A Dama já não é de ferro e o mundo que ajudou a criar prepara-se para chegar ao fim

Texto originalmente publicado no Ípsilon a 03-02-2012

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RUSSELL BOYCE/ REUTERS

A mulher que força a entrada num mundo que pertence aos homens. Uma vontade férrea simbolizada numa mala de senhora. Uma determinação inabalável assente sobre saltos altos. As convicções forjadas numa cidade de província das Midlands, numa família da baixa classe média.

Este não é um filme sobre o thatcherismo. Não é um filme político, não defende uma tese, não pretende lançar uma nova polémica (mais uma) sobre uma "revolução ideológica". Este é um filme sobre "ela". "She". Era quanto bastava quando governava o Reino Unido. Era a única. A primeira-ministra britânica que ocupou durante mais tempo o nº 10 de Downing Street. Onze anos e meio. Resultado de três vitórias eleitorais sucessivas. Cujo nome desencadeia paixões. A Dama de Ferro. A Bruxa. Ela já era "ela" quando Dilma ainda lutava na clandestinidade contra a ditadura militar. Hillary iniciava a carreira política de Bill. Angela estudava física num obscuro laboratório na metade leste de Berlim. Este filme é sobre ela. Margaret Thatcher. Maggie. Mrs. Thatcher. Não é sequer um documentário ou uma biografia, embora seja baseado na obra de um dos seus biógrafos mais reputados, John Campbell. Não é, portanto, sobre política. "É sobre carácter, sobre o efeito do carácter no poder e o efeito do poder sobre o carácter", escreve Charles Moore, jornalista do "Telegraph" e outro dos seus biógrafos (autorizado). É sobre uma personalidade. Ou, se se quiser, sobre uma mulher. Os acontecimentos políticos que a envolveram servem apenas de suporte. São os "actores secundários" de um filme com um enredo muito simples: porque é que Thatcher foi Thatcher. E é também uma magnífica história da solidão do poder supremo e do preço muito elevado que é preciso pagar por ele. Comovente, por vezes. Os acordes de "O Rei e Eu", uma valsa, a penumbra de uma sala vazia depois de uma derrota. A primeira e a única. Outras vezes é trágico. A decadência inexorável de quem teve o mundo a seus pés. A fragilidade de quem sempre foi forte. A pura e simples condição humana.

A filha do merceeiro

Era o momento de o fazer? Com a personagem ainda viva, embora cada vez mais distante do mundo? Partindo da decadência física e mental de uma velha senhora que vagueia pela sua grande casa em Belgravia, muitas vezes só, outras na companhia dos seus fantasmas, para relatar o seu papel na História? A Dama já não é de Ferro e isso induz simpatia. A interpretação magistral de Meryl Streep cria uma identificação de tal maneira forte com a personagem que quebra qualquer possibilidade de distanciamento. É a humanização de Thatcher que dá ao filme toda a sua força e que, ao mesmo tempo, volta a incendiar a polémica em torno da mais polémica de todos os primeiros-ministros britânicos do pós-guerra. Mas este é um debate supérfluo. Afinal Thatcher, goste-se dela ou não, figura entre os grandes líderes do século XX britânico. Marcou uma época. Desencadeou uma profunda mudança. Sobre ela já se escreveram inúmeras biografias e milhares de teses. Merece um filme. Merece até um filme magnífico. Merece a mais extraordinária das interpretações. Porque oferece material de primeira. A "filha do merceeiro" que chega à liderança de um partido dominado por uma elite aristocrática. A "outsider". A mulher que força a entrada num mundo que pertence aos homens. Uma vontade férrea simbolizada numa mala de senhora. Uma determinação inabalável assente sobre saltos altos. Um absoluto domínio sobre os homens, atirando-lhes à cara a sabedoria de uma dona de casa. "Algum dos senhores sabe quanto custa um litro de leite?" Não!" A primeira mulher a chefiar um Governo de uma potência ocidental, que não hesitou em desencadear uma guerra que os seus aliados não queriam travar. Numa época em que não tinha ninguém ao lado para perguntar: "Lembre-me por favor a resposta a esta pergunta".

