Este é o corpo de Mark E. Smith

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São admirados por Sonic Youth; Pavement; LCD Soundsystem; David Bowie; David Byrne ou New Order - quase todos desdenhados por Mark E. Smith como copistas

Festival de Arcos de Valdevez, 8 de Agosto de 2000. Dois jornalistas portugueses preparam-se para almoçar. Tinham chegado na noite anterior ao início do festival e este arrancara em grande. Dia 7, os Delta 72 haviam dado um caótico concerto improvisado no quarto de hotel. Paulo Furtado, com os Wray Gunn a dar os primeiros passos, estava a três dias de tentar impressionar membros da organização e do "staff" com um tresloucado número de sapateado sobre o balcão da área reservada a artistas, imprensa e convidados. Havia muito rock'n'roll no festival de Arcos de Valdevez.

Ainda assim, o empregado de mesa daquele restaurante que era também residencial, achava que a linha da mínima boa decência tinha sido ultrapassada. Queixava-se dos ingleses que tinham armado uma confusão dos diabos na noite anterior. "Atiraram a roupa de cama toda pela janela", lamentava, indignado. "E os colchões, os colchões voaram também". E continuaria a desabafar, até chegar ao ponto que, mais que os quartos em desalinho, mais que os colchões atirados janela fora, o deixara fora de si. Depois daquilo tudo, a banda chegara para o pequeno almoço e ele, apesar da vontade de correr tudo à pancada, mantivera a postura profissional. "Então o que vai ser?", perguntara. "Whiskey", respondera um. "Cerveja", dissera outro. Whiskey? Cerveja? Isso é que não. Alguma decência, pedira o empregado de mesa. "Whiskey às oito da manhã?"

A banda de que o empregado não se recordava o nome era a cabeça de cartaz do primeiro dia de festival. Banda mítica: The Fall. Vimo-los em palco. Mark E. Smith à volta dos amplificadores a mudar volumes e equalizações. A desaparecer sabe-se lá onde, enquanto continuávamos a ouvir o seu grunhido enfurecido. A banda a tocar aquele rock'n'roll convulsivo, zangado, minimal: Can e os Monks e os Sonics e tudo junto, tudo sublimado por aquele homem pequeno mas temível chamado Mark E. Smith, nascido a 5 de Março de 1957, ou seja, um ano depois da edição de "A Queda", a obra de Albert Camus que baptizaria o grupo que se confunde com ele mesmo.

Mark E. Smith: o homem para quem, desde o final da década de 1970, só existe uma banda que vale a pena a ouvir. A sua. No momento em que acrescentam à sua discografia o álbum número 29, "Ersatz GB", e em que temos a possibilidade de olhar para trás com grande alcance de visão - em 2011 foram lançadas reedições luxuosas de "The Wonderful And Frightening World Of The Fall", de 1984, e de "This Nation's Saving Grace", de 1985, dois dos seus melhores álbuns -, Dave Simpson, jornalista do "Guardian" e autor de "The Fallen", o livro que relata a sua busca pelas quatro dezenas de músicos que já passaram pelos Fall desde a sua formação, em 1976, diz ao Ípsilon que a maior surpresa enquanto o escrevia foi descobrir "quão difícil é ser Mark E. Smith": "Há um preço a pagar para ser aquela pessoa 24 horas por dia, sete dias por semana."

O preço de liderar um grupo cuja música, como descreveu o mítico radialista John Peel, fã número 1 - "são a banda perante a qual todas as outras terão de ser julgadas -, "é sempre diferente e sempre a mesma" e que, por isso, se mostra imune à passagem do tempo. O preço, claro, de ter transformado a sua vida em qualquer coisa indistinguível da banda. "Os Fall são cada fibra do seu ser. Seria tão impossível imaginar uns Fall sem Mark E. Smith como um Mark E. Smith sem os Fall", aponta Dave Simpson.

As pontas soltas

Os The Fall são contemporâneos do punk e partilham o seu gesto provocatório e a vontade de agitar consciências, de devolver ao rock'n'roll o seu fogo primitivo, intocado pela massificação que desvirtua qualquer centelha de contracultura. Mas nasceram, precisamente, porque o punk pareceu a Mark E. Smith uma brincadeira de miúdos. Ele estava lá no famoso concerto dos Sex Pistols na Lesser Free Trade Hall de Manchester, em 1976, em cuja assistência estavam futuros músicos dos Joy Division, Buzzcocks ou dos Smiths. E pensou: "O meu pessoal não é pior que isto. Somos melhores. Só precisamos de um baterista." Os The Fall estavam a caminho.

Filho da classe operária britânica, Mark E. Smith chegou tarde à música. Até aos 14 anos, interessava-lhe o futebol e os livros - continua a seguir atentamente o Manchester City e os livros são o que mais preza ("profissão: escritor", lê-se no seu passaporte). Quando a música chegou, porém, entregou-se-lhe febrilmente. Recordou-o numa entrevista à "Q", em 1990: "Pink Floyd? Porcaria! T. Rex? Lixo! Paul McCartney? Aargh! Black Sabbath,‘Paranoid'? Óptimo. Foi o primeiro single que comprei".

