas é subterrâneo." Não deixa de se impressionar com os seus primeiros trabalhos, reunidos na série "Early Works". "Eu tinha 21 anos, queria dançar. Ainda consigo ver isso quando as interpreto. E o que é que isto diz dos corpos? Passaram 30 anos, o mundo mudou, os corpos mudaram, as mentes mudaram, mas olhamos para estas peças e parecem, sublinho, parecem, a mesma coisa." Por isso, quando regressa a elas, "é como se regressasse a porto seguro". E fala dos sentimentos, das energias e das emoções que redescobre. "E os novos sentidos que na altura não sabia traduzir e foram todos instintivos".
Tinha então 21 anos, pouco tempo tinha passado desde que entrara na Mudra, a escola que Maurice Béjart criara na Bélgica e que renovaria a dança contemporânea europeia. "Quando era criança eu queria ter um tutu. Eu queria dançar". Ainda é isso que quer fazer. "Eu sou uma bailarina". Isso vê-se nos seus gestos quotidianos, tão lentos que, quando são interrompidos por um punho fechado, por um corte no ar com a cabeça, ou pelas pernas cruzadas de forma tão tensa, se relevam coreográficos.
Não é por capricho que De Keersmaeker diz não saber falar do seu trabalho: "Como posso falar de algo que pertence tanto aos outros como a mim? Não separo a minha vida do meu trabalho. Como fazê-lo? Porquê fazê-lo? É o meu modo de me relacionar com o mundo, a minha forma de o pensar e de me relacionar com o meu próprio corpo. De o compreender".
A cada peça, um novo desafio. "Não sei como decido que está pronta", confessa. Nunca está. Depois da estreia de "Cesena", em Avignon, eram 7h30 da manhã, foram marcadas repetições para a tarde. "Trabalho muito", diz. "Não pode ser de outra forma. Porque seria? Com a idade as coisas vão encontrando a sua ordem natural, o que quer que isso seja". Da sala onde conversamos, olha para a janela e observa uma árvore: "Repare naquela árvore, repare como é bonita. Como posso competir com isto?".
Parece estranho, "sim, às vezes esotérico", mas tem a ver com "consciência". "A questão é saber se percebemos que a vaidade espreita ali à esquina". "Para mim é um desafio, nos espectáculos, encontrar um equilíbrio justo entre, por um lado, realizar qualquer coisa de estimulante no plano intelectual e recusar o que é fácil, e, por outro, não perder a noção de prazer e do gozo. Quero dar às pessoas o desejo de não aceitarem arbitrariamente o que lhes é dado à primeira vista, e de colocar questões. Mas quero, também, fazê-las sonhar". É dentro desta máquina que Anne Teresa opera. Um desejo de evasão estruturado, mas não necessariamente programado. "É um conflito entre a intuição e o instinto", diz.
A vida de uma peça
É também daí que vem a sua intensa relação com a música. Ao longo dos anos, de Steve Reich a Bartók, de Mozart a Mahler, de Debussy à música medieval, o corpo de Anne Teresa mostrou-se sempre em diálogo com o espaço criado premeditadamente pela música. E esta relação surge de uma pergunta que, de tão simples, se torna complexa: "Como pode o meu corpo hoje relacionar-se com uma música de outro tempo? E como pode o meu corpo, através dessa música, falar sobre o lugar onde estamos, hoje?"Quando em 2010 criou "3Abschied" com Jérôme Bel, levou mais longe essa relação ao colocar-se em palco a cantar a ária final de "A Canção da Terra", de Gustav Mahler. "Sim, eu sei que não sou cantora, e também sei que é difícil para mim. Oh, é tão difícil. Mas como é que posso achar que a voz não é corpo, e [sendo corpo] como a posso dançar?".
Quando em 1987 esteve em Lisboa para apresentar "Rosas Danst Rosas" na Gulbenkian, percebeu que o trabalho sobre a música não podia ser exterior, tinha de partir do corpo do próprio bailarino. "Os bailarinos sempre contaram os passos nas minhas coreografias. Passam o tempo a fazê-lo". Mas o que se passou durante a apresentação da coreografia fê-la explicitar melhor o que já lhe parecia natural. Na estrada do Guincho, o carro foi assaltado e levaram a música da peça. Os bailarinos dançaram a peça sem música, diz-lhe a memória.
Como para muitos coreógrafos que começaram a trabalhar nos anos 80, a música deixou de ser ilustração e tornou-se acompanhamento. Diz Laurence Louppe, em "Poétique de la Danse Contemporaine", que a música, para De Keersmaeker - e aqui inclui também o seu trabalho sobre o silêncio - é um "parceiro estético, um espelho ou um modelo". "A arte de De Keersmaeker funciona a partir de uma gestualidade voluntariamente repetitiva, que coloca em perspectiva as articulações sintácticas: repetição, sobreposição, suspensão, ciclos", explica Louppe. "E, frequentemente, a complexidade do projecto arquitectónico contrasta com um relativo desapego da matéria gestual, o que não impede que essa mesma gestualidade seja rica em cambiantes, passando muito rapidamente de uma grande fluidez, muitas vezes articulada pela parte superior do corpo, a uma intensificação das forças levadas até à exasperação, uma tendência que encontramos em toda a dança flamenga surgida do mesmo contexto criativo".
"Eu sei que faço parte de um contexto, mas que espera esse contexto de mim?", pergunta-nos ela. "Olho à minha volta, faço o meu trabalho, às vezes penso que isto só a mim me diz respeito, outras vezes surpreendo-me com a ressonância que tem nos outros". É este rigor, esta procura, "esta forma de pensar", que a faz continuar.
A sua companhia, a Rosas, tem um intenso calendário de apresentações, o que só torna mais excepcional esta passagem por Lisboa, e Anne Teresa sabe que algumas das peças, entretanto transformadas em filmes, construíram uma vida à parte e instituíram-se, também, como referências. "É como se a própria peça tivesse sido fixada, mas a memória que ela constrói esteja permanentemente em actualização através das projecções que cada pessoa, nos seus contextos, com o seu olhar, com as suas ambições, lança sobre a peça quando a vê ao vivo". O mesmo se passa com o seu repertório, com o qual tem "uma relação difícil". "Nunca sei o tempo de vida de uma peça", diz. Muito provavelmente, "The Song" terá as suas últimas apresentações em Lisboa. A explicação parece simples: "Há peças que respondem melhor a um tempo que outras". Quando deixam de responder, "temos de as deixar seguir". "Eu tenho a certeza do que faço, mas não posso confiar nisso de forma segura. A natureza das coisas é construída diariamente. É por isso que trabalho tanto. Para descobrir novas formas de fazer".