Avillez abre o Belcanto para continuar a criar memórias

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Os "ovos à professor" foram criados por um médico a altas horas da noite na cozinha do Belcanto. Fazem parte da memória do restaurante que José Avillez reabriu esta semana no Chiado e que apresentou a Alexandra Prado Coelho (texto) e Miguel Manso (fotos). Agora o Belcanto vai ser o reino da alta cozinha com a qual Avillez ganhou uma estrela Michelin no Tavares

Na carta do Belcanto, o novo restaurante de José Avillez, que inaugurou esta semana no Chiado, em Lisboa, junto ao São Carlos, os pratos são apresentados como se se tratasse de peças de arte, acompanhados pela respectiva data de criação - temos o Quente e Frio de Castanhas e Sapateira (2010), a Cavala Marinada e Braseada com confettis de legumes avinagrados e avelã (2011), ou, para quem quiser voltar a uma criação mais antiga, há, por exemplo, A Horta da Galinha dos Ovos de Ouro (2008).

Mas Avillez não gosta de pensar neles como peças de arte - podem sê-lo também, mas têm que ser mais do que isso. "A cozinha conceptual chegou a um ponto em que há muitos cozinheiros que defendem que pode não ser boa, que o importante é que transmita alguma coisa, como um quadro que mesmo sendo feio transmite algo. Eu não sou dessa opinião. Tal como um arquitecto faz casas para as pessoas viverem lá dentro, nós cozinhamos para as pessoas comerem, e um dos meus papéis principais é dar prazer a quem se senta às nossas mesas." Conceptualização, sim, "mas com algum critério".

Avillez está sentado num cadeirão no Belcanto. Tudo cheira a novo no restaurante que até há uns anos era sobretudo um clube de cavalheiros e local de encontro de figuras da alta sociedade lisboeta e de frequentadores do São Carlos. O chef não era um dos clientes mas almoçou ali algumas vezes, no tempo em que o padrinho, Luís Bénard da Costa, era um dos sócios - numa das várias vidas do Belcanto, fundado em 1958 por Jaime Gonzalez, vindo na altura do Gambrinus.

Rosalina Machado, a antiga directora da agência publicitária Ogilvy, foi a última proprietária antes de Avillez. Agora, ao assumir a direcção da casa, o chef sente toda a responsabilidade pela memória que está a herdar - e que passa por histórias como a do cirurgião que uma noite, depois de operar no vizinho Hospital da Ordem Terceira, entrou na cozinha e inventou a receita dos "ovos à professor", com manteiga queimada, muitos ovos, chouriço e pão frito. Avillez vai continuar a servi-los (com menos ovos) a quem os pedir (não estão na carta), porque a casa tem memórias, e ele sabe a importância disso.

A conversa com a Fugas aconteceu dias antes da inauguração - ainda se davam os últimos retoques nas obras, mas na cozinha já se ensaiavam os pratos. E o telefone do chef não parava de tocar. Apesar disso, Avillez parece não estar preocupado com o tempo quando começa a falar dos seus pratos.

"Eu conceptualizo alguns pratos, como a Horta da Galinha dos Ovos de Ouro, por exemplo, mas garanto que um por cento das pessoas gosta dele por esse lado conceptual, e os outros 99 por cento por ser tão bom quando se põe na boca." Num tempo em que os pratos da alta cozinha "viajam muito pela Internet", e vivem muitas vezes das imagens fotográficas que deles são feitas ("as pessoas vêem a fotografia e é como se já tivessem comido o prato"), Avillez continua a acreditar que "a cozinha não sobrevive só nos livros, na televisão e na Internet", e que o mais importante é que "sobreviva na memória e no paladar de quem a prova".

Criar um prato conceptual não é uma obrigação. É algo que às vezes acontece. Por exemplo, este No Bosque Depois da Caça (2011), que aparece na carta do Belcanto. "É um cremoso de perdiz com foie-gras, com perdiz em escabeche, um bolo salgado de pinhão e clorofila, o que dá o verde, a lembrar o musgo. Depois tem uns galhos de pão com alecrim, que fazem lembrar os galhos num bosque, com casca de um tubérculo que é o tupinambo, cozida, seca e depois frita, que faz lembrar as cascas das árvores. E ainda uns pingos de beterraba reduzida com cravinho e vinagre, a lembrar o sangue do tiro numa perdiz."

