De pés na terra e o teatro como céu
Uma vez mais a Comédias do Minho atravessa a região para levar teatro às populações. Sem concessões nem receios, sem excepções nem cedências. Esta semana em Valença
A estrada para Castro Laboreiro parece ter um só sentido. Não há carros que cruzem o nosso, nem parece haver alternativa a este caminho. Para trás vão ficando as freguesias de Lamas de Mouro, Pomares, Cubalhão. Sente-se o frio a entrar pelo sistema de ventilação do carro. De fora, nenhum ruído. E as pessoas que se vêem escondem-se no interior das casas, protegem-se e retiram da soleira das portas o mel que tinham à venda. É já fim da tarde, em Guimarães começaram os discursos que vão falar de que a cultura não tem preço e de que é o indivíduo que a faz. No Centro Cívico de Castro Laboreiro, ao lado do cemitério onde só as flores de plástico resistem ao frio, a equipa da companhia Comédias do Minho já começou a montar o cenário deInverno, a peça que desde 7 de Dezembro têm vindo a apresentar pelos cinco concelhos do Alto Minho, Valença, Monção, Melgaço, Vila Nova de Cerveira e Paredes de Coura. Hoje é dia de teatro na discreta vila, perdida no meio da serra, já só pedras e quase a tocar no céu.Inverno, que o encenador Nuno Cardoso trabalhou com a companhia de teatro que há nove anos anda a percorrer estradas como estas, faz parte de uma lista de outros espectáculos que levaram ao Alto Minho nomes como Pedro Penim, Sílvia Real, Madalena Vitorino, João Pedro Vaz e Igor Gandra, misturando o teatro, a dança, os objectos e a densa relação com a comunidade.
Foi assim que em 2006 Isabel Alves Costa (1946-2009), Pierre Voltz (1933-2011) e Miguel Honrado quiseram que fosse, partindo do desejo dos cinco municípios em dotarem a região de um projecto teatral profissional que conciliasse a programação, a relação directa com as forças que já actuavam no terreno e a formação. Foi assim que se reconfigurou um dos projectos mais raros em Portugal e que, ao arrepio de todas as lógicas e teorias sobre a descentralização, a formação de públicos, a acessibilidade dos discursos artísticos, as pressões políticas e a cultura como adorno, vingaram num terreno há muito votado a um papel secundário no que à profissionalização do teatro diz respeito.
Depois da morte de Isabel Alves Costa, foi ao encenador João Pedro Vaz - que conheceu a companhia comAuto da Paixãona Páscoa de 2007 e em 2011 encenouO Fidalgo Aprendiz, co-produção com o Teatro Nacional D. Maria II - que coube a tarefa de conduzir este projecto que, no ano passado, foi distinguido com um prémio Novo Norte "pela sua singularidade criativa, a sua ligação ao território e às populações e as dinâmicas sociais económicas locais".
2012 vai ser ano de consolidação do trabalho até agora realizado. E ano de aposta no desenvolvimento das valências da própria companhia, com uma concentração no elenco de cinco actores, todos eles formados em diferentes escolas do país, dos projectos que os levarão a seguir até à rota do Alvarinho (O Esmagador de Uvas, sob direcção de John Mowat, já a partir de 29 de Março e até Maio, e depois de Junho a Outubro nos lagares). E à encenação de rituais tradicionais nos diferentes concelhos como as queimas de Judas e as lendas de Deu-la-Deu, juntando as populações... E à segunda edição do Fitavale, um festival de teatro amador que ninguém acreditava que ia funcionar mas que pôs jovens dos diferentes concelhos a circularem e a trabalharem em conjunto, e a projectos de dança, de formação, de co-produções com outras companhias, como esteInvernocom o Ao Cabo Teatro. Sempre ali, naquele território. O que é característico num projecto como o das Comédias do Minho é a noção clara de pertença a um território, por desejo das populações e não por qualquer intenção programática. Foi isso que atraiu investidores privados como a Vento Minho, que há sete anos é mecenas da companhia. É isso que atrai as câmaras municipais e, em ano de difícil conjuntura, lhes segura o orçamento. E o público, 13.500 espectadores em 2011.
Todas as semanas, quatro dias por semana, a equipa sai da sede, em Paredes de Coura, e atravessa a região, todos os dias para um sítio diferente, onde montam e desmontam o cenário, oferecendo o espectáculo e ouvindo pedidos de regresso. Nessa noite, em Castro Laboreiro,Invernoultrapassará os mil espectadores. A entrada é livre, é certo, mas nem isso garante salas cheias. Duas noites antes, um velório tinha "roubado" as atenções da população de Melgaço. É terra de tradições, de proximidade. No dia a seguir eram 200 na reduzida galeria de exposição da Casa do Povo. Em Castro Laboreiro terão sido 50. Depois houve baile. Às vezes há uma ceia oferecida pelas populações, mesmo que uns achem que são "coisas esquisitas" aquelas que a companhia faz. É tudo parte do espectáculo. É tudo em jeito de agradecimento. E é por isso que percorrer as estradas do Alto Minho nos carros da companhia é saber que vai ser preciso parar em Monção para comer a lampreia à bordalesa da Dona Maria das Dores, na Tasquinha do Orlando, seu marido, golpeada e sangrada sem piedade e preparada à bordalesa, os lábios marcados pelo sangue e o vinho. Depois licor de café e de ervas mais o leite creme, batido e queimado à nossa frente porque é assim que se trata quem vem por bem.