Um filme que também podia ser um sinal dos tempos. Charles Moore admite que pode significar "uma mudança cultural que se sente no ar há algum tempo". "Ajuda-nos a ultrapassar o modelo "Thatcher, a favor ou contra" que dominou os jantares ingleses nos últimos 35 anos. Ajuda a retirar a figura da demonização que alguma esquerda fez dela e transpô-la para a História." Poder-se-ia acrescentar que é um filme que só podia ser feito mais de três décadas depois da sua primeira eleição e quando o mundo que ela ajudou a criar chega ao seu termo. A decadência da velha senhora e o ocaso de uma era. Há cenas nas ruas de Londres que podiam ser actuais.

O fim de uma outra era

A sua chegada ao poder - primeiro à liderança dos Tories, em 1975, depois a Downing Street, em Maio de 1979 - só é possível porque uma outra era, que durou igualmente três décadas, está a aproximar-se do fim. O seu papel é acelerar a mudança.

A Segunda Guerra Mundial mudou tão profundamente a paisagem social e política do Reino Unido que foi Attlee e não Churchill a ganhar as eleições em 1945. A reconstrução de uma economia exangue exigia uma forte intervenção do Estado. A guerra impunha a igualdade social. O fim do império obrigava a uma nova modéstia internacional. Keynes reinava sobre a economia. Os sindicatos tinham o poder de desafiar os governos. Até ao choque petrolífero, à inflação galopante, ao desequilíbrio das contas públicas. O "inverno do descontentamento" (1978-79) com sectores da economia a laborarem apenas quatro dias por semana, os preços a devorarem as poupanças, as greves a paralisarem o país, as ruas cobertas de lixo, os corpos por enterrar nos cemitérios, a falta de carvão para aquecer as casas, anunciavam o fim inexorável de um ciclo político.

O primeiro-ministro conservador Edward Heath (ela é a sua ministra da Educação) convoca eleições em 1974 com o mais extraordinário dos manifestos eleitorais: "Quem manda na Inglaterra? O Governo ou os sindicatos?" Perde-as. Como vai perder as seguintes, convocadas alguns meses depois pelo Labour para tentar reforçar a sua escassa maioria. O Partido Conservador está preparado para a mudança. Thatcher está preparada para oferecer-se essa mudança. Desafia o líder e vence-o. Keynes dá lugar a Hayek. Quer libertar os britânicos do "caminho da servidão". As suas convicções são simples. Forjaram-se numa pequena cidade de província das Midlands, numa família da baixa classe média. O pai é dono de uma mercearia e um político local conservador que lhe ensina as virtudes do trabalho árduo e da responsabilidade individual. "O thatcherismo é uma abordagem pessoal e muito particular da política, mais do que um conjunto coerente de ideias", escreve Peter Riddel, jornalista do "Financial Times", no seu livro "The Thatcher Era". A "filha do merceeiro" (nesta designação está contido todo o desprezo elitista e sexista dos seus correligionários) transforma esta acusação na mais poderosa arma contra Heath e a elite conservadora.

Numa entrevista publicada na altura em que lança a sua candidatura à liderança, Thatcher dá conselhos às donas de casa britânicas sobre como contornar a inflação e os riscos de falta de bens alimentares. "Eu própria comecei a armazenar conservas na despensa." A elite conservadora ridiculariza-a. Ela convida a imprensa a visitar a sua despensa. Ganha a liderança. Ganha as eleições em Maio de 1979. "Qualquer mulher que compreenda os problemas de governar um lar está muito próxima de perceber os problemas de governar um país".

