Revisitar o neo-realismono centenário de Redol
Um congresso internacional a começar hoje para voltar a ler Alves Redol
As comemorações do centenário de nascimento de Alves Redol (1911-1969) culminam esta semana com a realização de um congresso internacional, que se inicia hoje na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e prossegue, amanhã e depois, no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, terra natal do autor de
Gaibéus
e
Barranco de Cegos
.
António Pedro Pita, director do Museu do Neo-Realismo, Paula Morão, Manuel Gusmão, Maria Alzira Seixas ou Carlos Reis - o ensaísta abre esta manhã os trabalhos com a comunicação
Alves Redol e a poética do romance: encruzilhadas e derivas ideológicas
- são alguns dos intervenientes neste encontro, que constitui uma oportunidade para se revisitar quer a obra do autor, quer o movimento neo-realista em que se inseriu. E é cada vez mais claro que o neo-realismo, visto durante décadas como uma espécie de braço literário e artístico do PCP, foi um fenómeno suficientemente complexo e diversificado para que se justifique um esforço de releitura. Daí que António Pedro Pita, lembrando que tivemos já o centenário de Soeiro Pereira Gomes em 2009, e que irão seguir-se, nos próximos anos, os de vários outros autores ligados ao movimento - como Joaquim Namorado (1914-1986), João José Cochofel (1919-1982) ou Carlos de Oliveira (1921-1981), para citar apenas alguns -, considere que este "ciclo dos centenários" é um momento propício para se reavaliar o neo-realismo, que tem tendido, como talvez nenhum outro movimento literário do século XX, a ser defendido ou rejeitado em bloco.
Um documentário humano
Embora as investigações académicas mais recentes se venham interessando, sobretudo, por analisar o movimento "do ponto de vista da história da cultura e das ideias", diz Pita, também "a heterogeneidade congénita" do neo-realismo enquanto realidade literária mereceria estudo aprofundado.
O caso de Alves Redol é, de resto, um bom exemplo das contradições internas do movimento. Filho de um comerciante, que consegue pô-lo a estudar em Lisboa, onde conclui o Curso Comercial, Redol mostra um interesse precoce pela escrita, tendo publicado o seu primeiro artigo na imprensa ribatejana aos 15 anos. Numa Europa que assiste à ascensão do fascismo e que desembocará na Segunda Guerra, o autor adere à ideia de uma arte comprometida com a realidade, que retrate a exploração de classe. É o que fará em
Gaibéus
, tido como o livro que lançou o neo-realismo na ficção portuguesa. "Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte", escreve Redol nessa primeira edição de 1939. "Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo."
Esta declaração, conjugada com outras tomadas de posição assumidas pelo autor nos anos 30, apontam para "uma ficção de grau mínimo, rebatida sobre a etnografia, sendo esta vista como uma espécie de documento ou testemunho", reconhece Pita, mas alertando para o facto de Redol ter submetido a maior parte dos seus livros a "profundas alterações", que vêm problematizar a imagem que dá de si próprio enquanto escritor.
A esta evolução, sugere, não será alheia a relação de Redol com a crítica, e em particular com críticos com os quais partilhava cumplicidades ideológicas, como Mário Dionísio ou Óscar Lopes, que censuraram duramente a fragilidade estética destas suas primeiras obras. E Pita acredita que o convicto compromisso pessoal de Redol com o PCP, de que se tornou militante nos anos 40, não impede que "o seu projecto de vida tenha sido, desde o início, o de chegar à escrita, no sentido profundo do termo, o de chegar a literatura". É razoavelmente unânime o reconhecimento de que acabou por lá chegar, se não antes, pelo menos com
Barranco de Cegos
, publicado em 1961, a oito anos da sua morte. Esta história de uma família de grandes proprietários ribatejanos - que por uma vez roubam o protaganismo, na obra de Alves Redol, à massa dos explorados - é, reconhecidamente, um dos mais relevantes romances portugueses da sua época.