É preciso salvar a Casa do Passal
Tribuna Memória de Aristides de Sousa Mendes
"Era realmente meu objectivo salvar toda aquela gente, cuja aflição era indescritível."
Aristides de Sousa Mendes
H oje em dia, providencia-se o culto do esquecimento e o que não pode deixar de ser lembrado despacha-se, muitas vezes, com um discurso evocativo, adequado à efeméride, em que o elogio superlativo abunda, no desfile rápido de palavras, concluindo-se o festejo com a encenação de uma "romaria" ao lugar de memória, caso exista.
De inúmeras promessas vãs e de muitos discursos se tem alimentado a decadência da Casa do Passal de Aristides de Sousa Mendes, em Cabanas de Viriato, e o certo é que os anos vão passando, o tempo vai esculpindo a destruição, perante o olhar de todos, e continuamos, de certo modo passivos, a ouvir falar e elogiar, e um dia destes a casa ruirá e lamentaremos o sucedido, acusando-nos mutuamente.
Já houve quem viesse de longe, consternado pelo abandono desta casa, cuja história atravessando fronteiras se tornou pertença de toda a Humanidade, e se entregasse generosamente ao trabalho de limpeza e de reparação do telhado, tendo interrompido provisoriamente o evoluir da degradação do Passal. Aconteceu em 2004, com João Crisóstomo (emigrante nos EUA) e António Rodrigues, os quais, juntamente com outras pessoas, empresas locais e o Centro Social Prof.ª Elisa Barros Silva, testemunharam, como escreveu João Crisóstomo, "a cena dantesca e apavorante de barrotes ameaçadores, dependurados do telhado ao rés-do-chão, de camadas de terra, de telhas partidas, caliça, pedras, tijolos e dejectos de animais cobrindo o chão, onde se encontravam dispersas várias cartas, umas de Aristides de Sousa Mendes dirigidas a sua esposa Angelina, outras escritas entre os próprios filhos, a par de outros documentos que, neste caos de imundície, foram salvos e entregues ao dr. Luís Fidalgo", que presidia ao centro acima referido, e que posteriormente entregou essa documentação à Fundação Aristides de Sousa Mendes.
Num gesto também solidário com esta causa, o Gecorpa-Grémio do Património promoveu e custeou "a realização e aprovação dos projectos das intervenções urgentes - cobertura provisória e trabalhos de consolidação provisória - necessários para evitar a derrocada do edifício". E foi ainda o seu presidente, eng. Vítor Cóias, que, numa imagem assaz sugestiva, me referiu há dias que a Casa do Passal é como alguém que se encontra gravemente doente e cuja cura exige uma primeira intervenção que estabilize minimamente o organismo. Nesse sentido, considera de uma irresponsabilidade imperdoável o "protelar das obras provisórias, urgentemente necessárias", acrescentando ainda que "o custo dos trabalhos é da ordem dos 150 mil euros, verba pouco relevante quando comparada com o custo da intervenção definitiva, que orçará em cerca de 2 a 3 milhões de euros". Com efeito, "uma intervenção definitiva é precedida por um conjunto de fases, a começar pela selecção de uma equipa tecnicamente competente para lançar e dirigir o processo, a definição de uma estratégia de valorização do monumento, a escolha de uma utilização financeiramente sustentável, a selecção de uma equipa projectista, envolvendo depois a elaboração de um projecto geral, a elaboração de projectos de especialidades, a mobilização dos necessários recursos financeiros, o lançamento do concurso, a selecção da empresa executante. Tudo isto consome tempo, um ou dois anos, o que não é compatível com o estado de derrocada iminente do edifício". É também certo que só com um trabalho de qualidade, tanto mais que se trata de um Património Nacional, conseguiremos juntar as verbas suficientes, essencialmente vindas do estrangeiro.
A boa notícia que agora podemos divulgar começa assim: "A Sousa Mendes Foundation (SMF) está pronta a disponibilizar meios para participar financeiramente, em parceria com a Fundação Aristides de Sousa Mendes, proprietária da Casa do Passal, e com a Câmara Municipal de Carregal do Sal, na restauração da antiga casa que não só albergou a família Sousa Mendes como alojou refugiados que procuravam a sua liberdade. O conselho de administração da SMF é composto por netos de Aristides de Sousa Mendes, refugiados, filhos e netos de refugiados salvos pelo cônsul e por apoiantes da causa, que, unidos, acreditam que acções valem mais que palavras.
Os Estados Unidos estão ligados à história de Aristides de Sousa Mendes: foi cônsul-geral de Portugal em São Francisco, Califórnia, entre 1921 e 1924; os seus nono e décimo filhos, Carlos e Sebastião, lá nasceram e depois vieram a alistar-se no Exército norte-americano durante a II Guerra Mundial; sem apoio em Portugal, para lá emigraram os seus filhos Carlos, Sebastião, Joana, Teresinha, José e João Paulo. Foi também através das acções dos seus filhos e outros apoiantes residentes nos EUA que o cônsul injustiçado foi reconhecido pelo Estado de Israel em 1966 como "Justo entre as Nações" e finalmente pelas entidades portuguesas em 1987. Uma grande parte dos refugiados salvos pelo cônsul português emigrou para os EUA e muitos só agora estão a ter conhecimento do homem que lhes salvou a vida. Recentemente, a SMF lançou um projecto da criação de uma base de dados para identificar os detentores de vistos atribuídos por Sousa Mendes." (Miguel Valle Ávila, presidente da SMF)
A 5 de Novembro de 2011, publicou este jornal o texto Em defesa da Casa do Passal , subscrito por um grupo significativo de pessoas, a que se juntaram posteriormente os nomes de Anselmo Borges, José Gil, Hélia Correia, Esther Mucznik e João Mário Mascarenhas. Agora que somos testemunhas de que o major Álvaro de Sousa Mendes, presidente da sociedade anónima que detém a Casa do Passal e que é pertença da Fundação ASM, autoriza o início das obras, a que se junta a Câmara Municipal de Carregal do Sal, cujo presidente e vice-presidente têm vindo a defender esta causa, e que a verba necessária está garantida, não se criem mais razões para adiar as obras preparatórias dos trabalhos de recuperação, que impedirão a casa de ruir.
Se o cônsul Aristides de Sousa Mendes tivesse adiado a sua consciência, não teria sido punido nem humilhado, a sua família não teria sido obrigada a dispersar-se, ter-se-ia interrompido a vida de milhares de pessoas que receberam o seu visto, e cujos descendentes estão entre nós, e eu não teria escrito este texto.