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Biografia
Uma autenticidade obsessiva"Puta Que Os Pariu!" não é só a notável biografia de Luiz Pacheco: também é um grande livro. João BonifácioPuta Que Os Pariu! A Biografia de Luiz PachecoJoão Pedro GeorgeTinta-da-China
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Não havendo notícia de grande tradição biográfica em Portugal, "Puta Que Os Pariu!" carregava a expectativa de poder ser excepção ímpar no género. Desde logo porque o biografado, Luiz Pacheco, se presta a matéria de fundo: nem aqueles que pouco o leram passaram ao lado de uma ou outra entrevista em que manifestava a sua verve provocadora (capaz de revelar pormenores íntimos dos inimigos ou mesmo dos amigos), da mesma forma que mesmo os que nunca foram leitores da obra pachecal conhecem este ou aquele pormenor rocambolesco da sua vida (no mínimo ouviram falar de gravidezes de raparigas menores, deste ou daquele desvio homossexual, da rara capacidade de pedir emprestado e nunca pagar de volta, fora a mania de ir à rua com pouca roupa).
Pacheco foi um caso raríssimo na literatura portuguesa: ao contrário do que é de bom tom, nunca escreveu um romance. A sua obra é composta de textos de raiz diarística e de crítica, sendo que em todos os géneros há uma fortíssima vertente autobiográfica. Foi também um extraordinário editor, que lançou - entre outros - Herberto Hélder, não sendo de descurar a importância que teve na crítica literária: é com ele que acabam os paninhos quentes com que se tratava a literatura menor que os passeantes dos salões culturais produziam. Digamos assim: com ele elevou-se a fasquia. Também esteve preso várias vezes e passou fome - tudo pormenores que sem dúvida contribuiram para a sua aura de "escritor maldito". Contudo, os pormenores exactos das prisões, da falta de pão e do excesso de álcool permaneciam, pelo menos na factualidade possível, desconhecidos - até esta edição.
Há dois ou três pormenores discutíveis em "Puta Que Os Pariu!", o primeiro dos quais poderá ser considerado uma implicação. O livro abre com a reprodução da certidão de nascimento de Pacheco, seguido de algumas palavras de João Pedro George, antes de passar a palavra ao escritor. Depois George pega de novo na narração, descrevendo com admirável minúcia o ambiente social em que Pacheco nasceu. Contudo, em momento algum se diz que Pacheco é natural de Lisboa. Fala-se do parto numa casa da Estefânia, há o trecho em que Pacheco recorda que os pais casaram na casa de Benfica (contextualizando a época), mas falta esse pequeno detalhe que - e isto pode parecer ridículo, mas não o é para quem conhece o país - deixa à toa quem não é de Lisboa: Estefânias há muitas.
George opta muitas vezes por uma espécie de enxerto em que, no decurso do seu discurso, entram as palavras de Pacheco - o que faz teoricamente sentido dada a oralidade da escrita do biografado e o muito que ele escreveu sobre si próprio, muitas vezes narrando os mesmos acontecimentos em obras diferentes. Mas isto coloca problemas práticos: quando o cerzir dos discursos de George com o de Pacheco não é particularmente bem conseguido entre travessões, o texto, entre parêntesis (rectos e curvos) e aspas, assemelha-se a um cruzamento com excesso de sinalização. Ademais surgem confusões de tempo e de sujeito. Exemplo simples, da página 40: "Bebé de três meses, "ainda me levavam a comida à comida", Luiz Pacheco (...)". O mecanismo de inserção da citação de Pacheco é literário, porém ineficaz. Na página anterior há um exemplo mais cabal: "Quando em 1932 ingressou no ensino primário [...] quem o levou à escola no primeiro dia foi o pai, "um ritual que me faz lembrar o meu pai (....)"". Neste caso impunham-se dois pontos, para evitar a mudança de narrador.