No meio da descrição, ri-se. Diz que quase parece José Saramago. "A maior parte das coisas estão na minha cabeça, não quero impô-las aos clientes, o que quero é que tenham prazer independentemente das histórias que estão por detrás dos pratos."

A pressão da criatividade

Mas sente uma pressão para apresentar sempre coisas novas, dessas de que depois se fala? "Os restaurantes conceptuais que vingam são talvez 5% de todos os que existem. E mesmo assim, no meio da alta cozinha, há talvez dez por cento de restaurantes conceptuais - o que acontece é que 90% dos media só fala desses 10%. Porque o que mexe é a novidade. Se calhar já não querem ver uma simples perna de carneiro com legumes, que até pode ter uma cozedura espectacular, era o melhor cordeiro que havia, com legumes biológicos, um grande prato em qualquer restaurante do mundo. Mas aquilo no prato é uma perna de carneiro com legumes, e isso para os media não vende tanto."

Reconhece que sim, que sente a pressão da criatividade. "Oferecer às pessoas coisas que nunca provaram é importante. Como dizia o outro, que fazia hambúrgueres quadrados em vez de redondos, "a mim pagam-me para ser diferente"."

Às vezes, o que pretende é mexer com as memórias das pessoas. "Alguns pratos são quase insinuações. Temos o bacalhau com grão que é uma folha de arroz que polvilhamos com pele de bacalhau que foi cozida, seca, triturada e polvilhada, levamos tudo a fritar, cozemos o grão, fritamos, trituramos, pomos um bocadinho de alho, de gelatina de bacalhau, coentros, e servimos num barco de madeira. É a graça de ter alguns dos ingredientes do bacalhau com grão. Alguns destes pratos ficam eternamente na cabeça das pessoas."

Há também, na alta cozinha, uma tendência para usar os produtos naturais, com intervenção mínima dos chefs, para manter os sabores o mais puros possível. Essa é, de facto, uma tendência, diz Avillez, "mas em paralelo há um regresso à cozinha de tacho, aos estufados, os guisados, os cozidos, os ensopados". "E, por exemplo, a utilização do garum, molho feito com as vísceras de peixes [que se fazia no tempo dos romanos], há o voltar atrás, a cozinhas mais familiares, mas há também restaurantes em que tudo anda à volta de vegetais. São ciclos. Não acredito que alguma coisa fique de forma definitiva."

É, explica, um pouco o que aconteceu com a cozinha molecular. "Dizia uma crítica gastronómica inglesa que os melhores cozinheiros do mundo hoje são discípulos do Adrià [Ferran Adrià, do restaurante El Bulli, na Catalunha] e os piores são discípulos do Adrià. Às vezes é uma linha muito ténue - pode-se ter quase o mesmo prato e um ser muito bom e o outro muito mau. A técnica nunca se deve sobrepor ao produto. É um bocadinho como o jogador de futebol que faz fintas, volta atrás para fintar mais um e depois já não chega a tempo de marcar golo."

E a inspiração, onde a procura? Em tudo. Pode ser, por exemplo, na tasca do fundo da rua onde prova um prato que lhe faz lembrar um sabor de infância. "Fico de alma cheia quando como um prato tradicional, mesmo que nunca o tenha comido antes. Parece que está nos genes. Há pratos que como pela primeira vez, com esse sabor de tradição, e que quase me fazem vir lágrimas aos olhos. É um desafio enorme recuperar ou inovar, respeitando o prato."

Mas pode ser também numa viagem pelo mundo. "Viajo quase sempre com restaurantes marcados. Tento ir aos mais tradicionais, ir a casa de uma pessoa do sítio. Há um ano fiz uma viagem de 3500 quilómetros sozinho, só a experimentar restaurantes em Espanha, muitos com estrelas Michelin." Ficou depois dois meses sem criar um prato novo. Foi o tempo necessário para digerir o que tinha aprendido.

Só depois nasceram mais quatro ou cinco pratos. E nascem como? "Há mil e uma coisas e às vezes eu próprio não percebo. E interrogo-me: como é que eu posso não perceber [de onde surgem] os meus pratos? Mas faz sentido, porque é um autoconhecimento, e nós passamos a vida toda para nos conhecermos."

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