Vik Muniz, Bordallo Pinheiro e uma história de cacos

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As obras Mulher Passando Roupa (Ísis)(imagens de lixo), 2008, e Action Photo, a partir de Hans Namuth(imagens de chocolate), 1997, que podem ser vistas até hoje na retrospectiva do CCB Enric Vives-Rubio

A marca de faianças Bordallo Pinheiro desafiou perto de 20 artistas plásticos brasileiros a fazerem peças inspiradas no seu legado, para uma edição limitada. O projecto chama-se Bordallianos do Brasil. Vik Muniz esteve esta semana nas Caldas a criar a sua peça.

Quando chegamos ao Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha, o artista plástico brasileiro Vik Muniz está a explicar, com grande entusiasmo, a Elsa Rebelo, a directora criativa da fábrica Bordallo Pinheiro, a peça que quer fazer. A ideia tem a ver com cacos. Vik gesticula para descrever uma jarra em cacos e um homem que tenta colá-los - mas avisa que no dia seguinte, quando se sentar na fábrica para começar a trabalhar, a ideia já pode ser outra.

As ideias surgem facilmente porque se sente inspirado por tudo o que tem visto. "Aquela planta ali é o quê? Uma camélia? Dá vontade de fazer uma camélia", exclama. Mas provavelmente o que sair deste projecto - Vik Muniz é um dos perto de 20 artistas brasileiros que virão às Caldas da Rainha para fazerem peças inspiradas nas faianças artísticas de Bordallo Pinheiro - terá mesmo a ver com cacos. "Quando penso em cerâmica, penso em cacos. Num processo de criação, há um lado que é emocional. E na minha vida a porcelana está muito ligada à ideia de fragilidade."

Havia aquela louça com florinhas azuis, "grande tesouro da minha mãe", que se partia e ia sendo colada com mil cuidados. E esse gesto de colar os cacos transporta todo um simbolismo - "era como o casamento, a minha mãe sempre colando os cacos, e tudo ficando bem outra vez, mas sempre com marcas". Na casa onde cresceu "havia cristaleiras inteiras de coisas quebradas e coladas". A história de uma vida.

Vik Muniz fala torrencialmente. Elsa Rebelo vai-lhe mostrando as peças do Museu de Cerâmica, e ele tem sempre mais uma história que vem a propósito. E conta-a, rindo. Agora lembrou-se da história de um ceramista do Japão e que um dia fez mil tigelas de arroz que "pôs num fogo imenso, e pá, pá, pá, uma a uma foram quebrando". Quando já só restavam quatro, o ceramista mandou apagar o forno, mas mesmo assim houve três que ainda estalaram. Restou uma, "a mais perfeita taça do mundo". O homem mandou o seu ajudante andar até não poder mais e oferecer a taça ao primeiro homem que encontrasse. Ele ofereceu-a a um camponês, mas este, quando a viu, recusou a oferta - "Isto não é para um lavrador, é para um rei." Se esta é uma taça digna de um rei, até o lavrador tem de saber reconhecer isso, explica Vik.

Continuamos a visita ao museu e parece que o tema dos cacos não pára de se atravessar no caminho: primeiro é a escultura do Milagre das Bilhas de Santo António, com a bilha partida no chão; depois é a história, que Elsa Rebelo conta, da ceramista do século XIX que ficou conhecida como Maria dos Cacos e cujo trabalho está hoje no museu.

A ideia vai-se consolidando. Antes de Vik Muniz - que nos últimos meses teve uma grande retrospectiva no Museu Berardo, em Lisboa -, vieram já outros artistas brasileiros. A iniciativa BB-Bordallianos do Brasil faz parte da estratégia de internacionalização da Bordallo Pinheiro, que, depois de ter desafiado artistas portugueses a inspirar-se neste legado, aposta agora no Brasil. Os artistas brasileiros - Saint Clair Cemin, Barrão, Caetano de Almeida, Tunga, Regina Silveira, Efrain de Almeida, Fábio Carvalho, Frida Baranek, Marcos Chaves, Sérgio Romagnolo, Tonico Auad, Tiago Carneiro da Cunha, Erika Versutti, Estela Sokol e as estilistas Isabel Capeto e Martha Medeiros - vão produzir peças de edição limitada a 250 exemplares (metade para o mercado português e a outra metade para o brasileiro), que serão apresentadas no final de 2012 em duas exposições em Lisboa e São Paulo.

A relação entre Bordallo e o Brasil vem de longe. Vik lembra-se de ver desde sempre "os pratos feitos de couve, ou com sardinhas". Só há uns 15 anos é que percebeu que Bordallo tinha também trabalhos em grande escala - como os animais gigantes que se vêem aqui na fábrica das Caldas. O artista brasileiro, que trabalha em Nova Iorque apesar de viver no Brasil ("não gosto de viver perto do trabalho"), foi, desde o início da carreira, um iconoclasta - basta pensar nas reproduções de clássicos da pintura feitos com chocolate ou doce -, gostando de quebrar barreiras. Não está, por isso, muito longe de Bordallo Pinheiro. "Descobri depois que ele era um grande personagem, bem-humorado, grande contador de histórias, sempre metido em várias coisas. E identifiquei-me logo com ele."

Numa das suas visitas a Portugal, tinha já pensado em vir visitar a fábrica das Caldas, mas não tinha acontecido. Recentemente, no Rio, leu num jornal que vários artistas amigos estavam envolvidos neste projecto. "Perguntei logo: porque é que não me chamaram?" Acontece que tinham querido chamá-lo mas tinha havido um desencontro.Tudo isso está agora ultrapassado, e no meio das mil e uma coisas em que está envolvido, Vik Muniz está empenhado em fazer uma peça inspirada por Bordallo.

O que é engraçado, lembra Elsa, é que há outra história que mete Bordallo, Portugal, o Brasil, e... cacos. É a da célebre Jarra Beethoven, um projecto megalómano de uma jarra com 2,6 metros de altura e detalhes de enorme minúcia, que terminava em anjos a erguer batutas. Não a conseguindo vender em Portugal, em 1899 Bordallo enviou-a de barco para o Rio de Janeiro. Mas também aí, apesar dos inúmeros elogios, não apareceu comprador e o artista acabou por a oferecer ao Governo brasileiro. Hoje está no Museu Nacional de Belas Artes.

Na longa viagem, a jarra, embora não tivesse ficado em cacos, sofreu, inevitavelmente, alguns danos. Mas, tal como no serviço de louça com florinhas azuis da mãe de Vik Muniz, também as cicatrizes da jarra são parte da sua história.

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