Nenhum livro é imaculado, e estes pormenores não invalidam o que se segue: uma profundíssima investigação que se abeira de todos os aspectos possíveis de todos os momentos da vida de Luiz Pacheco, a que se une uma ponderada reflexão sobre as origens e as circunstâncias da figura e do próprio país (ou do seu meio cultural) na época.
Mais do que cronologicamente, George optou por dividir "Puta Que Os Pariu!" em secções ("Primeiros Passos", "As Mulheres, as Prisões", "Crítico", "Editor", "Escritor: pedincha, alcoolismo e marginalidade", etc.), decisão que faz todo o sentido mesmo que apresente uma dificuldade maior para quem não conhece a figura, visto por vezes um capítulo acabar num determinado ano e o capítulo seguinte voltar atrás duas décadas para abordar outro aspecto.
Ainda assim, a fragmentação existencial de Pacheco justifica de facto a divisão temática. Em "Primeiros Passos", o ambiente em que Pacheco cresceu é reconstituído com admirável detalhe: a mãe que via Deus seria, possivelmente, sifilítica, condição que lhe teria sido transmitida pelo marido, fruto da sua vida boémia. Pacheco cresce asmático e solitário, distante da mãe e assistindo a terríveis cenas entre os pais. Fica também claro que o pai de Pacheco iniciou um processo de descolagem face ao seu meio social ao ser o primeiro que recusou seguir a via militar, e não há margem para dúvidas que a relação desequilibrada que Pacheco teve com o dinheiro se deve à própria incapacidade do pai em não estourar tudo. Também nos é mostrado que o pai de Pacheco tinha interesse pela cultura, o que terá levado o miúdo Pacheco a devotar-se aos livros.
Pacheco inicia-se sexualmente sendo repetidamente violado por um amigo da casa, o que diz bem da falta de atenção a que era votado. A sua experiência sexual seguinte deu-se num bordel. João Pedro George faz notar que a experiência da violação o levou vez após vez a ter sexo com menores, não apenas as mães dos seus filhos mas igualmente outras raparigas e rapazes - o que aliás lhe valeu várias prisões.
Alguns dos episódios da vida de Pacheco são caricatos, com o o seu primeiro casamento: o tio de uma empregada lá de casa acusa Pacheco de abuso, pelo que este é forçado a casar com a rapariga; no entanto, quando o tio da moça soube que os Pacheco não tinham dinheiro, quis desistir da queixa e do casamento. Outros, que se passam mais tarde, são simplesmente trágicos: contrariando as suas crenças, Pacheco aceita que uma das mães dos seus filhos faça um aborto, sendo a parteira paga com uma lampreia d"ovos. A descrição é genuinamente pungente.
A leitura de "Puta Que Os Pariu!" torna claro que um dos momentos fundamentais da vida de Pacheco foi o abandono do seu emprego no Estado português (uma cunha) para se dedicar exclusivamente à escrita - de certo modo, era como se finalmente ultrapassasse o pai, que nunca tinha conseguido afirmar-se criativamente. Por outro lado, é como se tivesse cumprido esse desejo do pai. No livro, é imaculada a reprodução dos esforços de Pacheco enquanto editor, das dificuldades que teve para editar no meio da sua biografia rocambolesca. Também fica bem claro que Pacheco era um bom leitor e um crítico duro, porém justo, que via o meio literário como um conjunto de burguesitos que se afagavam uns aos outros.
Não deixa de ser curioso que Pacheco sempre tivesse misturado obra com autor: como João Pedro George faz notar, nunca se ficava apenas pelo que pensava sobre um livro, também tinha de escrever sobre o escritor. George não avança esta hipótese, mas parece haver em Pacheco uma necessidade constante de denúncia do abuso - como se o facto de em Portugal se produzirem obras de baixa qualidade, quase sempre amparadas pela crítica devido a razões de amizade, constituísse para o leitor e para a literatura um abuso. Tendo em conta que Pacheco foi abusado sexualmente, e além disso vítima de abandono pela mãe e de violência psíquica pelos pais, é perfeitamente natural que denunciasse formas de abuso (mesmo que as praticasse). É também muito possível que essa incapacidade de aceitar que autor e livro fossem coisas autónomas tenha ditado a sua escassa produção de ficção. Pacheco era, como diz alguém a dada altura, de uma autenticidade "obsessiva".
