Abaporou, o homem que come gente
Das influências europeias, Stanislavski, Artaud, Brecht, aos modernistas brasileiros, com Oswald de Andrade à cabeça e os índios à perna, Zé Celso comeu e deixou-se comer. Serve agora os gregos numa bandeja aos portugueses. Jorge Louraço Figueira
Esta semana chega a Lisboa um dos principais encenadores do teatro de língua portuguesa - e da língua tupi. Zé Celso criou alguns dos mais importantes espectáculos de teatro do Brasil, é um dos primeiros subscritores do Tropicalismo e o seguidor mais indefectível do Manifesto Antropofágico, escrito por Oswald de Andrade em 1928, ou melhor, no ano 374 da Deglutição do bispo Sardinha.
O encenador regressa ao São Luiz, onde apresentou "Galileu", de Brecht, em 1975, quando se exilou em Portugal com o grupo. Aproveitando a estada na Europa por ocasião da Europália, na Bélgica (o tema é o Brasil), o Oficina vem sem cachet fixo, apenas pelas receitas de bilheteira, revela o encenador no blogue pessoal. Este milénio, e já como Teatro Oficina Uzyna Uzona, o espectáculo é "As Bacantes", celebrizado pelo dia em que Caetano Veloso foi despido e quase comido vivo pelo elenco. Na versão actual, as bacantes até cantam o fatídico sucesso mundial "Ai se eu te pego". O espectáculo poderá ser acompanhado em directo, pela internet, em http://teatroficina.uol.com.br/aovivo.
O Teatro Oficina comeu Stanislavski e Brecht antes da refeição principal, Oswald de Andrade, com a peça "O Rei da Vela", em 1967. "Tupi, or not tupi that is the question", dizia o Manifesto Antropofágico. Como Zé Celso não se cansa de repetir, o primeiro acto de antropofagia cultural, que funda a identidade brasileira, foi o manjar do bispo Sardinha pelos índios Caetê. A refeição e devoção continua até hoje. A última criação do Oficina chamou-se "Macumba Antropófaga". Ao sincretismo religioso Zé Celso foi buscar mitos e ritos para a preparação de performances e a criação de significados. Artaud também baixou no terreiro do Oficina.
Quando o Teatro Oficina foi fundado, em 1958, em São Paulo, por um grupo de estudantes de direito, José Celso Martinez Corrêa usava fato e gravata. Hoje, está nu. Para Marco António Rodrigues, um dos mais premiados encenadores de São Paulo, "o Zé recria e transforma tudo num grande ritual profano. Ele encarna esse ideário antropofágico de Tarsila e Oswald de Andrade. Ele é o próprio Abaporu. ["O homem que come gente", em tupi, quadro de Tarsila do Amaral que inspirou Oswald de Andrade.]" Marco Antonio sublinha a importância da abertura de caminhos feita por Zé Celso: "Ele criou uma estética, com essa carnavalização e absoluta licenciosidade. A antropofagia mudou o teatro brasileiro, fazendo então o que hoje se chama de pós-dramático. Ele abriu uma avenida no palco, abriu todas as possibilidades para a cena."
Carol Mendonça, umas das seleccionadas do programa de jovens encenadores do Teatro da Vertigem, completa a ideia: a antropofagia, "antes de vir do Oswald, vem dos índios brasileiros, e quando Oswald a retoma na "Semana de 22", que para o Zé Celso é quase como um momento de fundação da cultura brasileira, propõe também um retorno ao primitivo, ao ritual." A sexualização da actuação teatral é uma das marcas do Oficina. O seu teatro ataca um dos principais tabus do cristianismo, o sexo, ao mesmo tempo que leva à letra uma das suas principais metáforas, comer o corpo. "É uma outra moral, continua Carol Mendonça, e principalmente uma outra relação com o corpo. O corpo do índio é um corpo sem roupa, e isso obviamente estabelece outra relação com a nudez, com o corpo do outro, enfim... e mesmo a relação do público com os artistas no teatro do Zé é mais ritualista do que de contemplação."
Como em boa parte da arte moderna, o criador apresenta-se como o sacerdote de um ritual herético, que busca a transcendência por métodos pouco ortodoxos, escrevendo e encenando em forma de manifesto. Para Claudia Schapira, directora do Bartolomeu, essa é a maior influência sobre o seu trabalho, "a arte como sacerdócio, como único caminho! Acreditar, à revelia do mundo, naquilo que me move, acreditar na minha própria fome, nas ideias que me tiram o sono e que me fazem criar, que são o ar que respiro. Ser um criador não por tarefa, mas por necessidade absoluta de manifestar uma inconformidade da alma que se desdobre em poesia cénica!". Ivam Cabral, um dos directores dos Satyros (com passagem por Portugal nos anos 90), acrescenta que a estética de Zé Celso "traz para a cena o dionisíaco, nos ensina o ritual e devolve a nossa crença ao teatro. O Teatro Oficina é, antes de tudo, um lugar de culto, de amor incondicional ao teatro."