Continuou a partir daí, procurando as pontas soltas da história. O rock'n'roll mais negro, de Bo Diddley aos Velvet; o garage mais ameaçador, dos Sonics aos Monks; o psicadelismo experimental alemão dos Can e a idiossincracia de Captain Beefheart. Sobre tudo isto, o seu gosto por ficção científica, pela literatura do fantástico de HP Lovecraft, pelos cut-ups de William Burroughs, pelo jornalismo gonzo de Hunter S. Thompson. Os The Fall, liderados por este homem sem paciência para músicos - resumiu assim as constantes mudanças de formação da banda: "they came, they saw, they fucked off" -, por este vocalista que não canta, antes grunhe, vocifera, exalta e assusta, são, pegando numa frase cunhada pela The Wire, "o grande som que se agita e reverbera no interior do cérebro de Mark Smith". Cada álbum tem sido, continuamos a citar a The Wire, "uma tentativa de transportar esta confusa transmissão fantasma para o nosso próprio mundo".

A voz de Smith, e a atitude musical de Smith, conduziu ao longo dos anos ao grande cliché aplicado à banda. Que editam, ano após ano, o mesmo disco, apenas com títulos diferentes. E é verdade que a alma desta música se mantém inalterável, mas da tensão minimalista de finais de 1970, ao assomo de melodia, na década de 1980, sobre toda aquela descarga sonora violenta, passando pelos flirts com a electrónica na década de 1990 e, já nesta década, ao regresso ao rock'n'roll mais descarnado, são muitas as nuances que pontuam os seus 36 anos de carreira.

Um pouco como estar

no exército

Para exacerber o mito, temos, claro, Mark E. Smith e a lenda de Mark E. Smith. As bebedeiras monumentais, o tratamento cruel dado aos seus músicos, as explosões ao vivo na televisão, os concertos que acabam com ele a esmurrar e a ser esmurrado pelos companheiros. Uma tensão que, tanto quanto uma incontrolável tendência para o confronto, são a essência dos The Fall. Para Smith, o conforto é inimigo da criação. Em entrevista ao sítio Quietus, enquanto falava das digressões, confessou sentir necessária uma tensão constante.

Isso envolve abandonar teclistas numa estação de serviço, obrigar a banda a ouvir Bob Dylan durante 18 horas seguidas e, depois, exigir que não toquem nada sequer próximo de Dylan, ou multar bateristas em cinco libras cada vez que estes toquem no timbalão. E, envolve também Mark E. Smith ser ele mesmo abandonado por toda a banda - aconteceu em Nova Iorque, em 1998, depois de uma sessão de pancadaria, e repetiu-se em 2005 -, ou ser arrumado com um par de murros pelo baterista a horas de entrar em palco e, depois disso, percorrer camarins em busca de alguém que o possa substituir - aconteceu em Reading, em 1999, e Nick Dewey, manager dos Chemicals Brothers, foi literalmente obrigado a entrar para a longa lista de músicos dos Fall.

Para Dave Simpson, é sintomático que, apesar deste ambiente, os músicos que conviveram com Mark E. Smith mantenham intocada a admiração por "The Boss", como lhe chamam. Com a experiência, ganham "disciplina, clarividência e toda uma nova forma de olhar o mundo": "É um pouco como estar no exército, mas não disparam contra ti (quer dizer, não habitualmente)". Desenvolve: "Os The Fall subsistem nas franjas do ‘mainstream', estão a evoluir constantemente e não soam ou funcionam como nenhum outro grupo. Ouvi-los e pertencer a eles não é certamente fácil, mas as recompensas são consideráveis, mesmo que não saibam exactamente quais no momento".

Não pertencendo aos Fall, sabêmo-lo. Deparamo-nos com uma banda que, como poucas outras, lança um olhar de (su)realismo social sobre o mundo em volta - que é, no caso do nada cosmopolita Mark E. Smith, dele que não gostou de ir ao Brasil, que detesta Nova Iorque e que passa o tempo a gozar com Londres, as suas redondezas de Prestwich, Manchester -, cruzando-o com referências extraídas à baixa e à alta cultura, numa amálgama que funciona como caleidoscópio das mediocridades da cultura de massas. A música, poderosa e repetiviva, empolgante, é o cenário perfeito para Smith viajar, ironizar, atacar. E por isso, álbum após álbum, os The Fall mantêm-se uma instituição protegida da oxidação e aburguesamento que a passagem do tempo traz a tantos. "Sempre diferentes, sempre os mesmos", são admirados por Sonic Youth, Pavement, LCD Soundsystem, David Bowie, David Byrne ou New Order - quase todos desdenhados por Mark E. Smith como copistas.

36 anos depois, os The Fall liderados pelo irascível, inimitável, genial e razoavelmente ébrio Mark E. Smith, o "Hip Priest", o líder da "Psycho Mafia", são uma inspiração e uma protecção. "O perigo não vem da esquerda ou da direita", disse ele em tempos. A ameaça é chegarmos a "uma sociedade estandardizada horrível, liderada por uma porra de um bando de idiotas". Palavra de Mark E. Smith. Que o rock'n'roll o guarde por muitos anos.

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