João Pedro George coloca com veemência a hipótese de a produção literária de Pacheco ser um produto da sua biografia: no meio das prisões, dos imensos filhos, das separações, ser-lhe-ia difícil escrever algo com maior fôlego, e de facto, lido "Puta Que Os Pariu!", a hipótese faz todo o sentido. Esta biografia reconstrói a vida de Pacheco com um detalhe verdadeiramente inacreditável - e recria também várias épocas e a sua evolução, sendo igualmente uma admirável composição sobre a família e o meio literário português. Não deixa, no entanto, de estar cheia de histórias que vão do escabroso ao delirante, pelo que o leitor comum terá por certo muito por onde pegar.
O cuidado de George com a figura de Pacheco é tal que acaba o livro com um capítulo dedicado à "Produção Social do Maldito", analisando a crítica à obra de Pacheco, a imagem que ele foi construindo nos jornais, etc. Contudo, e como é notório na introdução e na conclusão que o biógrafo assina, mesmo havendo simpatia e fascínio nunca se esconde o que era esta figura - que muitas vezes se comportou como um pária.
Enquanto escritor, Pacheco foi um estilista admirável com uma noção de oralidade notável, capaz de ir onde os outros tinham medo de ir - escreveu páginas notáveis sobre a família, a fome, a sexualidade. Contudo, sempre me pareceu que não se cumpriu inteiramente. Essa ideia não mudou com "Puta Que os Pariu!", mas agora ponho a hipótese de a sua obra fazer sentido tal como está. Um grande livro faz isto: põe-nos dúvidas. E é isso que é "Puta Que Os Pariu!" é: não apenas uma biografia notável, mas também um grande livro.
Ficção
Velázquez arranhado"Rixa de gatos" é o mais madrileno dos livros do catalão Eduardo Mendoza. A capital do império agraciou-o merecidamente com o Prémio Planeta 2010. Rui LagartinhoRixa de Gatos
Eduardo Mendoza(Trad. António Pescada)
Sextante
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Se Eduardo Mendoza tivesse querido, "Rixa de Gatos" poderia ter sido o equivalente madrileno de "A Cidade dos Prodígios", a obra mais conhecida do escritor catalão. Mas não foi por falta de ambição que o fresco que retrata Barcelona entre as duas exposições que marcaram a cidade (uma no final do século XIX, a outra nos anos 20 do século XX) não se transpôs para a Madrid de 1936, nos dias que antecederam o eclodir da Guerra Civil Espanhola. Mendoza quis evitar as armadilhas do romance épico: em "Rixa de Gatos", nenhuma geração se espatifa. Tudo ocorre numa semana decisiva, numa Madrid que ferve quando Anthony Whitelands, um inglês especialista em arte espanhola, chega a casa de um fidalgo de antanho, daqueles a quem só restam largos latifúndios em solo andaluz e quadros nas paredes. Anthony vem avaliar um quadro que pode vir a ser sacrificado em nome de um esforço de guerra iminente.
Os dramas de Madrid, capital pobre e dividida com tudo racionado menos a alegria, já foram suficientemente contados. Para a fina ironia e o desconcerto é sempre mais fácil encontrar estômago: "Anthony debatia-se entre o receio e o escrúpulo. Uma ex-mulher, uma amante, alguns devaneios e um conhecimento completo da pintura maneirista tinham-lhe ensinado a não minimizar a ira de uma mulher despeitada, em especial numa situação como a sua" (p. 263). Os dias madrilenos do especialista em Velázquez dão para escrever o diário de um banana. Azarento. Enleado entre toureiros, fidalgos, filósofos, espanholas de muito pêlo na venta e os políticos do momento. Azaña, Primo de Rivera e Franco são secundários de luxo que povoam a tela madrilena que vai sendo pintada diante do leitor.