Desregulou a economia. Fez suas as teses monetaristas de Milton Friedman. Privatizou as grandes empresas estatais, incentivando os britânicos a investirem as suas poupanças em acções. Reduziu os impostos sobre o rendimento. Domou os sindicatos e eliminou sectores inteiros da indústria que perdiam competitividade - estaleiros navais, siderurgia, minas de carvão -, deixando atrás de si cidades-fantasma e enormes bolsas de desemprego. Vendeu as casas dos "condados" para fazer de cada britânico um proprietário e atirou para a rua muita gente. Os "homeless" tornaram-se a imagem brutal das suas políticas sociais. "Não existe essa coisa a que se chama sociedade". Tinha aprendido que cada um devia tratar de si. David Cameron, 30 anos depois, teve de garantir aos britânicos que "sim, existe essa coisa a que chamamos sociedade". Aumentou as desigualdades. Não interessa que os ricos fiquem mais ricos se essa é a condição para que os pobres fiquem menos pobres. "Vocês não se importam que os pobres fiquem mais pobres desde que os ricos fiquem menos ricos."

A guerra

Muitas das suas políticas não deram os resultados pretendidos. Outras deram. Uma profunda recessão ameaçava a sua reeleição em 1983. Foi salva em Abril de 1982 pela ideia louca de um general argentino de ocupar as Ilhas Malvinas. Perdidas no extremo Sul do Atlântico, a oito mil quilómetros de distância do Reino Unido, ninguém considerava que merecessem uma guerra. Menos ela. Despachou uma força de 27 mil homens. O Presidente americano tentou convencê-la a suspender os combates e a abrir negociações. "Ela respondeu-me que já tinham sido perdidas demasiadas vidas britânicas para retirar sem uma vitória total". Era uma questão de princípio. A Grã-Bretanha não se curvaria ao facto consumado. "Fracasso - essa possibilidade não existe". Thatcher tinha chegado ao poder também para travar o declínio britânico no mundo. Venceu uma guerra que acabou por derrotar uma ditadura. Foi reeleita em delírio. No seu último discurso nos Comuns, em Novembro de 1990, falando da mais difícil das decisões, disse: "[Nesses momentos] sentimos também o sentido do destino deste país: os séculos de História e de experiência que garantem que, sempre que é preciso defender princípios, sempre que o bem tem de ser preservado e o mal vencido, a Grã-Bretanha ergue-se."

John Major, o seu sucessor, resistiu até ao fim a travar a guerra na Bósnia. Tony Blair não hesitou um segundo em travar a do Kosovo. Nenhum grande líder britânico dispensa a sombra de Churchill. Ambos, Thatcher e Blair, conseguiram projectar a influência de Londres para além do seu estatuto de média potência europeia. Ambos o fizeram através da aliança com os EUA. Nenhum conseguiu resolver o problema europeu. Ajudou Reagan a vencer a guerra fria. "Foi a mais sólida aliança pessoal no mundo ocidental ao longo dos anos 80", escreve Hugo Young, jornalista e biógrafo. Foi a primeira a intuir quem era Gorbatchov. Em 1984 convidou-o a visitá-la em Londres. Acreditou que ele haveria de impedir - por ela - a reunificação alemã. Enganou-se. Foi a Europa que a derrubou e que manteve por tantos anos o seu partido arredado do poder britânico. "A Europa foi o grande fracasso da sua liderança", diz Campbell.

"Somos todos filhos de Thatcher" escreve Andrew Marr, jornalista da BBC. Os 20 anos seguintes à sua queda comprovam-no. Em 1994, Tony Blair fundou o New Labour por causa dela. Teve de tirar o seu partido do "inverno do descontentamento" e de trazê-lo até ao mundo que a líder britânica tinha ajudado a criar. O seu próprio partido teve de esperar por um líder que fosse "neutral" face ao seu legado (Cameron nem sequer tinha chegado a Westminster em 1990) para que os conservadores pudessem regressar ao poder.

Ninguém nos prepara para as primeiras imagens do filme. Conseguimos antecipar a última. Thatcher lava finalmente a sua chávena de chá. A jovem filha do merceeiro de Grantham que fingia não ouvir a mãe chamá-la da cozinha para poder ouvir o seu pai discutir política. O passado e o presente fundem-se numa narrativa em que apenas sobressai um ser humano. O mundo prepara-se para encerrar outra era.

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