Arte e política
Em 1968, Zé Celso dirigia "Roda Viva", de Chico Buarque, no Rio de Janeiro. Era uma montagem agressiva, com os actores a interpelarem violentamente a plateia. Na temporada paulista, uma milícia de direita, o Comando de Caça aos Comunistas, agrediu o elenco e destruiu parte do cenário. Na resposta, vieram duas peças de Brecht, cujos coros eróticos foram as sementes do trabalho dos anos seguintes, em que o Teatro Oficina se tornaria uma comunidade e Zé Celso o seu líder carismático, percorrendo o Brasil.Em meados de 70 começou o exílio de Zé Celso, que só terminaria em meados dos anos 80, mesmo depois do regresso ao Brasil. Durante essa travessia no deserto, manteve-se fiel à sua visão artística, estudando peças que realizaria depois, insistindo na criação de uma obra original que explodiria nos anos 90. Claudia Schapira lembra-se do Zé Celso nessa época: "Naquele tempo, ele estava tentando tombar [classificar] o Oficina, retomar o grupo, mas parecia estar invisível. Os comentários eram de que ele "estava anacrônico" e que o seu tempo acabara. Que nada! O que mais me surpreendia da sua figura, era a incansável persistência e a crença inabalável na própria obra. Já vi o Zé fazer apresentações de ensaios de quatro horas, para duas pessoas, com a mesma força que para uma casa lotada."
Para Ivam Cabral, dos Satyros, grupo que começou por ocupar a praça Roosevelt até esta se transformar no foco do teatro independente de São Paulo, "o Zé Celso não só influenciou toda a cena contemporânea como nos deu um "modus operandi". É dele a ideia dos colectivos que se formaram a partir do final dos anos oitenta em São Paulo". Os Satyros viram no trabalho de Zé Celso "uma possibilidade. Em 1989, não tínhamos nenhuma forma de incentivo ao teatro. Quer dizer, ao teatro que nos interessava. Havia a ideia das grandes produções com atores que vinham da televisão, os famosos "cabeça de cartaz". É o Zé que nos ensina que é possível vivermos em colectivo, contar nossas próprias histórias."
Em 1993, Ham-let reinaugura o Teatro Oficina, fechado desde 1974. O novo espaço é pensado como uma rua que pudesse ser atravessada, e paredes envidraçadas de onde se visse o exterior. O problema é que os terrenos confinantes são propriedade do magnata Sílvio Santos, que anos a fio tentou construir um centro comercial na área circundante. Diz Marco António Rodrigues que uma dos qualidades de Zé Celso é a determinação: "O Zé uma referência também no que diz respeito à consistência política. Ele venceu o Sílvio Santos, o que não é pouca coisa. Tem uma resistência tão atávica, tão obsessiva, que é como um David que derrotou Golias. Nisso também é uma luz para a gente." A partir de então, o grupo pôde fazer uma experiência cada vez mais radical, no centro do São Paulo, de envolvimento com a população da área, incluindo meninos de rua. Ivam Cabral declara os Satyros "filhotes confessos do Teatro Oficina. Súbditos e admiradores incondicionais."
As Bacantes
Para Carol Mendonça "são muito marcantes montagens como "As Bacantes" e o Hamlet. Eu as vi muito novas, estava começando a estudar teatro. Acho até que foi a primeira vez que eu vi uma montagem de Hamlet, e a maneira como o Zé lidava com o texto "clássico" era quase uma profanação, inserindo muitos temas que era importantes naquele momento, no cenário político e cultural brasileiro, e mesmo a relação do próprio Teatro Oficina que estava com problemas em relação ao terreno. Toda vez que entro no Teatro Oficina, consigo lembrar de momentos que vivi lá.""As Bacantes" condensa a arte de Zé Celso, ao concentrar os processos de criação experimentados durante quatro décadas. Ao texto original da tragédia grega, o encenador agregou falas, gestos, sons e imagens relativos ao estado da nação brasileira. Juntou ainda referências autobiográficas e ao contexto do grupo. E tudo isto é banhado por um misticismo e lucidez desarmantes. Claudia Schapira, que no Bartolomeu cruza o teatro com o hip-hop, identifica práticas comuns: "Falar de qualquer tempo trazendo para o tempo que nos toca viver aquele passado remoto, actualizando as proposições, encontrando ecos no presente. O gosto pela acção colectiva, pelos coros, pela dramaturgia musical, pela ironia, pelo distanciamento, pela interferência nos clássicos, o rito..."
Porém, para alguns, como Pedro Mantovani, outro jovem encenador, "a concepção de teatro de Zé Celso não mudou muito desde os anos setenta, começo de oitenta. É o resultado das experiências teatrais dos anos setenta e sessenta." Marco Antonio Rodrigues confirma, mas vê nisso uma coisa boa: "Sem ele, o teatro brasileiro seria muito mais careta. O Zé continua a revolução de costumes de 1968, corre muitos riscos, trabalha sempre no limite. O seu trabalho está na carne, porque ele percebeu que qualquer transformação tem de partir da subjectividade." Carol Mendonça, a mais nova deste conjunto de criadores, conclui: "Eu acho o meu trabalho bastante distinto do trabalho do Zé, mas de alguma maneira meu trabalho só é possível hoje em São Paulo porque o Zé Celso ampliou muito a maneira de se pensar espaço teatral, dramaturgia, interpretação, relação com o espectador, e principalmente, ele criou uma maneira muito brasileira de fazer teatro, ao transformar a antropofagia da "Semana de 22" não só em tema mas em linguagem."
Das influências europeias, Stanislavski, Artaud, Brecht, aos modernistas brasileiros, com Oswald de Andrade à cabeça e os índios à perna, Zé Celso comeu e deixou-se comer. Serve agora os gregos numa bandeja aos portugueses. Quem come quem?