A escrita de Eduardo Mendoza sempre foi cosmopolita, aberta à contaminação cultural. Desta vez, para além da auto-paródia a alguns dos seus livros mais ou menos policiais, mais ou menos de espionagem, como "Sin Noticias de Grub", "La Verdad sobre el Caso Savolta" (nenhum dos quais traduzido para português) ou "O Labirinto das Azeitonas" (difícil de encontrar), e de algum ambiente de comédia de costumes que se aproxima na forma à linguagem do cinema e do teatro italianos do final da Segunda Guerra Mundial, Velázquez e a sua pintura são os protagonistas alternativos deste "Rixa de Gatos". Sem nos apercebermos, caímos numa das suas telas povoada de anões ridículos: Francisco Franco, com o seu 1,62 metros era na realidade razoavelmente baixo. Tudo isto depois de aprendermos imenso sobre a vida e a forma de trabalhar do próprio Velázquez, o homem que pintou uma Vénus despida, a primeira na história da pintura espanhola. O mesmo homem que deixava pistas em portas, janelas, feições esfumadas e sombras, e que pintava sem ânimo pessoal mas sempre com fervor.
A Madrid que não chega a ser modernista ganha em "Rixa de Gatos" uma atmosfera de matizes barrocas: "Veste o sobretudo, pega no guarda-chuva, na pasta e no chapéu de côco, despede-se do pessoal e sai com um menear de ancas. Habituado ao percurso, não o incomodam os corredores lúgubres nem a escada à meia-luz. Ao sair encontra a cidade envolta na névoa" (p. 127).
Nos últimos romances, a escrita de Eduardo Mendonza, embora competente, denotava um certo cansaço. "Maurício ou as Eleições Sentimentais" e a "Assombrosa Viagem de Pompónio Flato" tinham pouco brilho. Esses dias terminaram. "Rixa de Gatos" é uma delícia. Irónico, culto, sem nunca sair do esboço traçado com rigor por Eduardo Mendoza. Parece na aparência ser pouco barroco. Mas as aparências iludem. Mal começamos a esgravatar este postal de cor sépia dos dias em que Madrid tentava empurrar-se para a frente sem vontade de desistir, abrem-se páginas de deleite para o leitor.
Spaghetti Eastern
Três volumes, duas luas, uma catástrofe. Murakami escreveu finalmente o romance péssimo que a sua carreira há muito prometia. Rogério Casanova1Q84Haruki Murakami(Trad. Jay Rubin e Philip Gabriel)
Harvil Secker
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Entre as muitas acusações injustas de que Haruki Murakami já foi alvo - a de ser considerado um candidato plausível ao Nobel, a de ser comparado a Don DeLillo ou Philip K. Dick, a de escrever bem, etc. - a mais desconcertante é a que o tenta encaixar na categoria de escritor "experimentalista". O termo tem um significado literário preciso, que remete para inovações técnicas ou formais, e que não é de todo adequado para descrever a obra derivativa e convencional de Murakami. Pode afirmar-se, ainda assim, que conseguiu induzir um impulso quase vanguardista nas editoras que o publicam. Os três livros que compõem "1Q84" surgiram no Japão em duas tranches: um primeiro volume com os livros 1 e 2 em 2009, um segundo com o livro 3, um ano mais tarde. A tradução inglesa foi servida em 2011, com duas opções: três volumes individuais, ou o pacote completo em encadernação de mil páginas. Em Portugal, a Casa das Letras optou por uma terceira abordagem, lançando os três volumes separadamente (o primeiro, único até agora, saiu em Novembro passado). Ao ritmo a que isto vai, é uma questão de tempo até que alguém se lembre de publicar o livro uma página de cada vez. Entretanto, para enevoar ainda mais o panorama, o autor sugeriu recentemente que um quarto acrescento (prequela ou sequela) não está fora de hipótese, o que nesta altura parece menos um brinde do que uma ameaça.
