António Cunha e o paraíso da dança em Portugal

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DJ Jiggy no Clube Rocks LEON NEAL/AFP

Durante os anos 90, Portugal era o paraíso da música de dança, atravessado de norte a sul por inúmeras festas em discotecas ou em castelos. Enquanto promotor, fundador da editora

Kaos e DJ,

António Cunha foi um dos principais responsáveis por esses acontecimentos, revelando uma consciência empresarial até aí ausente da "cultura DJ". Morreu no sábado.

Um DJ entra num espaço nocturno onde, dentro de minutos, subirá à cabina. Olha à sua volta, inteira-se do ambiente, distribui sorrisos a quem o vai reconhecendo, mas há qualquer coisa nele que já não está ali.


Age como o pugilista que se exercita no balneário antes de entrar no ringue. O treinador grita-lhe os últimos conselhos, ele ouve-o, mas fá-lo de forma mecânica, focado no combate, antecipando-o mentalmente. Quando der o primeiro soco, saberá exactamente onde. É como pôr o primeiro disco. É muito importante. Define a atmosfera. Corta com o que se ouviu até ali. A analogia entre o DJ antes de entrar em acção e o pugilista antes de subir ao ringue não é minha. É do António Cunha, pioneiro da música de dança em Portugal, responsável pela editora Kaos, que morreu no último sábado, de cancro, aos 49 anos. Foi-me narrada por ele numa noite de conversa sobre o que é isso, afinal, de ser-se DJ?
Ele percebia do assunto. Foi DJ parte da vida. Na discoteca States, em Coimbra, e depois em festas pelo país fora, algumas delas por ele organizadas. Assistiu à transição do papel do DJ, da absoluta indiferença do público, até ao extremo oposto, como se fosse uma estrela rock. Mas mais do que como DJ, haverá de ser recordado como promotor e editor, como alguém apaixonado por música, e pela cultura que a envolve, abrindo novos caminhos para outros, com essa forma devota de estar. Foi das primeiras pessoas em Portugal a revelarem uma consciência empresarial sobre a "cultura DJ", olhando sempre para a sua actividade numa perspectiva global, ao mesmo tempo que percebeu que a sua acção só poderia vingar se emergisse uma pequena indústria composta por DJ, produtores, promotores, clubes, empresas, agências ou publicações. A génese da sua acção tem de ser contextualizada no âmbito das movimentações acid-house, iniciadas em Inglaterra no final dos anos 80. Se o punk havia sido fúria e provocação, o acid-house assentava na ideia de comunidade e no hedonismo. Os filhos da geração de 68 haviam aprendido com as ilusões dos pais. Já não queriam protestar por ideias vagas de futuro, mas realizar a sua ideia de felicidade no presente, nem que para isso tivessem de realizar festas em espaços ilegais na época áurea das

raves

.De repente, a Inglaterra e, por extensão, a Europa adoptavam os ritmos house e procuravam novas formas de os vivenciar. Foi tudo tão desmesurado que só podia acabar rapidamente. Em 1992, o poder político inglês fazia passar a ideia que existiria uma correlação directa entre o consumo de substâncias aditivas e músicas de dança, calando quase por inteiro o movimento que, a partir daí, iria ter maior impacto no resto da Europa. Foi o que aconteceu em Portugal.

Em 1991, surgiram algumas festas embrionárias que captavam um pouco desse espírito

rave

, apesar de, na sua essência, serem muito diferentes daquilo que se passava em Inglaterra. Um velho armazém, em Lisboa, na zona oriental da cidade, em Xabregas, foi um desses primeiros locais. Para muitos que só ouviam rock, a descoberta da dança começava aí: não ter medo da reinação, de dar nas vistas, numa disposição confiante. No final dos anos 80, Cunha era um dos DJ residentes da discoteca States. Passava essencialmente música pós-punk, mas reservava um espaço para passar a nova música que dava que falar na Europa, o acid-house. É na alvorada dos anos 90, nas deslocações a Lisboa, à discoteca Bimotor dos Restauradores, onde comprava os discos de vinil, que acaba por conhecer Tó Pereira (DJ Vibe) e Doctor J (Rui da Silva).

Vibe já era o DJ português mais conhecido. Havia feito parte dos LX-90 e ia marcando espaços de Lisboa, na qualidade de DJ, como o Plateau, o Alcântara-Mar e, com grande destaque, o Kremlin, ao longo dos anos 90. Rui da Silva, depois de alguns anos a trabalhar como engenheiro de som na rádio TSF, dedicava-se agora por inteiro à produção musical na companhia de DJ Vibe, formando os Underground Sound Of Lisbon. Na companhia de Cunha lançariam a Kaos em 1992, naquela que acabaria por ser a primeira editora portuguesa vocacionada para a música de dança electrónica.