Como acontece quase sempre com os livros de Murakami (os maus e os razoáveis), "1Q84" tem um bom começo e uma premissa intrigante. Em Abril de 1984, Aomame, professora de artes marciais e assassina em "part-time", encontra-se retida dentro de um táxi, numa auto-estrada elevada em Tóquio. Um colossal engarrafamento está prestes a impedi-la de cumprir uma tarefa importante e o motorista sugere-lhe um atalho secreto: umas escadas de emergência que levam ao subsolo, acessíveis a quem esteja disposto a transpor uma vedação. Antes de lhe abrir a porta, o motorista (um dos habituais oráculos figurantes de Murakami, exibindo o seu sorriso "que podia ser interpretado de várias maneiras") adverte-a ominosamente para a hipótese de "as coisas não serem sempre aquilo que parecem". Deixando para trás o táxi, o engarrafamento, 1984 e a literatura, Aomame chega a uma realidade paralela que decide baptizar, por nenhum motivo aparente que não o de proporcionar um título e um trocadilho, 1Q84 (a letra "q" e o número "9" pronunciam-se da mesma forma em japonês).
1Q84 não é radicalmente diferente de 1984: há duas luas no céu, EUA e União Soviética organizam missões espaciais conjuntas e os polícias de trânsito envergam uniformes de qualidade superior, mas tudo o resto permanece mais ou menos na mesma. Recuperando o mesmo esquema bipartido de "Kafka à Beira-Mar", a história vai prosseguindo em capítulos alternados. A outra personagem focal é Tengo, professor de matemática e romancista encalhado, atraído para um fraudulento esquema editorial: reescrever um manuscrito intitulado "A Crisálida do Ar", submetido por Fuka-Eri, uma quase-autista rapariga de 17 anos, a um concurso literário destinado a primeiras obras. A tarefa consome-o. Elementos fantásticos do livro vão infiltrando gradualmente a sua realidade: um céu inflacionado por súbitos satélites adicionais, e criaturas misteriosas conhecidas como "Povo Pequeno" que saem da boca de uma cabra morta e têm a capacidade de ler pensamentos, fazer explodir cães, e malandrices afins. Torna-se claro que "A Crisálida do Ar" cumpre uma dupla função equivalente às escadas de emergência de Aomame: um portal para outra dimensão, e uma licença para não fazer sentido.
Os enredos paralelos vão convergindo com a lenta inexorabilidade de uma colisão de carroças. Coisas acontecem - e acontecem muito devagar. Um sub-enredo envolvendo o líder de um culto religioso ameaça tornar-se interessante durante centenas de páginas sem nunca se decidir. Depois temos os longos interlúdios em que nada acontece, também muito devagar, deixando bastante tempo livre para as personagens se dedicarem a actividades tipicamente murakamianas: abrir e fechar frigoríficos, preparar refeições caseiras à base de esparguete, beber whisky, ouvir jazz, falar de gatos, manter longas conversas telefónicas, comparar tamanhos de seios, reflectir sobre orelhas, e ter sexo absolutamente ridículo (a dada altura, uma vagina é comparada a uma orelha "atenta ao som de uma campaínha distante"; no mesmo capítulo, uma sequência de erecções é comparada a uma "remodelação governamental"). Outros elementos familiares também picam o ponto no romance: o mesmo exotismo transnacional e desenraízado, o mesmo "ennui" urbano pontuado por alusões culturais, os mesmos voos de introspecção supérflua - uma divagação excruciantemente banal sobre Tchékhov prolonga-se durante quatro páginas - capazes de murchar a remodelação governamental de qualquer um.
Este zodíaco patenteável pretende gratificar as expectativas de um determinado tipo de leitor veterano, que sente uma vaga lisonja ao regressar a território tão familiar, como se encontrasse um quartinho decorado com os brinquedos de infância por um avô diligente. É uma fórmula que Murakami utilizou com charme moderado em livros anteriores, e ajuda a explicar a peculiar hibridez da sua reputação: autor "de culto", mas à escala planetária.
Mas a arquitectura destroçada de "1Q84" nunca permite o ritmo e a fluência displicente que são os mais fiáveis dos seus limitados atributos. A narrativa é perra, e cada capítulo parece cirurgicamente concebido para ser pior e mais lento do que o anterior. Mesmo a sua facilidade de improvisação está entorpecida. Nos melhores momentos de "Em Busca do Carneiro Selvagem" ou "Crónica do Pássaro de Corda", acontecimentos arbitrários eram ocasionalmente dotados de uma furtiva aura de estranheza, que facilitava a aplicação automática de adjectivos como "surreal" ou "onírico". "Surreal", no entanto, não serve para classificar a monótona barafunda de "1Q84". Um efeito surreal é alcançado quando se cria uma incongruência ressonante ou uma justaposição genuinamente insólita; mas o surrealismo de Murakami resume-se agora a afirmar que algo surreal está a acontecer. É uma fantasia por decreto, que perde fôlego em cada nova derrapagem e revela o triste espectáculo de um autor totalmente à mercê dos seus mais débeis automatismos. A impotência é realçada pela frequência com que todas as sensações de estranheza são declaradas em vez de evocadas. Quase não há capítulo em "1Q84" em que uma ou outra personagem não confesse a sua sensação de que "algo de estranho", ou "algo fora do normal" está a acontecer. Personagens são repetidamente descritas através de etiquetas de mistério "ad hoc": são "enigmáticas", são "inescrutáveis", é "difícil adivinhar o que pensam". Mesmo esta marcada predilecção por dizer em vez de mostrar não serve muito tempo como regra; a espaços, impera a lei da rolha: "Olhou para Tengo com uma expressão que parecia dizer: ainda é cedo para falar sobre esse assunto". Este é o lema de "1Q84": é sempre demasiado cedo para falar sobre o assunto, até ao ponto em que o assunto tem de ser repetido.
Os diálogos são um pesadelo de redundâncias sobrepostas. É rara a interacção em que uma personagem não repita o que a outra acabou de dizer, com ligeiras modificações. É rara a interacção em que uma personagem não repita, com ligeiras modificações, o que a outra acabou de dizer. O oitavo capítulo do livro 1 fornece um exemplo de descontrolo "vintage". Em discurso directo, Tengo pergunta a Fuka-Eri que tipo de livros é que ela lê: "Levantou a questão não apenas por aborrecimento, mas também porque tinha a intenção de indagar sobre os seus hábitos de leitura. Fuka-Eri olhou na sua direcção e virou o rosto novamente para a frente. - Eu não leio livros - respondeu simplesmente. - De todo? Ela assentiu. - Isso quer dizer que não tens qualquer interesse em ler livros? - perguntou ele. - Demora tempo - disse ela. - Tu não lês livros porque demora muito tempo? - perguntou ele, sem ter a certeza de que tinha entendido correctamente. Fuka-Eri continuou a olhar em frente. A sua postura parecia transmitir a mensagem de que ele não tinha qualquer intenção de negar a sua sugestão".
O ponto de convergência das narrativas paralelas deveria ser a culminação de uma história de amor - um amor com uma origem tão implausível e um desenlace tão anti-climático que seriam necessárias proezas sobre-humanas de suspensão da descrença para não desatar a rir. Mas chegados a esse ponto, 900 páginas depois, já não temos energia para continuar a acreditar em coisas inacreditáveis; acreditar que continuámos a ler até ali já exigiu esforço suficiente. Ler "1Q84" demorou demasiado tempo. E a postura do livro parece transmitir a mensagem de que não tem qualquer intenção de negar esta sugestão.