Em 1993, no Convento de São Francisco de Assis, em Coimbra e, alguns meses mais tarde, no castelo de Montemor-o-Velho, organizam as primeiras grandes festas em Portugal com pioneiros do tecno, como Derrick May, e do house, como Tony Humphries. Nessa altura, Cunha emerge de imediato como o grande empreendedor desse tipo de eventos, acabando por organizá-los com periodicidade ao longo dos anos seguintes. Ao contrário do que sucedia no Reino Unido, onde este tipo de festas havia passado à história, em Portugal, a meio dos anos 90, vivia-se um momento de esplendor. Contrariando a lógica clandestina, as

rave

s lusas eram acontecimentos mediáticos, com publicidade e até alguma institucionalização, com apoios comerciais e incentivos de entidades oficiais, que vislumbravam o fenómeno como alternativa turística.Essa forma de ver foi, em grande parte, uma ideia de Cunha. O alcance internacional também. Desde o primeiro momento que estabelece contactos em rede, em particular com Inglaterra, promovendo intercâmbios e edições internacionais, ao mesmo tempo que ia despertando um interesse inusitado sobre o que se passava aqui. A revista inglesa

The Face

, então a bíblia mundial da cultura pop, faz um artigo sobre as festas portuguesas, realçando o seu carácter institucional. E mais tarde outra revista inglesa,

Muzik

, a publicação de música de dança mais influente dos anos 90, faz um longo artigo de capa sobre o país, destacando as noites lisboetas de DJ Vibe no Kremlin e as festas da Kaos.

O título de capa era

A New Paradise Called Portugal

, numa alusão ao facto de Portugal ter condições para se posicionar como alternativa a Ibiza, o destino preferencial dos entusiastas internacionais pela música de dança. Todo este interesse havia sido desencadeado também pelas edições discográficas da Kaos, em particular o EP de 1993

Chapter One

dos Underground Sound Of Lisbon, do qual se destacava o tema

So get up

(com a voz do americano Darin Pappas dos Ithaka). Algum tempo mais tarde, o disco haveria de chegar às mãos do credenciado DJ nova-iorquino Júnior Vasquez, sendo relançado no mercado internacional pela editora americana Tribal, originando remisturas de Vasquez e Danny Tenaglia. Num curto espaço de tempo, os Underground Sound Of Lisbon sobem aos

top

de dança dos dois lados do Atlântico. É um momento de afirmação do cenário português. Há um naipe de DJ reconhecidos (Vibe, Tó Ricciardi, Rui Vargas, Luís Leite, DJ Jiggy, Mário Roque, XL Garcia), há projectos (Urban Dreams, Kult Of Krameria, Paul Jays, Alex Fx, J. Daniel), empresas (Kaos, X-Club), há editoras como a Kaos, a Warning Inc, a Question Of Time ou a Squeeze, e existem figuras, como DJ Vibe ou Rui da Silva - que mais tarde haveria de chegar ao 1º lugar do

top

inglês de

singles

- que almejam uma carreira internacional. Ou seja, há uma verdadeira indústria à volta da música de dança, com os mais populares DJ do tecno e house (Jeff Mills, Plastikman, Carl Cox, Roger Sanchez, Laurent Garnier, Deep Dish, Masters At Work) a serem presenças assíduas em Portugal. De norte a sul do país, em espaços nocturnos (Pacha de Ofir, Vaticano de Barcelos, Kadoc de Vilamoura ou Locomia de Albufeira) ou em locais invulgares, como castelos e armazéns.E depois havia também o Rocks, em Vila Nova de Gaia, e o Alcatraz, em Cantanhede. Ao leme dos dois lugares esteve o Cunha. O primeiro acabou por fazer história durante a segunda metade dos anos 90. Foi ali, por exemplo, em 1995, que os Underworld deram o primeiro concerto em Portugal. Todos os fins-de-semana, era local de peregrinação, com pessoas de todo o país a deixarem suor até de madrugada nas suas caves. Mas nem tudo era perfeito. Como em todas as indústrias emergentes, havia rivalidades e dores de crescimento. No caso das festas da Kaos, era comum a acusação de apostarem na vertente mais funcional da dança. É verdade, mas também é certo que foi através de Cunha que se viu pela primeira vez Kruder & Dorfmeister, Fila Brazilia, Herbert, DJ Harvey ou Idjut Boys. Acima de tudo, foi uma época excessiva. A música é, de todas as artes, a que convida a uma maior transcendência. O som é energia. Mantê-la durante muito tempo não é fácil. Na última década, quando o fenómeno se estabeleceu e disseminou, António Cunha continuou a manter a sua actividade, promovendo eventos, em especial no Algarve, e continuando activo com a editora Kaos, mas inevitavelmente com menor visibilidade. Mas nunca prescindiu de estudar os movimentos da multidão na pista. Era vê-lo a olhá-la fixamente. Muitas vezes, no final de uma sessão de um DJ, dirigia-se a ele, agradecendo-lhe a sua prestação, mas afinal era o DJ que o admirava, agradecendo-lhe a ele. Quando assim é, missão cumprida.

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